As surpresas que o amor reserva - parte 1 de 5
À porta de uma lanchonete, que nos finais de semana servia pratos típicos da culinária árabe, às oito horas da noite, Gislaine agachou-se para pegar uma moeda de R$ 1,00, que, da sua carteira, havia caído no chão. Paulo, distraído, alternando a sua atenção entre as placas luminosas e as belas mulheres que passavam por ele, pisou, involuntariamente, com o pé esquerdo, a mão de Gislaine, e recuou, automaticamente, o pé. Gislaine soltou grito de dor, agudo, puxou a mão, sem a moeda, de debaixo do pé de Paulo, ergueu-se, contraídos os músculos do rosto, e fitou Paulo, que se voltara para ela e, constrangido, com voz hesitante e frases entrecortadas, desculpou-se e, sem tomar consciência dos seus atos, segurou-lhe a mão. Gislaine preparou uma ofensa, em sua explosão de raiva, a qual ela abafou ao deparar-se com o rosto de Paulo, visivelmente preocupado e constrangido. Paulo, ao mesmo que se desculpava, massageava-lhe a mão. Gislaine sorriu, divertida. Ele, constrangido, desculpava-se. E desculpava-se. E desculpava-se. Ânimo serenado, Gislaine pediu a Paulo que lhe soltasse a mão, e ele desculpou-se uma vez mais, e soltou-a. Enquanto massageava a mão e avaliava as unhas esmaltadas, disse para Paulo que derrubara uma moeda, e olhou para o chão à procura dela. Um moço imberbe de cabelos encaracolados apontou para a moeda, atrás do pé esquerdo de Paulo, que olhou para trás, agachou-se, pegou-a do chão, e entregou-a para Gislaine, que a recolheu à carteira.
Gislaine, que segurava a alça da bolsa que trazia a tiracolo, e Paulo, que olhava de um lado para o outro, sorriram, encabulados, constrangidos, em silêncio, um de frente para o outro, até ela perguntar para ele:
– Qual é o teu nome?
Paulo disse-lho, e ela lhe disse o dela. Coçou a cabeça com a mão direita, enfiou a mão esquerda no bolso posterior esquerdo da calça, depois a mão direita no bolso posterior direito, e relanceou, visivelmente constrangido, o olhar em torno de si, sentindo o rosto a ruborizar. Intimidou-o o olhar de Gislaine, que, sorrindo, perguntou-lhe qualquer coisa. Paulo ouviu-lhe a voz, mas não ouviu-lhe a pergunta, voltou-se para ela, e emitiu um “Quê?” mal pronunciado. Gislaine passeou a mão direita pelos cabelos, ajeitando-os às costas, enquanto repetiu-lhe a pergunta. Queria saber dele para onde ele iria. Paulo disse-lhe que ia para uma pizzaria. Gislaine olhou para a lanchonete, sorriu, apontou-a, como se observasse: “Veja, Paulo. Estamos diante de uma lanchonete. Convide-me”. Paulo entendeu o recado, e disse-lhe que são saborosos os lanches servidos naquela lanchonete, mas, naquela noite, estava com vontade, e tinha de satisfazê-la, de comer uma pizza. Gislaine, insinuante, ofereceu-se para acompanhá-lo até a pizzaria, surpreendendo, favoravelmente, Paulo, que abriu um largo sorriso.
– Gosto de pizza com camarão, catupiry e azeitona – disse Gislaine, sorrindo, meiga. – Não sei quais são os preços das pizzas. Trinta reais, acho. Tu pagarás pela pizza, afinal, convidaste-me depois de eu te convidar para me convidar. Para tu não pensares que sou uma mulher abusada, aproveitadora e interesseira, te ajudarei, com a moeda de um real que derrubei no chão, a pagar pela pizza.
*
O Sol, na manhã do dia seguinte, um domingo, dia quente, despontou cedo. O sono pesado propiciou sonhos inspiradores a Paulo, que evocou os eventos da véspera, seu encontro com Gislaine e a conversa, na pizzaria, que se estendeu até uma hora da madrugada. Recapitulou-a, durante o banho de meia hora. Encerrou o banho assim que a campainha estridulou quatro vezes: dois toques, um curto intervalo, e dois toques. Paulo sabia quem a premiu: Gustavo. De todas as pessoas que conhecia, ele era a única que deste modo premia a campainha. Perguntou-se porque cada pessoa aperta a campainha de um modo distinto. Essa questão daria uma tese sociológica, concluiu. O estudioso que a apresentasse com observações argutas seria laureado, é certo, com o Ignóbel, talvez com o Nobel.
Paulo se enxugou. Vestiu-se. Penteou os cabelos, e foi atender à porta. Enfiava a chave na fechadura, quando Gustavo premiu a campainha quatro vezes.
Paulo sorriu, e abriu a porta.
– Do que ris, Paulão? – perguntou-lhe Gustavo, ao fitá-lo. Paulo disse-lhe a razão do sorriso. E Gustavo comentou: – Já atentei para essa questão. Não entendo porque, até hoje, nenhum intelectual brasileiro debruçou-se sobre assunto tão instigante. Ora, com um estudo penetrante do ato de apertar campainhas um intelectual superará as obras arcaicas, que merecem o limbo, de todos os intelectuais brasileiros que já passaram pela face da Terra. As infinitas maneiras de apertar campainhas deveria ser objeto de estudos dos melhores intelectuais brasileiros. E as universidades brasileiras, sabemos, e não o ignoramos, estão repletas de gênios, daí serem as melhores universidades do mundo. O estudo do ato de apertar campainhas oferecerá meios para uma análise acurada da sociedade brasileira. Os intelectuais brasileiros, seres privilegiados, dotados de intelecto superior, após diagnosticarem o comportamento dos brasileiros e a formação histórica do Brasil, prognosticarão o seu desenvolvimento, e aviarão as receitas para sanar todas as mazelas que assolam o país. E o país entrará, definitivamente, no século XXI, e, antes dos outros países, no século XXII.
Divertiam-se com tais gracejos quando ouviram uma buzina. Do carro, do outro lado da rua, Renato gritou-lhes:
– Corinthianos dorminhocos! Não acordaram, palmeirenses? O tempo não para. Ó – e tocou, no mostrador do relógio ao pulso, o dedo indicador direito, mostrando-lhos, como se eles pudessem ver os ponteiros do relógio. – Sabem que horas são, palmeirenses corinthianos? Oito horas. Oito, não… Deixe-me ver – e avaliou os ponteiros – oito e quatro. Vocês ficarão, aí, de namorinho, dondocas? Não se embelezaram ainda, corinthianos são-paulinos?
Paulo e Gustavo exibiram-lhe gestos obscenos, exigiram-lhe que calasse a boca, e disseram-lhe que se retratasse, ou o surrariam até enviarem-lo para o inferno.
Renato retirou-se do carro, trancou-o, acionou o alarme, e foi até Paulo e Gustavo. Saudaram-se com apertos de mãos, tapas na nuca e pontapés. Entraram na casa. Na cozinha, Paulo preparou o café-da-manhã, Renato abriu a geladeira, inspecionou-a, reclamou da escassez de víveres, e declarou que, se ocorresse, naquele momento, uma catástrofe nuclear, Paulo morreria de fome; em seguida, inspecionou a despensa, e admirou-se com as prateleiras quase vazias. Reclamou. Gustavo saiu em defesa de Paulo, o que inspirou muitas insinuações maledicentes a Renato.
Retiraram-se meia hora depois de beberem, Paulo, leite, Renato, um dedo de café, como ele disse, e Gustavo, água, e comerem, Paulo, bolachas waffles de morango e uma maçã, Renato, duas bolachas de maisena, e Gustavo, duas bolachas de leite.
Rumaram para o campo de futebol, localizado à dez quilômetros de distância. Conversaram, durante o percurso. Renato perguntou para Paulo quem era a morena que o acompanhava pela avenida Dom Pedro II. Paulo falou-lhes de Gislaine.
A conversa, entrecortada por críticas à prefeitura municipal, que não consertava as sinuosas estradas esburacadas – de competência do governo estadual, observou Gustavo -, que requeriam de Renato destreza ao volante, e por impropérios e blasfêmias, estendeu-se até a chegada no campo de futebol.
– Chegamos ao Maracanã – exclamou Paulo.
– É um elogio? – perguntou-lhe Renato, zombeteiro.
Gargalharam.
Os jogadores, durante o jogo de futebol, que não foi um espetáculo digno de Copa do Mundo, ofereceram aos espectadores – cem pessoas, se muito – cenas que os célebres jogadores das seleções mundiais não oferecem: lances divertidos e inexplicáveis, irreproduzíveis pelo que tinham de cômico e grotesco. Além dos quadrúpedes, que se autodenominavam jogadores de futebol, integravam os times seres humanos do gênero masculino que sabiam distinguir um coice de mula de um lance de calcanhar e sabiam que estavam num campo de futebol, conquanto se perguntassem o que havia sido feito do gramado, e não em um octógono.
O time integrado por Gustavo, Paulo e Renato e outros oito jogadores candidatos à seleção brasileira de futebol comemorou a vitória, no campo, em um churrasco, após a turma do deixa-disso apaziguar os ânimos dos jogadores mais exaltados do time derrotado, jogadores que desejavam converter o campo de futebol em um campo de batalha. Um deles, Edmundo, embora destituído de habilidade futebolística, atribuía-se talento ímpar, e dizia que se rivalizava com Pelé e Garrincha. Desconhecia as regras básicas do futebol. Durante o jogo, ele chegara ao desplante de pôr o dedo em riste no nariz do árbitro – que não se curvou diante dele – e descarregou a sua raiva na bola, nos jogadores do time adversário e nos do próprio time, toda vez que um destes dava um passe errado, ou, ao chutar a bola para o gol, o goleiro a agarrava, ou a bola ia para fora.
A alegria foi incontível durante a comemoração, os jogadores do time vitorioso, e os do time derrotado, que chutaram a tristeza para escanteio e participaram da festa comemorativa como se vitoriosos fossem. Edmundo, é desnecessário dizer, não participou da festa. Havia se retirado do campo, resmungando, amaldiçoando os jogadores vitoriosos, prometendo vingança, exigindo uma revanche. Foi ao seu carro, trocou de roupas, na companhia de três jogadores do seu time – todos, enfezados, destilavam ódio e descarregavam obscenidade. Pouco depois, entraram no carro, e foram-se embora.
A festa comemorativa estendeu-se por três horas. Renato elogiava Paulo sempre que evocava Gislaine. Seus comentários, misto de louvores à beleza de Gislaine e obscenidades. Paulo, ligeiramente constrangido devido às licenças poéticas que Renato assumiu, não teceu comentários, e tentava desviar a conversa para outros assuntos. Falaram de futebol, de política, de filmes, de relações internacionais. Renato apresentou comentários estapafúrdios sobre os mais diversos assuntos, todos hauridos de telejornais e de sites sensacionalistas.
Na viagem de regresso, iam, Renato ao volante, Paulo, no banco do carona, e, no banco traseiro, Gustavo, Marcos e Jefferson. Renato evocou, mais uma vez, Gislaine, e exigiu de Paulo uma narrativa minuciosa das aventuras da véspera. Gustavo, Jefferson e Marcos engrossaram o coro. Paulo conservou silêncio sepulcral a respeito, apesar do assédio de que era vítima e das ameaças recorrentes de seqüestro e tortura.
Às seis horas da tarde, Paulo telefonou para Gislaine. Marcaram um encontro, às oito da noite, no restaurante Ba***. Gislaine antecedeu-se a Paulo em dez minutos. Estava deslumbrante. O seu vestido, mesclado de cores verdes e azuis de diversas tonalidades, modelava-lhe o talhe, realçava-lhe os atrativos. O decote, conquanto discreto, revelava-lhe as formas suaves do busto. Os cabelos volumosos encaichoeiravam-se-lhe pelos ombros, costas e busto; os brincos iridescentes adornavam-lhe o belo rosto. Paulo, ao entrar no restaurante, conduzido por um garçom, boquiabriu-se, embevecido, ao fitar Gislaine à mesa. Saudou-a, e elogiou-lhe a beleza. Gislaine, envaidecida, acolheu os elogios, e sorriu, encabulada.
Durante o jantar, que se estendeu das oito à meia-noite, Paulo e Gislaine degustaram de pratos saborosos e conversaram. Narraram um para o outro episódios da própria vida, felizes e tristes, contaram anedotas, e trataram de questões que estavam fora da alçada deles, a respeito das quais, entretanto, teceram alguns comentários. Riam à toa. Continham-se, para não gargalharem. Em não raras ocasiões, Gislaine surpreendeu Paulo alheado, desatento, sorridente, e perguntou-lhe se ele a ouvia, e ele disse que sim, que a ouvia, e ela lhe perguntou a respeito do que falava, e Paulo, constrangido, sorria – ou simulava constrangimento -, e ela lhe dizia que estava magoada, e fazia beicinho. E ambos riam.
Paulo conduziu Gislaine à casa dela. Na sala, beijaram-se e estreitaram-se num abraço caloroso.
*
– Te vi e a Gislaine – disse Renato -, ontem, à noite, no restaurante Ba***.
– Por que não nos foste cumprimentar? – perguntou-lhe Paulo.
– Não quis atrapalhar o jantar dos dois pombinhos – disse, jocoso, Renato.
– Que atrapalhar… – exclamou Paulo.
– Eu atrapalharia, sim. Além disso, eu estava acompanhado da Jú, e, segurando a vela, a Magali, que, por sorte, não é comilona.
– Segurando vela! – exclamou Paulo, indignado. – Não diga isso da menina. O pai dela está no hospital…
– É – sussurrou Renato, em tom compungido. – Eu e a Jú o visitamos, ontem. O sogrão melhorou. Está bem, tendo-se em vista o estado dele há uma semana… Clóvis… Por um triz… A família, de sobreaviso… Previram a morte dele… A sogrinha, que não é protagonista de piada de sogra… Não gosto de piadas de sogras. A minha mãe é sogra, sogra de uma nora e de um genro… Duas vezes sogra. Eu dizia que a sogrinha telefonou para os filhos e para as filhas, e deu-lhes a notícia. Encomendavam um caixão para o carequinha…
– O Daniel não te criticou?
– Criticar-me pelo quê? Por eu ter ido no jogo, ontem?
– É.
– Não. Não. Eu não iria ao jogo, mas a Jú, após eu lhe dizer que eu pediria para o Marcelo, irmão da Taís, a casada com o Vicente, ir no meu lugar, pois eu teria de desfalcar o nosso time, que não poderia jogar com dez jogadores, disse-me que eu fosse ao jogo. Fiquei sem graça. Ela me disse que eu precisava descansar, desanuviar a cabeça. Além de dez horas de trabalho por dia e das preocupações com o meu sogro, tive de me preocupar com a minha mãe e com o Leandrinho, maldito garoto peralta! Ele executou manobras radicais com a bicicleta, esborrachou-se no chão, e quebrou a perna, o maldito moleque!… Foi aquela correria. Passei por um aperreio que você não imagina… O Daniel, embora seja um cara intragável, e com ele não me bico, ontem, ao me encontrar, nada me disse. Não sei se ele sabe que fui ao futebol. Acredito que sabe. Ele não perde uma oportunidade de me censurar… Ele que me venha com aquele ar de besta, que lhe enfio um soco nas fuças, e o mando daqui para o cafundó-do-judas. Vamos esquecer isso. Diga-me, daí, ô bonitão, como foi o jantar com aquela belezura. Ela não é muita areia para o seu caminhãozinho, não?
Gargalharam.
– Desembuche, Paulo.
– Desembucha? O que é isso? Um interrogatório?
– Amigos não têm segredos para com os amigos.
– Sei. Tu tens uma sentença para quando queres extrair informações de alguém, ou fazer valer as tuas idéias, os teus pontos e vista, impô-los, ou desmerecer quem discorda de ti…
– Chi! – exclamou Renato, num misto de zombaria e azedume. – Tu fundirás teu cérebro, se persistires nessa lengalenga. Dá-lhe um fim, antes que tua cuca se bunfa… se funda. Basta de rodeios, Paulo. Diga-me o que aconteceu ontem. Tu e a Gislaine…
Simulando má vontade, Paulo deu-lhe um relato minucioso do ocorrido na véspera. Renato devotou-lhe toda a atenção do mundo, e disse-lhe, profético, que aquela novela se encerraria com os dois, Paulo e Gislaine, no altar, tendo, ao fundo, a Marcha Nupcial; constatou que os olhos de Paulo irradiavam, e o seu sorriso exibia, era inegável, paixão.
– Tu a apresentarás para mim e para a Jú – com essas palavras, Renato encerrou a conversa.
Na sexta-feira, à noite, Paulo e Gislaine, Renato e Juliana, Gustavo e Camila encontraram-se no restaurante X***. Renato e Gustavo admiraram Gislaine durante o jantar. Não passou despercebido de Juliana e Camila os olhares embevecidos com os quais eles a fitaram. A calça e a camisa que Gislaine vergava revelava a sua silhueta magistral. Juliana pensou em esganar Renato. Camila visualizou Gustavo com o pescoço na guilhotina. Ambas queriam decapitar Gislaine, furar-lhe os olhos, mutilá-la. Contiveram os ímpetos homicidas açulados pelo ciúme. É desnecessário dizer que houve, após o jantar, rusgas entre Camila e seu namorado e entre Juliana e seu marido. Também é desnecessário dizer que Paulo e Gislaine notaram os olhares dos seus amigos, o de Camila e o de Juliana.
O namoro de Paulo e Gislaine prosseguia. Discretos, eles não se expandiam, em público, nas exibições de carinho; se muito, um beijo rápido e abraços. Certa vez, uma amiga de Gislaine falou-lhe a respeito da discrição deles, em tom de reprovação; Gislaine disse que não protagonizavam cenas tórridas de paixão em público porque não viviam numa novela e não tinham porquê exibir, em público, com indiscrição, a paixão que nutriam um pelo outro. A sua interlocutora exibiu-lhe um sorriso de repulsa, e dela zombou, alcunhando-a quadrada, careta e antiquada.
*
– Quero casar de véu e grinalda, Paulo – disse Gislaine, ao mesmo tempo que, com as mãos espalmadas sobre o tórax de Paulo, afastava-o de si, e fitava-o nos olhos, com olhar constrangido, como que receando ferir-lhe os sentimentos.
– Gislaine – disse-lhe Paulo, medindo as palavras -, amo-te… desejo-te… Namoramos, há um mês… – as reticências decorriam da confusão de sentimentos sob ditames de duas forças polarizadas, disparadas uma contra a outra, que o impediram de pensar adequadamente: o amor que nutria por Gislaine e a raiva em ter de, mais uma vez, refrear os seus desejos. Não queria desrespeitá-la; esforçava-se por compreendê-la.
– Sei que tu me tem amor sincero. Vejo, nos teus olhos, no teu semblante…
– Tu me rejeitas…
– Não rejeito…
– Então…
– Amo-te, Paulo… Jamais senti tanto amor… Quero-te… Quero casar contigo.
– Tu sempre…
– Entenda-me, Paulo. Por favor, entenda-me. Quero ir para o altar de véu e grinalda… Pensei em deixar de lado os meus sonhos e… Paulo, entenda-me, por favor…
Paulo abaixou a cabeça, curvou-se, fincou os cotovelos nas pernas; conservou os dedos entrelaçados. Os seus pensamentos, vórtices devastadores, arrasaram-lhe o espírito. Gislaine enlaçou-o, e beijou-lhe a face esquerda. O contato daquele corpo voluptuoso inebriava-o. Paulo pensou em abandonar as suas reservas, atrair para si Gislaine, envolvê-la, estender-se em carícias, ditar-lhe palavras sedutoras, que a desguarnecessem, e ela, vulnerável, ceder-lhe-ia aos desejos, os quais ela refreava em nome de um valor para ela inegociável; conteve-se, entretanto. Gislaine passeou-lhe pelos cabelos as mãos sedosas, osculou-o no rosto e na testa, carinhosamente; com palavras cativantes, fê-lo sorrir ao descrever-lhe a vida em comum de marido e mulher felizes.
*
Renato e Gustavo, sempre que se encontravam com Paulo perguntavam-lhe a quantos quilômetros andava o namoro dele e Gislaine, e se eles já transgrediram alguma lei de trânsito por excesso de velocidade. Paulo sonegava-lhes as informações que eles, com perguntas de duplo sentido, faziam-lhe. Eles não desistiriam: De Paulo extrairiam, prometeram-se, informações reveladoras. O assédio o induziria a, involuntariamente, revelar qualquer coisa. E Renato e Gustavo redobraram os seus esforços, principalmente nos dias em que Paulo mostrava-se acessível, mas Paulo não cedeu um milímetro de sua posição.
*
Eram nove e meia da noite. Na avenida Nossa Senhora do Bom Sucesso, no sentido centro-bairro, num carrinho de lanche, Rodolfo e Érica atendiam os seus cientes. Das seis da tarde até aquela hora serviram mais de vinte x-tudo, mais de dez x-salada, mais de dez x-eggs e mais de quarenta lanches de outras variedades – os quais prepararam com perícia incomum -, e mais de cem copos de refrigerantes de mais de dez sabores. Numa das mesas, sobre a calçada, uma televisão e um aparelho de DVD. Quatro clientes de Rodolfo e Érica – dois rapazes debruçados sobre uma mesa de plástico, sentados numa cadeira de plástico, com os cotovelos fincados na mesa, e um casal, ele, branco e loiro, ela, negra de cabelos compridos, sentados à uma mesa de plástico, as cadeiras justapostas, ele à esquerda dela – assistiam ao filme Transformers, fascinados com os robôs alienígenas e com os efeitos especiais. Em um certo momento, o homem perguntou para a mulher:
– Quando o Brasil produzirá um filme com efeitos especiais tão bons?
E respondeu-lhe ela:
– Quando os Estados Unidos produzirem filmes com efeitos especiais mil vezes melhores do que os que produzem.
Um carro estacionou a poucos metros do carrinho de lanches. Dele desceram Paulo e Gislaine. Ele trajava uma bermuda verde-abacate e uma camisa do Barcelona, tendo, às costas, um nome: Messi; ela, uma saia florida, que lhe descia até a metade das coxas, e uma camisa verde-claro decotada estampada de pequenas estrelas amarelo-alaranjadas. Aproximaram-se do carrinho de lanches. Saudaram Rodolfo e Érica. Sorridente, Gislaine perguntou para Érica se o sobrinho dela já nascera, e pediu-lhe detalhes. Érica disse-lhe que João Camilo, seu sobrinho, filho de Mariana, sua irmã, nasceu na quarta-feira, e forneceu-lhe outras informações a respeito dele: o tamanho, o peso, a cor dos cabelos. Enquanto Gislaine e Érica conversavam, Paulo pedia para Rodolfo dois x-tudo, e um suco de uva – “Tinto, seco ou suave?”, perguntou-lhe Rodolfo – e um suco de açaí – o de uva Gislaine o beberia; o de açaí, Paulo.
Os dois rapazes que assistiam ao filme enquanto comiam o lanche e bebiam do refrigerante, voltavam a intervalos de tempo não muito curtos, a atenção para Gislaine. À outra mesa, o homem branco e loiro olhava para Gislaine com certa insistência; ao sentir o olhar da mulher que o acompanhava projetando-se sobre si, desviava-o, e simulava interesse pelo filme.
Assim que chegaram três moças ao carrinho de lanches, Paulo e Gislaine foram até uma das mesas desocupadas, e sentaram-se, ele à direita dela. Pouco depois, Érica levou-lhes os x-tudo e os sucos. As três moças sentaram-se, cada qual em uma cadeira, formando um triângulo, e conversaram, animadas.
Os relógios não anotavam dez horas quando Gustavo desceu de uma bicicleta e acenou para Gislaine e Paulo. Saudou-a com um beijo no rosto, e Paulo, que, com as duas mãos segurava o sanduíche, com um tapinha nas costas. Paulo, a boca cheia, nada lhe disse.
Gustavo disse-lhes que compraria um x-tudo e um refrigerante, estacionou a bicicleta ao lado da mesa, e foi até o carrinho de lanches, pediu para Érica um x-tudo e um copo de refrigerante de guaraná, e retornou à mesa à qual sentavam-se Paulo e Gislaine, puxou uma cadeira para si, e nela sentou-se. Assim que esvaziou a boca, Gislaine perguntou-lhe de Camila.
– Briguei com ela – respondeu Gustavo, ríspido. – Não quero falar dela. Virei a página.
O seu tom de voz excitou a curiosidade de Paulo e Gislaine, que se entreolharam; nenhum deles, no entanto, atreveu-se a dar sequência ao assunto, e calaram-se. Gustavo, conquanto declarasse que não queria que Camila fosse o tema da conversa, poucos minutos depois tocou-lhe no nome, e, sem que Paulo e Gislaine lhe fizessem alguma pergunta, revelou-lhes o episódio da sua discussão com ela e do rompimento do namoro, definitivo, declarou. Gislaine e Paulo, vendo-o expandir-se nas confidências, extraíram-lhe, com perguntas aparentemente desinteressadas, relatos minuciosos do que ocorreu durante a semana. Paulo ficou, ao mesmo tempo, perplexo e desconfiado; perguntou-se se Gustavo dava-lhes um relato fidedigno do ocorrido, ou se criara um roteiro, no qual apresentava-se como uma vítima humilde, digna de comiseração, de uma mulher sórdida. A reputação de Camila não inspirava uma imagem tão negativa; Paulo não acreditava que ela fosse capaz de ato tão ignóbil. E Gustavo, que Paulo conhecia muito bem, não era flor que se cheirasse, sabia, e evocou o caso dele com a Denise (que Gustavo traiu, e com uma das amigas dela); sabia que não podia nele confiar. Gislaine ouviu atentamente a história narrada por Gustavo; não teceu nenhum comentário, e nenhum julgamento fez, pois mal o conhecia e mal conhecia Camila.
Ao se despedir, à meia-noite e meia, de Paulo e Gislaine, ao lado do carro de Paulo, Gustavo, montado na bicicleta, com o pé direito no pedal, estendeu a mão direita a Paulo, que lhe oferecera sua mão direita, e apertou-a; ato contínuo, deu um beijo no rosto de Gislaine, que lhe oferecera o rosto, e afundou o pé no pedal ao mesmo tempo que lhes desejava boa-noite. Não havia deles se distanciado cinco metros, voltou-se para trás, e, olhando por sobre o ombro direito, fitou Gislaine; e voltou-se para a frente; após verificar que não havia nenhum obstáculo à sua frente, olhou por sobre o ombro direito, e fitou Gislaine, e nela concentrou o seu olhar até ela entrar no carro.