Navalhas Herdadas
Igor acordou chorando outra vez. Acontece toda noite, desde quando veio para cá. Deve ter sonhado com as navalhas. Possui uma coleção delas, cores, tamanhos e formatos diferentes. Herdou do pai, depois que este morreu. O próprio filho o encontrou todo retalhado. A relação entre eles não era boa. É o que ele me disse um dia desses. E conclusões precipitadas fazem parte do pensamento humano. Das ações também. Introvertido, sem família e amigos, atormenta as pessoas com aqueles objetos cortantes. Ninguém gosta dele aqui na pensão.
Sem que tenha uma noção exata do que se passa, tem muita habilidade no manuseio da arma. Mesmo assim possui vários cortes pelo corpo. Algumas vezes fica sentado na cama, brincando com aquelas lâminas afiadas e com o olhar perdido, talvez esteja enxergando o que só ele vê, através de um pensamento que foi buscar sabe-se lá onde. Em outras, caminha pelo quarto escuro dando cortes no ar. Isso me assusta, pois escuto o metal cortando o nada. Vá que numa dessas ele me acerta e não quero acabar como o pai dele.
Certa noite percebi ele falando sozinho, quase num sussurro. Havia acordado de outro sonho. Nos olhamos por algum tempo sem dizer palavra, mas foi como se tivéssemos dito muita coisa. Coisas que mais cedo ou tarde iria acontecer, não sonhadas e que ele mesmo buscou. Com lágrimas a escorrer pela face, adormeceu.
Passei alguns dias fora e no retorno à pensão notei que as pessoas se acumulavam em frente da casa. Os vizinhos falavam baixinho uns com os outros. Tentei entrar mas fui barrado por um guarda mal encarado. Ao pedir informação para um dos moradores, os que estavam à volta foram dizendo ao mesmo tempo: Horrível...nunca vi nada igual...já sabia que isso não ia dar coisa boa...sangue por todo o lado...a fulana encontrou ele desse jeito. Policiais abriam caminho entre os moradores carregando um saco preto.
Era o herdeiro das navalhas.