Motocicleta
“A vida é inevitável... A morte, uma escolha.”
Mais de cinco horas da tarde. Acelerou a motocicleta. A estrada estaria escura se não pilotasse mais rápido. O motor rosnou de um jeito diferente. Rouco. A motocicleta já apresentava o desgaste inevitável, inexorável do uso. Não se lembrou de quanto tempo a possuía. No sobressalto do primeiro quebra-molas, que demarcava o início da estrada, reiterou sua pressa. A noite desponta atrás da vegetação sem brilho de sua região.
O asfalto, por ter chovido nas horas anteriores, continha poças que espelhavam o vermelho embaçado do céu. O inverno começara. “O inverno é vermelho”. Pensou. O casaco que vestia era de couro e lã interna; e entre os buracos da peça o vento congelava seu peito. A jaqueta vistosa de couro, que antes, tão esteticamente usava, rasgara-se toda por esses anos e anos de uso. Ia ao trabalho de motocicleta. Todo dia o mesmo trajeto, a mesma pressa irritante, sem sentido de chegar. Trabalho, casa, estrada monótona... Rangeu os dentes. Seus olhos crisparam-se, castigados debaixo do capacete velho. A viseira opaca, amarelecida.
Conhecia os buracos e o esgarçado do piso. As curvas mais lentas, pelo cuidado com as poças, pareceu-lhes mais automáticas. Sem novidade.
Não que o dia tinha sido pior ou melhor que os outros. Um dia é sempre igual. Não havia mais distinção. Não havia mais dores, cores, esperas. A noite caía: mais uma. Era preciso comprimir o acelerador, cingir a pele fria debaixo do casaco de couro. Contrair o ventre. O invólucro do dia. Retinto dia vermelho. A carne submersa na velocidade.
Cada solavanco da motocicleta um espasmo. Noite secreta, injeta gasolina na veia, peia metálica sob seu corpo oco.
O vento que crispava sua vista agora já não incomodava mais que insetos que se chocavam na sua direção. Baques secos em seu peito envergado, em seus braços sob o casaco incômodo. Nojentos insetos quando ficavam presos, esmagados, na viseira empoeirada. Pedaços mortos, despedaçadas gosmas de asas amorfas. Exasperava a viagem de todos os dias. Sempre, sempre aquele embate. Estampidos secos de extermínio inevitável. A noite tomou seu lugar. Não daria mesmo tempo de correr mais e evitar o lusco-fusco do sol morno, entrecorte dos arvoredos bizarros, do desenho cansado da atmosfera senil do trajeto.
Os faróis dos carros, à meia luz, feriam seus olhos cerrados. Na beira da estrada, no limite entre o asfalto e o mato seco, invadindo o seu limite, figuras imprecisas se juntavam ao ziguezaguear de sua motocicleta velha. Urubus afugentados na pressa da carniça no bico dispensada. Flanar de asas pretas ao espasmo do ronco metálico. Voo cego.
Sentiu fome. O dia todo no trabalho e não se alimentara bem. A comida nos últimos tempos era algo automático. Alimento vão. Sentiu outro tipo de fome. Não soube bem atinar a que tipo de ânsia o atingia. A motocicleta engasgou não injetando o combustível no motor.
Ameaçava parar no meio da curva do carvalho, monumento vegetal que era a referência no meio do caminho. Árvore grande, frondosa. Sempre lhe pareceu o centro do mundo. Nunca viu árvore tão bela e grave. Sob sua sombra poderia morar sem dificuldade. Debaixo de suas folhas até um assassinato seria amenizado... O motor refugou mais uma vez. Num golpe de ideia, um despertar de sentidos fez com que se inclinasse sobre o tanque cálido de sua máquina e girasse, autômato, a chave da reserva. Mais um tranco interno da máquina, mais um renascer do caminho que, agora intacto em seu cenário, era todo, completamente noturno. “É tarde mesmo”. Não chegaria em casa na hora desejada. Estava escuro, um escuro absoluto.
Contraiu ainda mais o corpo. Estava meio anestesiado. Mergulhou no breu; se surpreendeu com o frio que aumentou bruscamente. Um frio e uma escuridão que se fundiam com o toque na motocicleta. Parecia que essa sensação não era externa. Vinha de dentro da motocicleta e se refletia no viés de sua existência. Sentiu-se extremamente só.
As estrelas, brilhos pequenos e loucos que se formavam no alto de sua cabeça, no cume de seu capacete gasto e que zuniam indiferentes. Eram pequenos vazados no casaco de couro, esbatidos. Os insetos, ainda mais repugnantes, clamavam por um paradeiro, no mínimo de um gesto, um aparato mais confortável. Uma vertigem intensa o tomou por completo. Titubeou e desacelerou progressivamente uma vez mais. O equilíbrio de sua vida vacilou por um instante. Ali. Em cima de uma motocicleta corriqueira. Um trajeto absurdamente corriqueiro e gasto.
Saiu desse torpor, dessa quase imobilidade, quando um carro, talvez dois, vieram à sua esquerda e o ultrapassaram com pouca solenidade.
Seguiram na sua frente por alguns segundos e desapareceram nas ondulações, nas curvas sobre as colinas da dianteira. Voltou à atenção da estrada, à noção do espaço readquirido. Frio. Suas mãos, sem luvas, estavam rígidas como de um morto. Galhos presos no acelerador, no freio. Galhos petrificados.
“Como cheguei até aqui?” Ponderou. Na verdade não pensou sobre a estrada, sobressaltos e distorções do trajeto. “Como cheguei até aqui?”. Não se importou mais com os insetos que se espatifavam no retrovisor da motocicleta, na viseira, esmaecidos em seu capacete vencido. Não se importou mais com aquela dose maciça de enredamento contrito que castigou seu anoitecer. “Como cheguei até aqui?”. Repetiu agora aos berros surdos, proferidos no calejar do subir, descer e contornar daquela estrada opaca de sua vida. “Como cheguei até aqui?!” Gritou de raiva e de asco de sua própria vida. Lágrimas embaraçosas turvaram ainda mais seu emblema. A noite seria infinita.
Uma luz tremulante que viu com o canto do olho morno, aquífero, avolumou-se e concretizou-se em um valente caminhão carcomido que fez com que ele e a motocicleta tremessem e vacilassem totalmente. Um galope súbito de espaço. Não caiu por pouco. Por pouco não perdeu o prumo. O caminhão balançou para a direita e, enfim, postou-se, desconjuntado, à sua frente. “Como cheguei até aqui?”. O caminhão, um desses ordinários que carregavam areia escorrendo pela caçamba sem cessar, um desses que todos os dias atravessavam seu trajeto de cá para o trabalho, de lá para casa, de lá para o serviço, de cá para a casca. O caminhão, aquela marcha lerda de monotonia. “Como consegui chegar até aqui?”. “Como, meu...” O caminhão, agora iluminado pela luz direta do farol de sua motocicleta, possuía uma dessas placas que se arrastam no cinza-azulado do asfalto, uma dessas placas inacreditáveis com frases de para-choque. Símbolo obrigatório dos cavaleiros das rodovias. O caminhão possuía apenas um desses letreiros. “Como, meu...DEUS!!” Não existiam frases, apenas: DEUS!
O caminhão seguiu. Mesmo lento, seguiu à sua frente. Lento, paquidérmico quase, foi sumindo no horizonte.
A motocicleta ficou parada no mesmo local da placa, do clichê. As luzes traseiras, o farol, as estrelas faiscando depois da rotina. Ficou ali esquecida. Ainda engrenada, ligada. Talvez um pouco afoita.
Seu antigo dono nunca mais foi visto no trabalho. Nem na casca.