Misericórdia

A caminho de um oásis no maciço de Hoggar, uma patrulha de Commandos de Chasse a serviço do exército francês na Argélia, foi emboscado por insurgentes num desfiladeiro. Os "commandos", argelinos de origem muçulmana em sua maioria, os chamados "harkis", foram completamente dizimados, com exceção de um jovem soldado, e de um "pied-noir", um cabo argelino de ascendência francesa. Os rebeldes, do Exército de Libertação Nacional, resolveram deliberar para saber o que seria feito dos dois prisioneiros, os quais aguardavam seu fim com estoicismo: nenhuma clemência poderia ser esperada do inimigo, o mesmo ocorrendo se as circunstâncias fossem inversas.

- O harki é filho desta terra, como nós - disse o "rakib" que comandava o grupo, para seus homens. - Deverá ser executado de modo mais ou menos doloroso do que o "pied-noir"?

Os guerrilheiros, em sua maioria, manifestaram-se favoravelmente a uma morte lenta e dolorosa, visto que o harki era um traidor do seu próprio povo.

- E quem deverá executar a sentença de morte? - Indagou o rakib.

Muitos dos insurgentes prontificaram-se a levar a cabo a ação, mas o rakib tinha outros planos.

- Na minha opinião, a tortura e a execução do harki devem ser feitos pelo "pied-noir". É o que ele faria com qualquer um de nós; é o que a França faz com todos nós.

Os homens acharam a proposta justa. Os prisioneiros apenas ouviam a conversa, aterrados, particularmente o harki.

- Esperem! - Gritou ele. - Não é justo que me vejam morrer nas mãos de um "pied-noir" sem direito de defesa! Se vocês estivessem na minha situação, talvez agora usassem um uniforme francês, não do ELN!

O "pied-noir", prevendo que precisava fazer alguma coisa antes que a situação se invertesse, também se manifestou:

- Eu sou tão argelino quanto vocês! Meu povo está na Argélia há 100 anos! Temos os mesmos direitos!

Os guerrilheiros gargalharam perante a tirada. Como então os "pied-noir" agora se arrogavam o direito de serem argelinos?

- São bons argumentos - avaliou o rakib, sacando a pistola do coldre e removendo cuidadosamente todas as balas do pente, menos uma. Colocou-a no chão, à frente dos prisioneiros e apoiou um pé sobre a arma.

- Eu tenho uma contraproposta: aquele que pegar a arma primeiro, poderá se suicidar. O sobrevivente, será torturado até a morte. Mexam-se, assim que eu levantar o meu pé...

Em círculo, os guerrilheiros apontaram seus fuzis para os dois "commandos"; qualquer gesto em falso, teria consequências dolorosas.

- Valendo! - Gritou o rakib, erguendo o pé.

- [28-01-2020]