Um Caderno, Uma Garota e um Psicopata
Capitulo 01
As pessoas não deveriam morrer aos domingos, quem sabe assim Yasmim não teria saído de casa para comprar flores.
A florista já a conhecia e, apesar de esforçar-se para parecer simpática, não conseguia esconder uma expressão de estranhamento. Não entendia aquela moça.
Bom dia! O que vai querer hoje, minha flor? - esboçou um sorriso pouco convincente.
Hum… - Yasmim observou as opções expostas nas prateleiras. Cheirou uma tulipa amarela e observou a etiqueta. Estava um pouco acima de suas possibilidades. - Bem, vou levar a de sempre, por favor. Yasmim não sentia-se a vontade naquela situação, afinal não estava comprando um café para pedir o de sempre, e sim flores fúnebres.
Yasmim observou que a florista estava com um penteado diferente, sempre achou interessante seu gosto exótico para moda, mas de uma forma estranha ela combinava perfeitamente com aquele lugar. Observou os outros clientes e o fato de como eles pareciam diferentes dela, um homem de terno comprando flores para sua amada, e uma velha senhora enchendo a pequena sacola com sementes de variados tipos, de certo, para trabalhar em seu jardim, que Yasmim imaginou devia ser tão gracioso quanto ela.
Alguns minutos depois, saiu da floricultura com meia dúzia de flores nas mãos. O céu estava nublado,esperava que não chovesse, não tinha trago uma sombrinha. O cemitério municipal de Curitiba ficava a cerca de dois quarteirões. No caminho reconheceu uma colega da faculdade vindo em sua direção, mas não se preocupou em cruzar com ela, a moça atravessou a rua para o outro lado, possivelmente para não ter que cumprimentá-la. Mentalmente Yasmim agradeceu a gentileza, não iria levar para o lado pessoal - era assim que curitibanos agiam.Não foi por acaso que escolheu aquela cidade para morar, mesmo fazendo apenas pouco mais de um ano, já sentia-se em casa, nesse sentido. Não tinha a necessidade de fingir simpatia ou forçar uma conversa. Tinha permissão para ser ela, de verdade.
Ao chegar no cemitério observou uma movimentação inesperada. Sabia que poderia juntar um pouco de gente, mas não esperava que tantas pessoas assim viessem para o enterro da Mulher Embalsamada, como os jornais passaram a chamá-la. Haviam até mesmo fotógrafos e jornalistas no local.
O caso escandalizou a opinião pública, nunca haviam visto tal coisa. Parecia algo que só se via e Hollywood.
Diana Ferrer fora encontrada sentada em seu sofá segurando uma xícara de chá, vestia-se impecável como sempre, sua beleza intacta, tudo parecia normal não fosse o fato de ela estar morta, o mais assustador foi que demoraram algum tempo para perceber que a mulher estava calada demais. Não havia qualquer pista sobre o sádico assassino.
Yasmim juntou-se ao aglomerado de pessoas. Não foi difícil identificar de quem era a maior dor ali. O homem estava debruçado sobre o caixão, aos prantos. Mãos prestativas e inconvenientes o puxavam para abraços.
– Estúpidos. – murmurou. Será que eles não entendiam que o único abraço que o confortaria agora estavam inertes dentro do caixão?
– Maldito! - gritou alguém na multidão. De repente o lugar foi tomado por um silêncio perturbador. Um homem aparentemente embriagado saiu do meio das pessoas aos tropeços com o dedo em riste gritando para alguém em especial. Não demorou para saberem que ele falava com o homem agarrado ao caixão, que Yasmim supôs ser o marido da mulher. Como em um efeito dominó, as pessoas que estavam à sua volta, a maioria fotógrafos, a empurraram, loucos para terem o melhor registro da cena.
Uma confusão começou a se desenrolar. O homem embriagado acusava o marido da mulher de tê-la assassinado. Os seguranças se aproximaram sem pedir permissão, imobilizando o homem que se debatia desesperadamente. Yasmim sentiu pena dele, seu sofrimento parecia legítimo. Mesmo com dois homens tentando contê-lo ele conseguiu se soltar e investir contra o marido. Isso causou pânico e antes que pudesse se dar conta do que estava acontecendo, ela já estava caída no chão.
No meio da confusão avistou uma coisa caída ao seu lado. Instintivamente agarrou o objeto e levantou-se.O empurra-empurra prosseguiu, até que uma voz autoritária se sobrepôs ordenando a todos que não fossem da família a se retirar.
Pouco a pouco as pessoas foram saindo, algumas a contragosto resmungando. Yasmim não sabia o que fazer com o que tinha achado. Não era a melhor hora para levantar a voz e perguntar, “De quem é este caderno?”, até porque ela era quase uma intrusa ali, não queria chamar atenção. Ficou segurando-o sem saber o que fazer, olhando para os lados em busca de algum reconhecimento no rosto de alguém. Mas todos estavam muito distraídos e afoitos com o que acabara de acontecer.
– Ei mocinha, não ouviu? Retire-se por gentileza. – disse um dos seguranças, que parecia extremamente aborrecido. Sem pensar duas vezes guardou o caderno na bolsa e saiu daquele meio.
Mas ainda não tinha terminado de cumprir o que foi fazer no cemitério.
Era fascinada por rituais de despedida desde que perdera quase todos que amava. Ela compreendia como ninguém a dor pela qual aqueles que iam enterrar os seus estavam passando.
Começou a circular pelo cemitério, passando pelas lápides de costume. Primeiro colocou uma das rosas que tinha comprado no túmulo do menino que morreu em um acidente de carro, tinha apenas seis anos de idade, a grama ao redor do seu túmulo estava úmida, como se todas as lágrimas derramadas diante dele, ali permanecessem. A outra rosa foi para um senhor que morreu de causas naturais. Somente duas pessoas vieram ao seu enterro, além claro da figura clandestina de Yasmin. Não havia nenhuma flor ou escritura em sua lápide.
Quando chegou ao túmulo de Julia Schmidt, “mãe e esposa dedicada”,dizia a lápide, resolveu dar uma olhada no objeto que guardara minutos antes.
“Nem todas verdades são verdades, nem todas mentiras são de fato mentiras. É uma questão de ponto de vista e do reflexo das lentes com as quais se vê o mundo.
Tudo depende se pra você ele é colorido como a vida ou cinza como a morte.”
Sentiu uma sensação que não soube descrever ao ler a frase. A capa do caderno era dura e branca, as bordas das páginas eram vermelhas e estava fixado com uma pequena corrente, como se faltasse um cadeado. Para dizer que era belo faltariam palavras, havia algo de mágico nele.
De quem seria? Indagou. Olhou ao redor novamente. A maioria das pessoas já haviam ido embora. Um pouco adiante avistou o coveiro, Sr.Francisco, falando com um casal. Ele desviou os olhos rapidamente para ela, como se tivesse pressentido seu olhar e fez uma expressão desconfiada, mas logo voltou a atenção para o casal. Ele nunca escondeu sua antipatia por ela. Parecia convencido de que Yasmin não batia bem da cabeça, afinal de contas, que tipo de pessoa visita enterros de desconhecidos?
Por um instante pensou em deixar o caderno com ele para o caso de alguém vir procurá-lo, mas logo retirou essa opção da mente, tanto por notar que ele estava ocupado e certamente odiaria que ela o interrompesse, quanto pela curiosidade que aos poucos ia tomando o controle de suas ações.
De repente, mais pessoas começaram a chegar ao cemitério. Eram jovens e adolescentes, com o visual gótico. Alguns davam risadas, outros bebiam em garrafas, provavelmente com álcool. Sabe-se lá o que vieram fazer ali, mas aquilo causou um pequeno incômodo em Yasmin e antes que eles a vissem ou fizessem qualquer comentário colocou o livro pela segunda vez na bolsa, prometendo a si mesma que iria devolver o caderno quando retornasse ao Cemitério.
Sendo assim, partiu. Já do lado de fora, olhou pra trás, a placa enorme anunciava seu lugar preferido na cidade: “Cemitério Municipal de Curitiba”. Talvez voltasse no Domingo que vem...a quem ela estava enganando? É claro que voltaria.
Capítulo 02
Assim que chegou no andar de número seis, ouviu uma porta abrir no corredor. Não demorou muito para ver os olhos atentos e curiosos de Lurdes, sua vizinha espiando-a por trás da porta entreaberta. Era incrível como sua audição era afiada. Poderia jurar que a velha Lurdes só estava esperando-a chegar para poder pedir ou implicar com alguma coisa. O que seria desta vez?
– Ô Yasmin?
Yasmin tentou passar reto, fingindo não ouvir, mas ela insistiu.
– Ô menina…
– O que é, dona Lurdes? - disse contrariada.
– Você não tem um pouquinho de açúcar pra me emprestar, não? – disse Lurdes com sua voz rasgada e aguda. – Sabe o que é, meu sobrinho tá fazendo...
– É… vou ver aqui, dona Lurdes. – interrompeu Yasmin. Ela sabia que se deixasse, Lurdes falaria durante meia hora sem parar. – Aguarde só um momento.
Sem esperar resposta, entrou em seu apartamento e fechou a porta atrás de si.
Bazuca logo apareceu para cumprimentá-la. Era um gato de rua que ela acolheu no primeiro dia em que chegou ali, vivia nas redondezas. Era rajado com algumas manchas amarelas, tinha até mesmo o rabo torto, resultado da maldade de alguém.
Depois de encher a tigela de bazuca com ração, jogou-se no sofá e ligou a tv , a notícia ainda era sobre a mulher, retirou os sapatos e percebeu que estava realmente exausta e provavelmente com alguns hematomas dos empurrões. A lembrança a fez despertar para o caderno que tinha na bolsa. Retirou-o com cuidado, e percebeu que ele era ainda mais impressionante do que notara. Uma pequena curiosidade sobre seu conteúdo começou a formigar inocentemente, quem sabe descobrisse o dono ou dona do caderno para devolvê-lo, se abrisse só a primeira página? Após criar uma desculpa convincente a si mesma resolveu folheá-lo. Mas antes de virar a primeira página, foi interrompida por irritantes batidinhas na porta.
- Lurdes. – bufou.
– Filha, minha filha, você tá aí? – gritava a vizinha do lado de fora. – É que eu preciso do açúcar logo. Vou receber visita daqui a pouco.
– Ok, aguarde um minuto por favor. - disse entredentes.
Yasmim foi para a cozinha praguejando baixinho, pegou a xícara mais vagabunda que tinha e colocou o açúcar. Já perdeu a conta de quantas xícaras a mulher já lhe roubou. Quando voltou para a sala, parou em choque, Lurdes estavam com com o caderno nas mãos.
– O que a senhora está fazendo? – falou com mais aspereza do que pretendia. Lurdes a olhou um tanto desconcertada.
– Só estava olhando.
– Aposto que é só isso que consegue fazer. – esbravejou, mas se arrependeu no instante que as palavras saíram, sabia que Lurdes era analfabeta.
O rosto da mulher se tingiu de vermelho, soltou o caderno com brusquidão no sofá, ele caiu aberto e um papel escorregou de dentro. Uma foto, uma simples foto que deixou Yasmin sem ar.
Antes que a mulher pudesse ver o conteúdo da foto, ela entrou na frente lhe estendendo a xícara de açúcar e a acompanhou até a porta. Não fez questão alguma de ser elegante, simplesmente bateu a porta na cara dela.
Em seguida correu para ver direito a foto. Era, sem sombra de dúvidas, horrenda. Nela havia uma mulher, nua, presa em um grande círculo que imitava a figura de um alvo, como aqueles que se vê em circos, com diversas facas fincadas pelo corpo. A maioria se encontrava em seu tronco, nos seios e na parte baixa da barriga, e uma estava ereta e fincada profundamente no centro de sua testa. Seu rosto estava sereno, como se não tivesse vivido aquele horror.
Com as mãos trêmulas sentou no sofá ao lado do caderno. Agora toda a ansiedade por desfrutar dos segredos contidos nele foi substituída por um enorme receio. A curiosidade porém parecia reger seus movimentos. Pegou o caderno com mais cuidado que antes, como se tivesse nas mãos uma granada sem pino.
Uma mancha vermelha quebrava a imaculada folha branca da primeira página. Não havia nenhuma indicação de quem seria o dono ou dona do caderno. Na segunda, porém, havia algumas coisas escritas com a mesma caligrafia da capa. Não havia como não ler…
“Você só percebe que não tem mais volta, quando tudo o que você quer é seguir em frente, mesmo que o ‘’em frente’’ seja um abismo sem fundo e o seu maior objetivo é se jogar nele”
Já com a foto da mulher morta esquecida do seu lado ela mudou de página. Esta, parecia um sumário; vários nomes listados com datas correspondentes à frente. Sem censura ela começou a folheá-lo mais rapidamente. Uma, duas, três vezes. Já desistindo de olhar uma por uma, ela passou as folhas por entre os dedos deixando as páginas fluírem.
Em quase todas as páginas existiam fotos – de pessoas mortas. Uma crescente onda de descrença e algo como desapontamento se apossou de si. Como algo tão bem feito e belo pôde se tornar uma coleção doentia de algum fanático por mortes bizarras? Então seus dedos param na página de onde a foto caíra. "5 de março de 2015. Fernanda Albuquerque, 34 anos. São Paulo." Yasmin pegou a foto jogada no sofá e colocou na pequena moldura feita a mão na página, se encaixava perfeitamente, do outro lado a mesma mulher aparecia sorridente. Uma foto dela viva e outra morta. Abaixo encontrava-se um pequeno texto.
“Eu a conheci numa rápida ida ao mercado. E lá no corredor de frios estava ela: Fernanda. Eu me pergunto como o destino pode ser tão filho da puta, a vida é assim, algumas pessoas simplesmente estão na hora e lugar errados. Ela precisava ter puxado assunto comigo? Eu podia sentir toda a carência afetiva e falta de calor humano que ela emanava. Era uma presa tão fácil que eu não poderia simplesmente virar as costas.
Fizemos amizade e depois de uma semana marcamos nosso primeiro e último encontro. Eu sugeri visitarmos um Circo que estava na cidade. Só não a avisei que na data marcada ele não estaria aberto ao público. “
Os relatos seguintes foram tão assustadores que Yasmin prendera a respiração sem perceber, quando o fôlego lhe faltou, fechou abruptamente o caderno. Ele descrevia todo o ritual de violência que certamente culminaria no fim trágico da moça.
Só podia ser ficção, pensou. Um louco qualquer pegou fotos de mulheres mortas na internet e criou histórias para elas. É bizarro, mas criativo se ignorar a lógica de tudo aquilo. Já relaxando com a explicação que criara para si mesma, passou a folhear o caderno agora com certo fascínio.
A segunda metade do caderno era diferente da primeira. Haviam apenas fotos das pessoas vivas e ao lado um espaço para colocar as de morta. Yasmin franziu o cenho. Será que o cara não terminou o caderno? Perdera antes de concluir? Uma onda pequenina de culpa a assolou.
Havia os mesmos relatos de como conhecera a pessoa e de como ela morreria, ou… um pensamento cruzou sua mente, “como irão morrer”. Afogamento, atropelamento, estrangulamento- as mais variadas causas.
Olhou pro relógio aturdida, estava lendo o caderno há mais de uma hora. Precisava dormir. Guardou-o e foi tomar banho. As imagens porém, não queriam sair de sua cabeça, as escritas tampouco. Com certeza teria pesadelos essa noite.
Capitulo 03
Yasmim acordou tremendo com um vento congelante invadindo seu quarto. Pelo jeito havia geado. Como sempre esquecera de fechar as janelas. Como morava no sexto andar, não tinha muitas preocupações em relação a ladrões e pessoas a espiando.
Era segunda feira, teria um dia cheio pela frente.
Se espreguiçou na cama e tateou em busca do seu mais novo objeto de desejo. O caderno foi sua companhia durante a noite.Tirando as partes das fotos e toda a bizarrice, o resto era fascinante. Do nada se via rindo sozinha com um humor sagaz do autor e a profundidade de suas palavras, Tinha trechos que até decorava de tão bons que era.
O Assassino da história acabara se tornando seu personagem preferido em muito tempo. Já nas primeiras páginas o autor assina simplesmente como Sr F. Yasmim ficou intrigada porque em nenhuma outra parte do livro dizia seu nome real. Em vão tentava adivinhar o que significaria aquele “F”, seria Fernando, Fábio ou Fabrício? Talvez fosse Francisco ou Fred.
Ao contrário das maiores de histórias que leu, o assassino ali não era um personagem vitimizado ou movido por questões passionais. Ele acreditava que estava fazendo algum tipo de arte, em que as pessoas eram seus instrumentos. Yasmim sentia certa inquietação por sentir uma empatia muito maior com ele, do que com as vítimas,que em sa maioria eram pessoas vazias, ou muito perdidas. Mas logo lembrava a si que tudo era ficção e ela sempre gostou mais dos vilões. Não se sabia o porque, mas parecia que os autores sempre acabavam fazendo os vilões mais inteligentes e interessantes que os outros personagens.
Olhou para as últimas vinte páginas em branco do livro com certa tristeza, teria adorado ler mais sobre aqueles novos personagens. Consultou o relógio, dormira demais. Precisava ir para a faculdade, se sua tia soubesse que tem faltado às aulas, com certeza a obrigaria voltar para casa. E tudo o que menos queria era voltar para aquela bolha, não quando deu tanto trabalho para ter sua carta de alforria. Desde a morte do seu pai, vivera com ela, não era uma pessoa ruim, Yasmim sabia que ela se esforçava para criar seus dois filhos, mais uma sobrinha desajustada. Mas os gênio das duas não funcionam juntos e tudo que ela menos queria era ser um peso pra alguém, assim que a pequena herança do seu pai foi liberada, não pensou duas vezes, pegou sua mala e ali estava ela.
Depois de tomar um banho e arrumar suas coisas preparou-se para descer sem ser flagrada pela Sra Lurdes. Uma discussão podia ser ouvida no andar debaixo. O drogado parecia estar quebrando tudo em casa. Espantava-se com o fato de que ele ainda tivesse alguma coisa para quebrar. Desde que chegara ali a pouco mais de dois meses, esses ataques eram rotina. Depois de colocar comida para Bazuca e dar-lhe instruções para não se aproximar da casa de Lurdes, ela saiu.
O pátio do prédio da Reitoria da UFPR estava envolto em neblina. Era um começo de manhã gélida em Curitiba. Yasmin enxergava não mais que três palmos à sua frente. Como sempre, a fila para entrar em um dos elevadores estava quilométrica, mas naquele dia ela não estava com cabeça. Talvez subir dez andares a pé até sua sala a fizesse desanuviar, e foi o que ela fez.
Um pouco suada e totalmente esbaforida, finalmente chegou a sala. Sua carteira, a última da fileira mais longe da porta estava esperando-a. Alguns alunos já estavam presentes, formando rodinhas de conversas nas quais Yasmin não estava interessada. Olhou para os rostos deles, a fim de dar “bom dia” caso um deles a encarasse, apenas duas pessoas o fizeram. Sentou-se em sua carteira e aguardou o professor de Literatura Inglesa chegar na sala. De acordo com o relógio acima da lousa faltavam apenas três minutos para isso acontecer.
Segundos antes de ele entrar na sala, os celulares de todos da turma apitaram em uníssono. Era o aplicativo anunciando uma nova mensagem, e pelo jeito foi para o grupo da Turma inteira. Todos pararam o que estavam fazendo para dar atenção a seus aparelhos, menos Yasmim.
– Que droga!. – reclamou uma das estudantes. – É só mais uma bobeira, não aguento mais receber essas coisas
– Ah Maria, para de ser chata! – esbravejou um outro aluno
Nessa hora o professor já havia entrado e estava se acomodando em sua mesa.
– O que está acontecendo? – perguntou diante o burburinho dos alunos.
– Estão usando nosso grupo para compartilhar atrocidades. – respondeu Maria. – No momento é a foto de um homem em pedaços, desse jeito vou ter que sair.
Alguns vaiaram a aluna e uma discussão começou, mas logo foi interrompida pelo professor que tinha fama de durão. O assunto logo é esquecido graças ao comunicado de um teste surpresa.
Enquanto fazia o teste, seu celular não parava de vibrar anunciando a chegada de novas mensagens. Os alunos conversavam escondido. Yasmin pegou o celular para desativar o recebimento de mensagens, mas sem querer clicou em uma das notificações e acabou abrindo a conversa. Assustou-se quando viu as fotos das quais Maria estava falando.
Tinha umas dez, cada uma com um pedaço diferente do corpo de um homem. Estava em mau estado, já putrefato. Foi rolando as mensagens até chegar na cabeça, curiosa, deu um zoom para tentar ver mais detalhadamente.
Um arrepio percorreu sua espinha. Deu o máximo de zoom que podia buscando diferentes ângulos da cabeça. Não dava para ter certeza do que estava vendo, dado o estado de decomposição do cadáver, mas do lado esquerdo da face parecia haver uma tatuagem em forma de raios.
– Merda. -praguejou. Só que alto demais, levantou a vista do celular e percebeu que todos estavam encarando-a, inclusive o professor com uma enorme carranca.
- Está difícil demais pra você Yasmim? - perguntou sarcasticamente. Yasmim não respondeu de imediato, sua garganta ficou seca e suas mãos começaram a soar. Ela nem mesmo se dá ao trabalho de olhar pra ele. Continua olhando fixamente para a foto no celular. Só pode ser alguma brincadeira.
O professor continuava dizer algo mas ela não ouvia, rapidamente pegou o teste inacabado e entregou em suas mãos, pegou sua bolsa e saiu, sem se preocupar com o reboliço atrás de si.
Todo o trajeto até sua casa passou como um borrão, encostava a cabeça no assento do ônibus e as palavras invadiam sua mente. ‘’Desde que o vi pela primeira vez meu instinto era cortá-lo em diversos pedaços e fazer um desenho com eles.”
O ônibus parou e ela saltou para fora rapidamente.
Chegou ao prédio pouco tempo depois, sua aparência devia estar péssima, pois alguns moradores a olharam de soslaio. Subiu correndo as escadas e acabou esbarrando em alguém.
– Cuidado anjo, não vai querer rolar pela escada e estragar esse lindo corpinho.– disse Douglas, seu vizinho de baixo asqueroso. Ele a segurou pela cintura sem qualquer necessidade. Estava tão aturdida que demorou a reagir.
– Eu estou bem, pode tirar as mãos de mim. – esbravejou o empurrando.
– Um dia vai querer minha mãos…
Não espera para ouvir mais um de seus comentários pervertidos, desvia dele e corre até seu apartamento, deixando a risada sinistra dele para trás.
Quando chega, vai direto até o caderno. Respira fundo, sabe exatamente onde abrir.
“Gilberto Fonseca, 36 anos. Segurança Pessoal. Rio de Janeiro. Causa da Morte: Esquartejamento. Nosso último encontro está marcado para: 14 de Abril” Uma foto dele carrancudo, porém vivo, destacava a página.
“ Não tenho muito apreço por celebridades. Mas fui parar numa festa de gala onde ninguém que fosse convidado tinha menos de seis dígitos em sua conta bancária.. A história de como consegui é muito longa. Encurtando, estava lá fotografando uma socialite, que demorei bastante tempo para conquistar um lugar em seu círculo. Alguma coisa nela me encantava, talvez seu talento para atuar - havia sido modelo por um pequeno período de tempo e em cada foto que tirava, parecia alguém diferente - e eu queria que ela fizesse um último trabalho. Queria que ela representasse ela mesma. Mas isso é história pra outra página.
Esse pequeno espaço, apesar de ter tudo a ver com ela, é dedicado a outra pessoa. Alguém que cruzou o meu caminho no momento errado.
Sou o tipo de pessoa pontual e Gilberto bagunçou minha agenda quando insistiu em acompanhar minha presa para todo lugar. Eu não poderia terminar com ela, sem terminar com ele também.
O cara era um carrapato e eu não tive outra escolha. Confesso que poderia ter sido mais gentil, mas todos sabem o quanto é irritante uma vela atrapalhando tudo.”
Em outra parte, dizia:
“Esse rapaz conseguiu me irritar de tal maneira que optei por me sujar mais do que gostaria. Gosto de trabalhos limpos, imaculados, sem exageros. Mas com ele não foi possível, desde que o vi pela primeira vez meu instinto era o cortá-lo em diversos pedaços.
. Sua aparência era deprimente, e devo dizer que ele gritou como uma menina quando comecei. Implorou insistentemente, mas quando o destino já está definido, eu nada posso fazer. Contudo, não o considero um trabalho digno de ficar registrado, quem sabe eu mude de ideia futuramente, mas por enquanto sua morte não é digna de estar aqui. “
Jogou o caderno longe como se tivesse pegando fogo. A passagem sobre Gilberto era uma das poucas que não havia uma foto do morto . Pôde sentir seu sangue se esvaindo do rosto. Foi até o computador, “ Assassinato por esquartejamento de Gilberto Fonseca’’, digitou na busca. Centenas de resultados apareceram, clicou no primeiro e esperou. Não precisou nem ao menos olhar os detalhes do homem morto; rolando para baixo a página, havia uma foto dele vivo, e não restava a menor dúvida de que era o mesmo Gilberto descrito no livro.
Lá dizia que ele foi encontrado morto nesta manhã pela polícia em uma casa abandonada, mas que pela perícia já estava morto há pelo menos uma semana. Desaparecera sem motivo aparente, deixando a família desesperada.Não havia qualquer pista sobre o autor do crime.
Ao ler isso sentiu um aperto no peito. Ela “sabia” quem tinha feito isso. O Sr. F. Seu segundo pensamento, foi na verdade um arrependimento: o de não ter devolvido aquele maldito caderno para o cemitério como havia prometido anteriormente. Agora estava ligada aquele crime.
Uma onda de vertigem a atingiu, esgueirou-se até a cama e ficou deitada olhando pro teto, sentindo tremores. “E se ele souber que eu sei?”. Não era nada agradável a perspectiva de saber um segredo de um assassino. Era como se ela não tivesse autorização pra aquilo.
“Espere um minuto.”, pensou. “Se este caderno fosse mesmo uma espécie de diário macabro, teria alguma menção a Mulher embalsamada nele, afinal se tudo que estava pensando fizesse sentido, o assassino esteve no enterro”, e até aquele momento, Yasmim não havia encontrado nada sobre ela. Engraçado, a forma como ela morreu tinha tudo a ver com as ideias do senhor F.
Pôs-se a revirar o caderno em busca de alguma pista daquela mulher. Mas não encontrou nada. Estranho. Será que ele não teve tempo de colocar ela ali, ou realmente era apenas um autor de ficção policial e o resto era imaginação de Yasmim? Ou talvez ele era um assassino, mas a Mulher embalsamada não havia sido vítima dele?
As perguntas que permeavam sua mente exigiam respostas, apesar daquela voz da razão está dizendo baixinho para ela jogar esse caderno fora e esquecer tudo isso. Mas como conseguiria fazer isso?
Decidiu olhar mais uma vez. Revisou todas as fotos de mulheres para achar alguém que lembrasse Diana, até que chegou naquela página grudada em outra com uma substância suspeita de cor branca.
Com cuidado tentou separar as folhas sem causar nenhum dano maior, mas não obteve sucesso e acabou rasgando a folha no meio. “O Sr. F me mataria se eu soubesse que eu rasguei seu caderno.”, pensou, mas logo se viu atormentada com a possibilidade desse jargão se tornar real.
Mesmo cortada ao meio com o jeito desastrado de Yasmim, mesmo com a foto danificada pelo produto não havia dúvidas que aquela mulher loura e vestida de gala na foto do caderno era Diana, a Mulher embalsamada.
uma luz acendeu sobre sua cabeça, como se dois pontos se ligassem naquele instante e fizessem uma corrente elétrica. A socialite a quem o Sr. F se referia no texto de Gilberto era Diana. O destino dos 3 estava entrelaçado.
“Diana Férrer, Modelo, 29 anos, Causa da morte: Corpo Embalsamado.”
“Ela era um camaleão. Em cada pose que fazia, em cada foto tornava-se um outro alguém. Aquele olhar era tão fatal que conseguia me deixar acuado, como se eu fosse uma presa e ela uma leoa. Podia-se pedir para ela fazer qualquer expressão, corporal ou facial, e ela o faria com perfeição. Ela podia simular qualquer emoção.
Porém às vezes parecia que os personagens não conseguiam sair dela, mesmo quando a sessão de fotos acabava. Eu nunca sabia como ela estava se sentindo realmente. Queria libertar a verdadeira Diana. Queria que ela fosse fotografada interpretando ninguém além de ela mesma. Foi nesse momento que senti a necessidade de eternizá-la.
É como diz aquele velho ditado, quando você quer alguma coisa, melhor fazer você mesmo.
Mas antes, eu precisava passar um tempo com ela, para conhecê-la um pouco melhor, isso é claro, se eu conseguisse me livrar do seu segurança.”
O texto estava encerrado aqui, e não havia nenhuma foto de Diana morta. Parecia que ele tinha perdido o caderno antes de terminar o registro.
Agora Yasmim sabia de uma ligação entre o assassino e duas das vítimas.
Foi a página em que começava as “Fotos dos vivos”, como batizou aquela sessão do caderno. Até ali todas as histórias estavam encerradas, era aqui que começava a parte dos assuntos pendentes.
A suposta próxima vítima seria uma mulher. Luana Alvarenga. 18 anos. Uma jovem bonita aparecia na foto, tirada enquanto ela praticava um mergulho.Se aquilo tudo fosse real, o assassino pretendia matá-la dali uma semana. Por afogamento.
O que pretende fazer,Yasmim? – Questionou a si mesma. Se não fizesse nada, aquela jovem poderia morrer.
A coisa mais óbvia seria ir à polícia. Se pensasse muito, poderia acabar desistindo. Yasmin nunca teve nenhum tipo de contato com a polícia, e só de pensar em policiais lhe vinha um certo receio.
Capítulo 04
Havia uma certa vantagem em se morar no centro da cidade. Todas as coisas ficavam próximas de casa. O cemitério, a faculdade e a delegacia também.
Quando chegou nesta última, notou uma movimentação estranha na rua, em frente ao edifício de polícia. Faixas amarelas coladas no prédio e cartazes com frases em vermelho permeavam o lugar. Se aproximou o suficiente para entender o que estava acontecendo: uma greve. Era isso, Yasmin era a pessoa mais azarada do mundo, não era a toa que em seus pulsos haviam algumas cicatrizes que tentava esconder com blusas e camisetas de manga longa, mas isso era outra história.
Agora que encontrava-se ali, não poderia desistir simplesmente e ir embora.
– Com licença. – chamou a atenção de um policial que localizava-se um pouco distante do núcleo da manifestação. Ele se virou para ela.
– Pois não?
– Eu… preciso fazer uma denúncia. Essa manifestação é só aqui, ou em todas as delegacias? – perguntou.
– Em todas, mas tem um pequeno efetivo atendendo. É só chegar ali naquela porta… – ele apontou para uma porta de vidro limpa, sem nenhum cartaz.
– Ok, obrigada. – agradeceu ela, mas o policial já tinha desviado sua atenção para outra coisa.
Lá dentro todos os bancos de espera estavam lotados e havia apenas um atendente. Yasmin retirou uma senha, de número 202 e arranjou um canto para se encostar. Sua espera seria longa.
Duas horas e meia depois, finalmente sua senha foi chamada.Foi conduzida para uma salinha, onde uma policial mantinha-se sentada em frente a um computador, mascando um chiclete.
Ficou meio acuada na porta durante alguns segundos, até a mulher finalmente desviar os olhos do computador para ela.
– Sente-se. – ordenou.
Yasmin obedeceu, ainda meio sem jeito.O cheiro do chiclete preenchia toda a sala.
– Então, senhorita…? – Yasmin demorou um pouco para entender.
– Yasmin. - disse.
– O que a trouxe aqui? –Yasmin leu a etiqueta na camisa da mulher: Sargento Brando, dizia.
Não sabia como começar. Tentou encontrar palavras, mas elas não vieram. A sargento lançou-lhe um olhar frio, com seus olhos castanhos em formato de peixe morto. Yasmin se obrigou a falar.
– É que…encontrei este caderno no cemitério e no começo achei que era tudo uma brincadeira… mas depois o assassinato aconteceu.
– Que assassinato e que caderno, senhorita?
Yasmin se apressou em tirá-lo da bolsa, e mostrou-o para a policial. Sua mão estava suando e tremendo.
– Esse. – disse. A polícial o pegou, e começou a folheá-lo, ao mesmo tempo em que atendia uma ligação. Yasmin ficou apreensiva, esperando.
Enquanto ouvia o que a pessoa do outro lado da linha dizia, a policial analisava o caderno, franzindo o cenho algumas vezes.
– Já falei pra não transferir ligações dessa pessoa pra mim, Rosa. Que droga! – esbravejou ao telefone, Yasmin não sabia se ela estava mesmo prestando atenção no caderno, ou se tinha o deixado em segundo plano.
Alguns segundos depois a sargento encerrou a ligação. Aproveitou o momento para falar:
Um pouco depois da metade, você verá o relato do assassinato de um homem cujo corpo foi encontrado esta manhã no Rio de Janeiro, chamado Gilberto Fonseca.
A Sargento continuou a mexer no caderno como se não tivesse nem ouvido, parecia estar em outro mundo. Yasmin continuou, em expectativa: – Depois dele, tem o relato do assassinato de uma outra mulher, que está marcado para acontecer daqui a alguns dias.
Arqueando uma das sobrancelhas, a mulher olhou-a com uma expressão desconfiada. Enquanto ela permanece em silêncio, piscando algumas vezes falou:
Espera aí, vamos começar de novo. Devagar, ok? – disse Brando, um pouco asperamente. – Esse caderno é seu?
Bem… não.
De quem é, então?
Eu o encontrei no cemitério municipal.
No cemitério? Você estava indo visitar algum parente seu?
Na verdade… não.
Novamente o telefone celular da sargento começou a tocar, e ela atendeu sem hesitar com um sorriso no rosto. A ligação durou intermináveis minutos e Yasmin passou a questionar se havia feito uma boa escolha. Enquanto a mulher falava alguma coisa sobre uma festa surpresa para um tenente-coronel que ia se aposentar, olhou pela janela em busca de quaisquer outras pessoas que pudessem ouvi-la. A policial terminou a ligação e olhou para a jovem como se não soubesse como ela foi parar ali.
Bem,onde estamos? Você falou algo sobre cemitério..O que você estava fazendo lá, então?
Isso é mesmo necessário? - tentou mudar de assunto. - Tem um assassino a solta, e nesse livro conta tudo sobre a próxima vítima dele… Vocês precisam evitar esse assassinato!
Calma, calma aí, mocinha. Eu faço as perguntas aqui, ok? Me diga, o que fazia no cemitério?
Eu… tenho costume de visitar o cemitério.
A policial fez uma expressão de desentendida.
É um assunto particular, se não se importa… mas basicamente tenho por hábito passar um tempo no cemitério… me faz lembrar do meu pai que morreu a pouco tempo. Fui tantas vezes no cemitério que… fiquei acostumada, e em uma dessas visitas, encontrei este caderno.
Então… você vai no cemitério para fazer nada? Só por ir?
A jovem resolveu contar sem delongas; a pressão da mulher estava funcionando.
Eu visito enterros de outras pessoas. - confidência. A policial arregalou os olhos. Esse não é o tipo de coisa que se espera ouvir. - Mas enfim, não é isso que vim discutir aqui, sem querer desrespeitar a senhora.
Olha menina, essa história toda é muito estranha. – pela forma como a sargento mediu Yasmin, a história não era a única coisa que ela estranhou. Mesmo assim, a jovem insistiu:
Mas olha, olha aí, depois da metade do livro, você vai encontrar tudo… todas as informações… – estendeu o braço para apontar para algo no caderno, nesse momento, sua manga encolheu-se deixando a mostra a vergonhosa cicatriz. O olhar das duas se encontraram, a jovem rapidamente cobriu o braço exposto. A sargento engoliu em seco, e antes que Yasmin pudesse dizer qualquer coisa, a mulher a interrompeu friamente.
Olha menina, eu não sei que brincadeira é essa que você está fazendo, mas sugiro que pense duas vezes antes de vir aqui na delegacia tentar pregar uma peça nos policiais. Vejo claramente que você sofre de algum transtorno mental… e certamente não deve ter consciência dos seus atos, nem deve imaginar o quanto esse seu livro é doentio.
“Doentio?”, repetiu mentalmente Yasmin.
Mas escuta, esse livro não é meu! E não é uma brincadeira… uma mulher vai ser assassinada! - Yasmin insistiu, mas logo sua insistência se provou sem sucesso.
Querida, por favor não quero ser rude...mas, já trabalhei numa instituição que atendia pessoas com certos...problemas psicológicos. – disse hesitante. – reconheço alguém assim quando vejo. Entendo que você não pode ser penalizada por suas ações, mas agora, quero que me dê licença, olhe em volta, preciso atender esse tanto de pessoas, com problemas reais, tudo bem? Nosso efetivo está limitado como você bem pode observar, então vamos encerrar por aqui?
Eu não sou… – tentou se explicar, mas o argumento da mulher de que era uma louca a deixou atordoada.
Brando tocou uma campainha na mesa. Yasmim deu um pulo, assustada. Olhou em volta, imaginando que poderia ser alguém vindo prendê-la. Constatou que a policial realmente não lhe deu nenhum crédito, e que pelo visto era a única atendendo na delegacia, levantou-se da cadeira sentindo vergonha por estar ali, pegou o caderno com as mãos trêmulas.
Tudo bem, eu vou ir embora. - murmurou. - Me… desculpe.
Ok. – respondeu friamente a outra, lançando um último olhar de repulsa ao caderno.
O vento frio foi uma carícia bem vinda, quando saiu da delegacia. O caderno na sua bolsa de repente passou a pesar como mil tijolos.
Respirou fundo e fechou os olhos, odiava a forma como se tornava fraca quando era exposta de alguma forma. A confusão de protestos ainda continuava, assim como a intensa movimentação de pessoas entrando e saindo. Sentiu-se não apenas como uma fugitiva, mas agora cúmplice do que estava por vir.
Olhou para todos os lados mas não sabia que rumo seguir. Uma lixeira a sua frente lhe deu uma ideia. Pegou o caderno da bolsa e sem hesitar jogou lá dentro. Não era problema dela. Não queria ter nada a haver com tudo isso. De loucuras já bastavam as suas.
Sem pestanejar, foi afastando-se da lixeira até estar longe. Quanto mais caminhava mais seus pés pareciam pesar. Quando já estava a uma distância que não podia mais ver a lixeira, correu.
Não para longe, mas de volta.
Chegou em casa suada e esbaforida. Deitou-se do sofá e depois de alguns minutos abriu a bolsa. Amaldiçoou-se por não ter conseguido deixá-lo para trás. Passou as mãos pela capa branca, agora com pequenas sujeirinhas e tentou limpar.
O destino agora estava em suas mãos.
Capítulo 05
Após a tentativa frustrada na delegacia, ainda tentou a polícia por denúncias anônimas, o que não surtiu o efeito esperado; assim que ela começava a falar de caderno, cemitério e assassinatos, a pessoa do outro lado da linha achava ser um trote. Precisava ser mais objetiva. Pesquisou todas as mortes que conseguiu do caderno, algumas ainda constavam como desaparecidas. Outros casos estavam marcados como resolvidos. Ela não podia simplesmente ir até os familiares e dizer o que aconteceu, com certeza se meteria em confusão. Seu histórico não era dos melhores. Poderiam achar que tinha alguma participação naquilo. E claro, depois daquela conversa na delegacia, temia que fosse acabar em uma clínica psiquiátrica se continuasse insistindo. Afinal de contas, estava num país que resolvia apenas oito por cento de seus crimes. Contar com a eficácia da polícia era pedir demais.
Sendo assim, ela tinha duas escolhas: fingir que aquilo não estava acontecendo coisa que fazia muito bem, ou fazer de tudo para salvar a estranha que estava marcada para morrer: sozinha.
Analisou pela enésima vez a foto da próxima vítima no caderno, até mesmo escaneou para ver detalhes ao fundo. O lugar onde aparecia nadando era sem sombra de dúvidas um parque, só não conseguia identificar qual.
Enviou a foto para um colega da faculdade que era fera nessas coisas, e ele aceitou ajudá-la. Aguardou em frente ao computador ansiosa pelo resultado, até que um alerta anunciou a chegada de um novo email.
Ela abriu rapidamente, era dele, com a foto em maior resolução e com detalhes bem mais nítidos.
Mostrava um rio, mais especificamente uma represa. O mirante no centro da foto não deixava dúvidas, era o Parque Passaúna, que ficava na divisa de Curitiba com Campo Largo.
Provavelmente era lá que o feminicídio iria ocorrer.
O destino só podia estar lhe pregando uma peça. Não só ela sabia onde, como e quando aconteceria o assassinato, como estava mais próxima do que ousou imaginar, uma vez que o senhor F. era um matador viajante.
O próximo passo seria pesquisar nas redes sociais pelo nome da garota, Luana Alvarenga. Havia pelo menos algumas dezenas delas. Comparou as imagens de perfil com a foto do caderno até encontrar alguma que se parecesse.
Entrou no perfil de uma moça que possuía várias fotos nadando. Em algumas estava em uma piscina olímpica, em outras, estava no mesmo parque relatado no caderno, pelo visto era onde costumava treinar.
A cor do cabelo batia, o corte também. Na foto do caderno não era possível enxergar bem detalhes como a cor dos olhos ou marcas de expressão, pois ela estava meio em movimento. Mas até então,tudo indicava que se tratava da mesma moça.
Com um perfil falso que criou para esse fim - não arriscaria expor-se mais uma vez, como fez na delegacia - decidiu entrar em contato com Luana.
Yasmin: Olá. Você não me conhece, mas eu tenho uma coisa muito importante pra te falar.
Aguardou por uma a resposta ansiosamente. Dez minutos de espera de repente viraram três horas. Até que finalmente Luana visualizou a conversa. Porém, nada respondeu.
Frustrada, resolveu ser mais direta. Digitou:
Yasmin: É um assunto de vida ou morte, literalmente. Peço, por favor, que preste atenção no que vou lhe dizer, e o mais importante que acredite em mim. Eu tenho informações que dizem respeito a seu… assassinato.
Não havia um jeito simples de falar sobre isso e o tempo estava se esgotando. Hesitou antes de enviar. O que estou fazendo? Pensou. A menina ia achar que ela era uma louca.
Olhou para a mensagem e para o relógio, o tempo passava e ela precisava tomar uma decisão. Mesmo que na hora parecesse loucura, a menina lhe agradeceria depois, concluiu.
Dane-se. - disse clicando em enviar.
A resposta veio rápido dessa vez. Não conseguia mais enxergar o perfil de Luana, seu perfil falso tinha sido bloqueado.
Ficou olhando para a tela do computador por um tempo indefinido, a complexidade da situação tomou conta de sua mente, uma pessoa iria morrer e só ela sabia disso, uma pessoa iria morrer, uma pessoa iria morrer. Bazuca enroscou-se em uma perna, pedindo por comida. Isso a trouxe de volta do transe momentâneo.
Sua mamãe é uma burra, sabia? Se mete onde não deveria. Está com fome? - perguntou segurando-o no colo. Foi até a cozinha e encheu sua vasilha com ração, os movimentos eram automáticos, parecia inerte mas sua mente estava em um turbilhão.
Analisou as possibilidades, não adiantaria tentar falar com ela pela internet, ainda mas com um perfil falso, a quem ela queria enganar? Faria a mesma coisa caso alguém dissesse algo assim. Poderia tentar descobrir seu número e falar mais diretamente, mas temia que o resultado fosse o mesmo. Falar com algum parece seria mais catastrófico ainda. Só lhe restou mais uma opção.
Capítulo 06
Chegou ao Parque um pouco depois das nove horas da noite, passou do estacionamento que estava razoavelmente vazio e foi direito ao Mirante, que era o local mais próximo da área onde Luana estava na foto. O plano era simples: não havia um plano. Apenas uma coragem que não sabia de onde surgiu, coragem essa, tinha que admitir, ia se esvaindo progressivamente. Levava consigo apenas uma faca e o celular. Riu de nervoso com a possibilidade de precisar usá-la. Devia estar mesmo fora do seu juízo perfeito, concluiu.
Sentia que estava ali mais para comprovar o que iria acontecer para si mesma, que qualquer outra coisa. Mas por via das dúvidas decidiu que ligaria para a polícia ao menor sinal de perigo. Uma ligação anônima e desesperada que faria com que chegassem antes de qualquer coisa ruim acontecer. Pelo menos parecia um boa ideia.
Notou que haviam algumas pessoas no meio de umas árvores, conseguia ouvir suas risadas. Estava escuro, ela poderia apenas supor o que faziam. Talvez estivessem bebendo e se drogando, ou fazendo alguma orgia.
Caminhou pelo parque procurando por Luana, foi e voltou, e nem sinal dela. A cada minuto olhava pra água, totalmente negra, com o coração na mão, esperando que o corpo da garota emergisse a qualquer momento.
O Parque ficava cada vez mais vazio...
Um homem suspeito apareceu vindo em sua direção, surgido sabe-se lá de onde, ele parecia meio cambaleante. Podia sentir o sangue se esvaindo do rosto, as mãos involuntariamente foram até a bolsa e lá ficaram com a faca na mão.
Apreensão
No fim era apenas um bêbado qualquer, que passou por ela e nem a notou. Pela primeira vez na noite, Yasmin se sentiu menos tensa. O assassino que imaginava não teria aquele perfil.
Sentou em um banco qualquer e esperou. Só não sabia exatamente pelo que. Gritos talvez? Um corpo? Não sabia como o assassino ia agir, mas seus instintos diziam que seria em alguma parte daquela represa do Passaúna. A menos que algo mudasse Imprevistos acontecem. Talvez ele tenha mudando os planos desde que perdera o caderno, pensou.
Seu celular já marcava meia noite e quinze do dia marcado. Seria agora a qualquer momento até o final do dia. Ficou atenta, olhando para os lados e com os ouvidos à postos.
Nada.
O tempo passava...
De repente, uma pequena luz refletiu em algum lugar, como a de uma lanterna, chamando sua atenção. Seus sentidos entraram em alerta imediatamente. observou a sua volta, algumas pessoas estavam em um quiosque, mas era consideravelmente distante de onde estava. O reflexo surgiu novamente e ela se levantou. Alguém estava se esgueirando pela mata do outro lado do lago.
Seu coração bateu mais forte e seu corpo começou a tremer… seria ele? Yasmin ficou observando o movimento no matagal do outro lado do rio. Por um momento pareceu calmo, parado. Talvez ela tenha se enganado. Mas esse pensamento some rapidamente quando um vulto passa atrás de algumas moitas e árvores.
Antes que pudesse decidir seus pés já estavam trabalhando. Correu em direção a uma pequena ponte de madeira , tinha que atravessá-la para chegar na mata onde havia aquela movimentação estranha. O silêncio era mortal, todos os seus sentidos pareciam se aguçar conforme se aproximava.
Porque está correndo? O que pretende fazer? Seus pensamentos gritavam.
Não demorou muito até chegar ao local, ficou pelo menos uns vinte metros de distância de onde tremeluzia a luz, que agora tinha certeza ser de uma lanterna. Dali, podia ouvir barulho de galhos quebrando sob os pés de alguém. Respirou fundo, e colocou a mão sobre o peito temendo que ele pudesse escutar as batidas do seu coração, pois para ela estava ensurdecedor. É claro que aquele maluco perambulando no meio da mata podia ser qualquer coisa, tentou se acalmar. Mas precisava ter certeza. A madrugada se apresentava escura, havia apenas uma lua minguante tímida por trás das nuvens.
O mato sob seus pés se encontrava úmido, o que abafava um pouco o barulho de seus passos cuidadosos. Lentamente foi se esgueirando até conseguiu enxergar o final da mata. Ele já havia saído, devia ter entrado em campo aberto.
Devagar, aproximou-se o suficiente para ver o contorno do homem ao longe. A luz de um poste caia sobre ele, dando-lhe uma aparência fantasmagórica. Estava agachado no chão, na beirada do rio Passaúna, enquanto Yasmin permanecia oculta atrás de uma árvore.
Uma luz surgiu de onde ele permanecia e Yasmim soube que era o flash de uma câmera. Estava fotografando algo. Só quando ele se levantou que pôde ver uma outra pessoa deitada no chão.
Yasmim abafou um grito, seus olhos se encheram de água. A figura de uma garota deitada no chão não parecia se mover. Luana, pensou. O homem se agachou novamente e passou as mãos pelos cabelos dela, parecia conversar baixinho. Ela não podia ouvir o que dizia. Ele então ergueu a garota. Os braços dela pendiam para trás totalmente inertes. Trajava um vestido branco que fazia contraste com a escuridão do lugar.
Devagarinho, ele foi entrando mais a fundo no lago. Suas pernas foram sendo engolidas pela água. Era o senhor F? Porque conversou com ela? Seriam namorados ou algo assim? Deveria ligar pra polícia agora? Resolveu esperar mais um pouco, a situação ainda não estava clara. Ficou meio hipnotizada pela cena dos dois, parecia algo saído de um filme, isso a fez esquecer seus questionamentos. Ele parou de andar e agora a segurava como se a estivesse fazendo flutuar na água. Porque ele estava sendo tão delicado?
Quando já começava a sentir-se constrangida por invadir tal cena, ele faz algo que no fundo já esperava. Vagarosamente, ele libertou o corpo da garota que foi afundando aos poucos - o rosto ainda fora da água. E então ele começou a afastar-se, a deixando ali, como uma oferenda.
Um calafrio percorreu o corpo de Yasmin. Por um momento, o egoísmo tomou conta de si e ela saiu aos tropeços para longe dali. As lágrimas embaçando sua visão. Não posso fazer nada, é o que explicava a si mesma. Parou ofegante perto de uma árvore, encostou a cabeça ali e respirou fundo. Mesmo com medo de que ele voltasse pelo mesmo caminho e terminasse por esbarrar nela, nunca se perdoaria se saísse dali assim. Então refez seus passos de volta, pronta pra fazer qualquer coisa, mas quando sua visão alcançou o lago, o homem não estava mais ali. Havia sumido, como se fosse uma aparição. Assim como o corpo da garota que agora estava submerso, apenas a ponta do vestido branco flutuando.
Abandonando seu esconderijo de entre as árvores, não pensou, simplesmente mergulhou.
Nadou velozmente até o ponto onde enxergava o vestido e conseguiu erguer a mulher. Sua face estava meio roxa. Yasmin a carregou nos braços até onde foi possível, mas quando a água finalmente parou de ajudar, precisou arrastar a mulher pelo vestido até terra firme, afinal não aguentava seu peso.
Fez o que sempre viu nos filmes e novelas as pessoas fazerem. Com as duas mãos, efetuou movimentos para cima e para baixo no centro do peito da garota, quando percebeu que aquilo não surtiu resultado, tentou respiração boca-a-boca. Também não funcionou, então ela passou a repetir ambos movimentos, um de cada vez.
Um soluço de desespero começou a escapar de sua garganta, até aquele momento não imaginava o quanto queria salvar aquela garota, olhou para seu rosto jovem e perguntou qual teria sido sua história se não fosse interrompida dessa forma tão brusca. Ainda fazendo os movimentos, mas quase desistindo, a garota começou a soluçar até finalmente expelir um jorro de água.
Oi, oi… você tá me ouvindo? - Yasmin tentou falar com ela, mas como não obteve resposta, voltou a repetir o processo de salvamento.
Mais um tanto de água escapa, e a moça finalmente mexeu os olhos. Yasmin tenta contato novamente.
Luana! - ela chamou.
Algo estranho aconteceu. A mulher, agora consciente parecia tentar dizer algo, mas nada saia senão grunhidos. Os olhos dela ficaram esbugalhados e o esforço para falar fez com que sangue escorresse por sua boca. E mais um filete saia de seus ouvidos.
Yasmim não soube mais como proceder, apertou a chamada de emergência no celular. Enquanto esperava o atendimento, tentou segurar a garota que estava ficando cada vez mais descontrolada.
Calma! Eu vou te ajudar… eu vou te ajudar. - Ela repetia. Luana parecia estar sentindo muita dor, ao mesmo tempo que sua aparente fraqueza não lhe permitia fazer muita coisa.
Alguém atendeu a ligação e ela não hesitou.
Tem uma garota morrendo aqui no parque Passaúna, por favor, venham depressa. Depressa!
Yasmim sufocou outro grito quando percebeu o motivo de tanta agonia por parte de Luana - Ela não conseguia falar porque ela não tinha mais língua. Um amargo sorriso brotou em seus lábios quando se viu fazendo o mesmo que o assassino, passava as mãos pelos cabelos de Luana, na tentativa de tranquilizá-la. Estava ali a quase quinze minutos. Quando escutou o som de sirenes não muito longe dali, soube que precisava agir.
Não podia ficar ali, seus pensamentos estavam confusos, não sabia se acreditariam nela. Com um olhar como quem pede perdão, ela apertou forte a mão de Luana, se despedindo. Então correu para longe dali, e dessa vez não voltou.
Mal sabia ela que um par de olhos azuis curiosos a fitava de longe, tendo acompanhado tudo que aconteceu.
Capítulo 07
Passou-se um mês desde o acontecido. Yasmin buscou informações sobre Luana, mas ao que parece ela sumiu do mapa. Apenas uma notinha em um jornal, já esquecido.
Nas últimas semanas se ateve a investigar as próximas vítimas listadas no caderno, algumas até conseguiu entrar em contato e avisar de modo anônimo para não irem a tal lugar em tal data. Depois de muito procurar não achou nenhuma noticia preocupante sobre eles, alguns até estavam ativos em redes sociais após o dia marcado. Talvez esteja ganhando essa batalha anônima ou talvez ele tenha mudado sua agenda e suas vítimas.
Toda essa atividade com o caderno passou a ser sua maior ocupação. Era como se finalmente sua vida tivesse ganhado um sentido.
Capítulo 08
O vizinho debaixo dava uma festa, era possível respirar a droga saindo de lá. Pensou em reclamar com Dª Lurdes, mas sabia ser em vão. O cara pagava um extra pra não ser incomodado e afinal de contas, Yasmin era a inquilina-alvo favorita dela.
Isso era tão verdade, que bastava pensar para a mesma aparecer.
– Minha filha, ô minha filha. – ouve Lurdes batendo na porta. - Eu sei que você tá aí...
A fim de se livrar logo, Yasmin atende.
– Sim.
– Um vizinho andou reclamando do seu animal pulguento. - disse ela com sua voz única e irritante.
– Como é que é?
– É isso mesmo. Ele disse que seu pulguento comeu o passarinho dele.
Yasmin fica pasma. Sabia que Bazuca não comia nada a não ser ração.
– Não pode ser, meu gato…
A partir de semana que vem, animais serão proibidos nesse prédio. – Mas você não pode fazer is…
– Que? – convenientemente a audição de Lurdes acabara de falhar.
– E o Douglas, do apartamento de baixo? Ninguém reclamou da música alta e do fedor de maconha, não?
– Que? – repetiu Lurdes, como se não tivesse escutado.
– Quer saber? Dane-se! – Bate a porta na cara dela.
Naquela noite Yasmin foi dormir com uma tremenda vontade de matar alguém.
Pela manhã, se autocensura: esqueceu de fechar as cortinas de novo e o Sol invadiu seu quarto, lhe despertando de forma irritante. Levanta-se a contragosto e vai escovar os dentes. Era domingo e ela não tinha nada pra fazer, nem mesmo um assassinato pra evitar. Estavam ficando chatos os seus dias, pensa. Mas logo censura-se pelo pensamento medonho.
Chama Bazuca mas ele não vem. Sua vasilha de comida porém, está vazia, na certa foi passear. Olha para seu apartamento com certo desgosto, teria que sair dali em breve caso Dª Lurdes insista na proibição. Vai até a sala e sente uma sensação estranha. As coisas pareciam fora do lugar. Algo em particular chamou sua atenção: havia uma xícara na mesa de centro. Se aproxima confusa. Era chá. Não lembrava de ter tomado chá ontem.
Retorna ao quarto e vai até a gaveta do criado-mudo. Já fazia uns dias que não lia o caderno, porém, a gaveta estava vazia. Busca em sua mente se tinha o posto em outro lugar. Procura embaixo da cama, no guarda-roupa, na sala, mas não estava em lugar algum. Olha para o relógio, teria um velório dali a uma hora, pensaria nisso depois. Precisava se arrumar, depois, passaria numa floricultura para comprar algumas rosas.
Se despe e entra no chuveiro. Lurdes tinha conseguido mexer com ela. Uma nova preocupação ocupa agora sua mente.
Quando sai do banho, leva um susto que a faz sobressaltar e ficar imóvel.
O caderno.
Seus batimentos cardíacos vão acelerando em exponencial. Ele estava jogado em cima de sua cama, aberto. Ele não estava ali antes. Após o choque inicial, trêmula e a passos lentos vai até ele. Se fosse do tipo que desmaiava tinha certeza que teria caído ali mesmo.
Uma foto dela, deitada na própria cama, dormindo, estava colada na página aberta. Pelo pijama exposto na imagem, sabia que a foto tinha sido tirada hoje.
“Yasmin, 22 anos. Causa da Morte? “
Pontos de interrogação enfeitavam toda a página, que marcava o dia 27 de Agosto. Dali a um mês.
Fica desesperada, e se o assassino ainda estivesse na casa? Olha para todos os cantos, imaginando que ele vai sair a qualquer momento e matá-la. Faz a única coisa que poderia no momento.
– Lurdes, Dª Lurdes! – Berra em frente o apartamento de Lurdes.
– Que tá acontecendo menina? – Pergunta uma surpresa Lurdes.
Yasmin ainda olha para todos os cantos.
– Alguém entrou em meu apartamento. – diz esbaforida.
Lurdes franze o cenho.
– Tem certeza? Roubaram alguma coisa?
– Não… Não sei. Só sei que entraram e não apenas alguns minutos.
– Entre aqui menina. Vou pedir para seu João olhar seu apartamento. Aqui está segura.
Yasmin não pensa duas vezes, entra e toma a liberdade de girar a chave duas vezes. Se Lurdes está dizendo algo, não consegue ouvir, sua cabeça está girando.
Em alguns minutos, seu João retorna.
– Não tem ninguém. - diz.
– Tem certeza?
– Absoluta, mocinha.
Mesmo assim, Yasmin insiste para que ele vá com ela até lá. Checa novamente todos os cômodos, embaixo das mesas e atrás das cortinas. Realmente não havia ninguém. Agradece-o e volta pro quarto, onde o caderno a encara.
Uma coisa era certa: Ele sabia.
Hoje é dia 28 de julho. Ela tem até o dia 27 de agosto para encontrar ele, antes que a morte a encontre.
E Bazuca, havia sumido.
8
Faziam três dias que Yasmin se mantinha refém do medo no apartamento. Reforçou as portas e não saiu de casa. Ficava olhando para o caderno e imaginando o que ele reservara pra ela. Ao contrário das outras vítimas, ela não sabia como ia morrer. Foi até a polícia, mas não mostrou o caderno. Apenas disse que recebeu uma ameaça de morte e que seu apartamento foi invadido. Pegaram um depoimento e prometeram investigar.
Yasmin porém não conseguia se sentir segura. A brincadeira havia acabado, agora era sério. Decidiu fazer algumas investigações por conta própria, iniciando do lugar onde tudo começou: o Cemitério Municipal de Curitiba.
Vestiu um conjunto preto, botou um óculos escuro e partiu, levando consigo um bloco de notas.
Chegando lá, foi direto de encontro ao coveiro.
– Bom dia, sr Francisco? – Yasmin o aborda.
Ele se vira para ela.
– Será que o sr pode me ajudar em algo?
– E o que seria? – ele questiona com estranhamento.
– Gostaria de saber se o sr tem algum registro das pessoas que passam pelo cemitério.
Dos vivos ou dos mortos?
– Dos vivos.
– Não.
– E dos mortos?
– Tem.
– Bem, então… – Yasmin pensa e pergunta quais os enterrados do dia em que encontrara o caderno.
Ele pega uma caderneta do bolso e passa a folheá-la. Ainda desconfiado, Francisco a responde.
– De uma Maria Clara e um Iuri Souza.– Yasmin anota os nomes e pega mais alguns escassos dados. – Mas porque a senhorita quer saber isso?
Ela dá uma desculpa qualquer, agradece e vai embora.
Pesquisa os nomes e procura descobrir quem esteve nos enterros, através de fotos nas redes e portais. Quem sabe o assassino estivesse lá? Será que ela o reconheceria se o visse novamente?
Encontra algumas fotos, as copia. Ninguém parece conhecido, mesmo assim, sente que está se aproximando da verdade.
Depois de achar fotos dos dois enterros para analisá-las, é surpreendida por um toque no celular.
Está tão entretida nas fotos que atende sem olhar que é.
– Aló?
– Yasmin… – diz uma voz masculina.
O mesmo arrepio que sentira quando seu apartamento fora invadido, acontece.
– Como vai sua pesquisa? Descobriu algo significante?
Suas mãos tremem no mouse, a respiração acelera e repensa a questão do desmaio.
– Quem é? – Pergunta com medo de saber a resposta.
Pergunta errada.
– Qual a pergunta certa? Quem é você, o que quer comigo? – sua voz vai ficando levemente histérica.
– Você sabe o que quero. Na verdade você sabe demais, não é? Sua mãe não lhe ensinou que é feio mexer nas coisas alheias?
A voz dele era limpa, quase melodiosa. Ela podia senti-lo sorrir.
– Sabe onde estou agora, Yasmin? – ele pergunta.
Ela corre até o quarto e busca o caderno. Ele não escondia se divertir com a situação. Buscou a página correspondente ao dia de hoje e encontrou uma foto de mulher. Se esquecera completamente dela. Nos últimos dias não pensou em nada além de si mesma. Se tudo estivesse certo ele estava agora no Rio de Janeiro prestes a matá-la. Valéria Abreu, morte por arma de fogo.
– Você é um monstro. - diz baixinho, sabia que era inútil pedi-lo pra parar. Ele ri.
– Já estou quase finalizando aqui. Quer ouvir? Sei que gosta de presenciar esse tipo de coisa. Você é o tipo de garota capaz de se esgueirar por uma mata atrás de um assassino.
Ele a viu naquele dia, salvando Luana. Foi o que concluiu. Só em pensar que ele esteve li tão próximo sua garganta fica apertada, como algo a impedisse de falar.
– Você me deixou curioso, Yasmin. Fiquei sem ação pela primeira vez. Nunca antes alguém salvou uma de minhas vítimas.
– Você é doente. O que fez com aquela moça não tem palavras. – diz recobrando o raciocínio, estava falando com um assassino. Precisava agir antes que fosse tarde.
– Não tenho tempo pra conversar agora, querida. Estou chegando.
– Espere! Me deixe em paz. Chegando onde? O que houve com Bazuca?
– Bazuca? - ele ri.
– O meu gato, ele sumiu depois que esteve aqui!
– Ah…
Ele faz uma pausa.
– Fica tranquila, ele vai aparecer.
A ligação é interrompida, não sem antes de ouvir um grito acompanhado de dois tiros do outro lado da linha.
9
Yasmin resolve recorrer a medidas extremas. O tempo passava, precisava fazer algo. Estava agora na porta do seu vizinho.
– Está planejando me matar? – diz Douglas, ao ouvir o pedido de Yasmin.
A vontade dela era dizer que sim.
– Não, é claro que não. Mas é que estou passando por alguns problemas e… enfim, eu tenho o dinheiro, você tem o contato, quer ou não? – Yasmin estava quase desmaiando com o odor de podridão que a casa dele exalava. Queria sair dali o mais rápido possível.
Ele a avalia e toma sua decisão. Vai pra outro cômodo e retorna trazendo consigo um objeto mãos.
– Sua sorte é que tenho essa disponível. – era um revólver negro e pequeno.
Após hesitar uns segundos, ela pega a arma.
– Quanto é?
Ele a lança um olhar sujo novamente:
– Podemos repensar a forma de pagamento. – diz abrindo um sorriso, deixando a mostra falhas e ausência de dentes.
O asco fica visível em seu rosto, mas ela se controla.
– Acho que isso dá.- Estende duas notas de cem.
Ele olha um tanto desapontado mas aceita. Começa a dizer algo mas ela não espera e sai, voltando ao apartamento.
Afinal de contas Yasmin tinha uma vantagem sobre as outras vítimas: ela sabia quê e quando iria morrer. Tinha chance de defesa.
10
Era noite de sábado. As coisas parecem seguir seu curso normalmente. Chega do supermercado e fica surpresa por não encontrar Lurdes de tocaia no corredor. Bate em seu apartamento mas ninguém atende. Ansiosa vai até o apartamento do Seu João; ninguém atende também.
Com uma sensação de mau agouro, entra em casa.
Tranca a porta com todos os trincos. A chuva parece aumentar e ela reza para não faltar luz.
Depois de algum tempo ouve uma batida na porta. Fica alerta; Não devia ser Lurdes nem seu João. E definitivamente ela não costuma receber visitas. Busca a arma que guardara embaixo da almofada do sofá e aproxima-se da porta.
– Quem é? – Pergunta.
Silêncio.
– Quem é? – fala mais alto, a voz saindo levemente esganiçada.
Sou eu, gatinha. – Diz uma voz que ela reconheceu como sendo do vizinho debaixo.
O que diabos ele estava fazia ali?
Esconde a arma atrás da calça e abre parcialmente a porta. Ele estava lá espiando-a com um sorriso.
– Tudo bem, gatinha?
– O que quer?
– Posso entrar?
– Na verdade, não. – diz com firmeza.
Ele solta um riso horripilante.
– Você é difícil.
– Olha… Vá pra sua casa, eu preciso dormir. – diz. Ele estava visivelmente drogado.
– Não quer companhia?
– Não. – diz já fechando a porta, mas ele coloca o pé impedindo.
– O que pensa que está fazendo? – grita.
– Estou tentando falar com você. Tenho te observando a muito tempo, sabe? – diz, forçando a porta.
Yasmin entra em pânico mas consegue se controlar, estava armada e ele drogado e bêbado. Só precisava fechar a porta e ele iria embora.
– Sai daqui! Antes que eu faça uma loucura!
– O que vai fazer vadia?
– Tenho uma arma esqueceu? Não me obrigue a atirar em você, seu nojento!
– Ah… a arma. Agora me diz gatinha. Está carregada?
De repente um estalo em sua cabeça, ela não atentou para esse detalhe. Encosta na porta para impedir que ele passe e olha a arma. Realmente não havia nenhuma bala.
– Droga! Estúpida, Estupida! – diz e ouve a gargalhada do lado de fora.
Eu não quero te machucar. Podemos nos divertir.
Tomada pela raiva, ela abre e fecha a porta de uma vez batendo no seu braço. Ele cai pra trás urrando de dor. Sem perder tempo chaveia a porta e coloca um móvel na frente.
– Suma daqui, seu maldito! Senão juro que chamo a policia ou faço coisa pior!
Fica encostada na porta pronta pra qualquer atitude dele, substituiu a arma sem bala por uma faca qualquer. Depois de um tempo sem nenhum sinal dele, se arrisca e abre a porta aos poucos. Não havia nenhum rastro do vizinho. Com um suspiro de alivio fecha a porta com brusquidão. Ela precisava ir embora dali, mas no momento, só precisava dormir.
Não sabe quanto tempo ficou se revirando na cama, mas parecia ser tarde da noite e nada de pregar o olho.
De repente, um grito ecoa pela escuridão. Yasmin dá um pulo na cama, mortificada. Logo depois, mais gritos.
Veste rapidamente um roupão e decide averiguar o que está havendo. Corre até o local de onde vinham os sons, descobrindo que vários moradores tiveram a mesma ideia. Estavam se amontoando para ver algo dentro de um apartamento, mais precisamente, o apartamento de Douglas.
Yasmin vai se enfiando entre as pessoas até conseguir chegar à porta. Lurdes e João já estavam la dentro. Douglas também estava, porém com um aspecto nauseante. Suas roupas estavam cobertas de sangue, estava sentado em seu sofá velho e rasgado. A cabeça pendia para trás, mostrando um corte grotesco e profundo na garganta, por onde o sangue escorria. Sua mão ainda segurava firme uma arma. Havia sido quase decapitado.
O furdunço em torno do apartamento só aumentava. Yasmin não sabia o que pensar. Estava terrificada. Não conseguia nem distinguir os murmúrios das pessoas. Parece que alguém já havia chamado a polícia. Lurdes discutia alguma coisa com João.
Aos poucos uma ânsia e uma tontura foram tomando conta de Yasmin, tudo que queria era sair daquele lugar.
Atordoada, pede passagem aos curiosos para voltar ao seu apartamento. Queria acreditar que tudo não passara de um pesadelo, até se beliscou. Mas infelizmente estava vivendo a realidade. Sua terrível e amarga realidade.
Deixou a porta do apartamento aberta quando correu para baixo e estava tão aturdida que não percebeu nada estranho quando entrou. Mas ali sentando confortavelmente em seu sofá estava um homem.
Mesmo nunca o tendo visto antes, sabia que era ele.
– Dia difícil? – ele pergunta. – Sua vizinhança é bem animada.
Ela para no meio do caminho, estática. Era uma coisa fútil para o momento, mas a primeira coisa que pensou era em como ele é atraente. Tinha os cabelos negros, no momento estavam em uma bagunça organizada, como se ele tivesse o hábito de passar as mãos por eles a todo o momento. Vestia uma camisa social branca com os primeiros botões abertos. Estavam amarrotadas como se ele tivesse dormido com elas.
Encarou seus olhos e mal pode manter o olhar por dois segundos. Eram muito intensos. Havia um misto de diversão e expectativa neles.
Costuma sair por ai vestida assim? - Pergunta. Ela abaixa os olhos para as suas vestes, e o encara novamente.
– Você o matou? - Foi direto ao ponto. A policia estava lá embaixo e ela ali em cima com o assassino. Porque não gritava? Era o que sua mente indagava.
Ele se levanta e vai em sua direção. Ela permanece estática, como se tivesse cimento nos pés. Ele passa por ela e fecha a porta. O clique dos trincos soam como uma sentença de morte.
Estava agora atrás dela, circulando-a. Podia sentir todo o peso de sua presença.
– Vai me matar agora? – Pergunta em um sussurro.
– Ainda não. – diz a poucos centímetros de seu ouvido. – Você sabe que ainda não é a hora.
– Porque o matou? Ele não fazia parte do caderno.
– Faço alguns extras de vez em quando. Esse foi mais como uma prestação de serviço. Eu vi o que ele tentou ontem. Me irritou.
– Está me dizendo que fez um favor a mim? – agora ela vira e fica cara a cara com ele. Ele é pelo menos duas cabeças mais alto que ela. Sentiu-se miseravelmente inofensiva perto dele.
– Claro que não. Fiz por mim. Ele me irritou. – ele tentava reprimir um sorriso. - Qual a sua história, Yasmin? Quem é você? Estou curioso... Até agora sei que é: intrometida, estranha, corajosa… – ele pega em suas mãos, é como se levasse uma rajada de choque. – Suicida… – ele continua. Tocando na cicatriz em seu pulso.
Ela puxa o braço cambaleando para trás.
– Eu vou gritar. – ela arfa. – Tem policiais lá embaixo, eu vou gritar!
– Sabe porque cortei a língua de Luana? Ela me fez a mesma ameaça. Você tem sorte por eu ainda não ter ideia de como matar você. É uma coisa inédita para mim. Você merece o meu máximo de criatividade, já que é uma trapaceira.
– O que estava fazendo no cemitério quando perdeu seu caderno? – pergunta, lembrando a pequena curiosidade que lhe afligiu durante todo esse tempo.
Ele sorri, mas não responde de imediato, passa a circular pelo apartamento, olhando todos os detalhes dele.
– Estava trabalhando. – responde enquanto analisa um quadro.
Considera matar pessoas um trabalho? – pergunta deixando transparecer toda a sua repulsa.
O homem solta uma leve gargalhada.
– Não, esse é meu hobbie. Eu sou fotógrafo. Estava fazendo um catálogo que retrata a perda.
– Ela o olha confusa.
– Fotos de pessoas, retratando o sofrimento delas no momento da perda. No momento eu fotografo funerais.
Yasmin fica em choque. Era possível que tivesse aparecido em alguma foto. Não podia crer que ele fazia o mesmo que ela, só que com perspectivas distintas.
– Tem alguma vítima sua naquele cemitério? – Pergunta.
– Não. Só você. – Ele a dá uma piscadela.
Os olhos dela arregalam. Pensou não ter ouvido direito.
– O que disse?
– Esse quadro na sua sala é particularmente tenebroso.
Ela não sabia que podia se ofender naquela situação. Mas se ofendeu. Suas bochechas coram, pois aquele quadro de fato era muito importante para ela. Ela o fez.
Ele a olha por um segundo então explode em uma gargalhada.
– Foi você que o pintou? Espero que esteja estudando algo que não seja arte. É capaz que morra de fome.
Mais irritada do que com a ofensa, ela ficou consigo mesma. O sorriso dele era algo a se observar.
– Cadê o meu gato?
– Ainda não o encontrou? – Pergunta surpreso.
– Não. O que fez com ele?
Surpresa.
Antes que pudesse questioná-lo novamente, ouve-se batidas na porta. Ela o olha assustada, como quem pergunta o que fazer.
Ele lhe dá um meio sorriso, se encaminha até a porta e a abre. Yasmin fica boquiaberta. Era Lurdes, a velha estava com o rosto cansado. Na certa teve que ficar até agora com o corpo de Douglas sendo interrogada pela policia. Por um momento havia esquecido o morto no andar baixo.
Lurdes fica atônica quando vê o homem abrir a porta.
– Oh. – Ela diz.
– Bom dia. – ele diz a ela, com muita naturalidade.
Lurdes olha de um para o outro e Yamim é capaz de escutar as engrenagens de seu cérebro trabalhando.
– Yasmin, minha filha, você está bem? Depois do acontecido fiquei preocupada. Lembrei do dia em que seu apartamento foi invadido, será que teria a ver com o assassinato do pobre Douglas?
O assassino fita Yasmin em expectativa, desafiando-a a dizer alguma coisa.
– Não.. Não sei. Dona Lurdes. Eu estou muito assustada também com tudo isso.
– E esse homem, quem é? – Pergunta olhando-o de cima a baixo. Yasmin sabia bem o que ela estava pensando.
– Sou um amigo de Yasmin.
– Amigo? – diz surpresa. – Puxa, ela já está aqui a quase um ano e nunca recebeu uma visita sequer.
– Mesmo? – Ele pergunta interessado.
– Sim, até me preocupo. Ela é uma boa menina mas retraída demais, nunca participa das nossas reuniões.. – Estala a língua.
– Dona Lurdes. – interrompe Yasmin, contrariada. – Estou bem. Só um pouco assustada com tudo que está acontecendo.
– Oh. Que bom que está bem e que tem companhia.
– Na verdade ele já estava de saída. – diz. O assassino ergue uma sobrancelha.
– Sim, estou de saída, mas a senhora vai me ver novamente. Passarei uns dias por aqui. Até dia 27.
O estomago de Yasmin vai abaixo.
Lurdes sai, e ele logo em seguida. Antes porém se vira pra ela.
– Você precisa se alimentar, Yasmin. Parece abatida.
Ela não faz ideia do que ele está falando, mas vê-lo partir a traz um profundo alívio.
Esse encontro fortuito a distraiu-a da tontura que antes sentia, mas que agora volta a incomodá-la. Precisa de um remédio. Vai até a cozinha para procurar. Vasculha as gavetas do armário até encontrar, em seguida pega um copo e vai a geladeira em busca de água mineral. Assim que a abre, sente um cheiro forte e ruim. Será que tinha algo estragado?
Pega o leite e o cheira. Parecia normal. Continua a procurar a fonte do odor desagradável. Quando finalmente abre o congelador, leva o pior susto de sua vida, que a faz cambalear pra trás e levar a mão a boca. Só consegue balbuciar um nome… “Bazuca”.
Lá estava ele, totalmente contorcido, com a língua estrebuchada. O assassino quebrou seu pescoço como se fosse de uma galinha. Yasmin não tinha coragem de tocá-lo, não naquele instante. Em lágrimas, corre para seu quarto.
Chora até o dia raiar, e já sem lágrimas pra derramar, senta-se imóvel na cama com o olhar perdido; já esteve assim diversas vezes nos últimos anos. Perder um gato não deveria doer tanto depois de tantas perdas que já teve. Mas doía e muito.
Busca o celular tomada por uma ideia repentina. Havia gravado o número dele.
‘’Ficaria muito bravo se eu lhe passasse a perna de novo? ‘’ – digitou, enviando a mensagem em seguida. A resposta veio alguns minutos depois.
Abre com o coração aos pulos. Não pensou que ele fosse responder.
“E como espera fazer isso? Você é a próxima. “
Um sentimento irracional tomou conta dela.
“Simples, minha morte não pertence mais a você”
Dessa vez a resposta demora mais. Fica esperando com o celular na mão.
O som de notificação aparece. Ela hesita. Então olha a mensagem.
“Você é diabólica Yasmin, estou chocado! “
Um riso escapa sem que ela pudesse evitar.
“Talvez eu tenha passado tempo demais nas suas escritas. Eu não tenho nada a perder e, sinceramente, estou cansada desse jogo. Eu queria poder fazer algo contra você, mas esse me parece ser o único modo. Acredite eu não tenho medo de morrer”. Enviou.
Algumas horas passam, ela se corroendo por dentro olhando o celular em busca de uma resposta, tendo somente um silêncio ensurdecedor. Algumas batidas na porta seguida pela voz de Lurdes a faz largar o celular. Abre a porta pronta pra despachar a velha, quando é pega de surpresa novamente.
Lurdes conversava animadamente com o assassino.
– Yasmin! Seu amigo está aqui para vê-la. Foi tão amável me ajudando com as compras. Bem, agora que ela abriu a porta eu vou saindo. Até mais.
Ele a encara, e entra fechando a porta atrás de si.
Aquela leveza em seu rosto se fora. Ele parecia com raiva. Dá passos para trás conforme ele se aproxima.
– O que faz aqui? Porque não aparece só na data marcada como com todos os outros? – questiona. Ele a ignora.
– O que prefere, ficar trancada em algum lugar durante quinze dias ou esquecer essa ideia de suicídio? Francamente, achei que fosse mais corajosa.
– Me mate agora se quiser. Eu não me importo.
– Tudo isso por causa daquele gato ridículo?
A menção a Bazuca a tira do sério e ela começa a gritar, enquanto parte pra cima dele:
– Filho da puta! – repete seguidamente, tentando acertá-lo tapas. - Filho da puta!
Aturdido, o assassino tenta segurá-la e põe a mão em sua boca.
– Calma. Quer ter o mesmo destino da Lu? – a lembrança da moça sem língua a faz congelar imediatamente. – Eu vou te soltar, promete ficar quieta?
Ela balança a cabeça positivamente e ele retira as mãos de sua boca.
– Agora, vamos conversar como duas pessoas racionais. Se gritar novamente, aquela senhora aqui do lado vai aparecer e eu serei obrigado a matar ela igual se mata um porco. Entendeu?
Antes que Yasmin pudesse responder, são surpreendidos por vozes no corredor.
– Tá tudo bem aí, minha filha? – era a voz de seu João.
– O que será que tá acontecendo? – ouvem Lurdes comentar.
O assassino revira os olhos visivelmente irritado. Num movimento rápido, ele segura Yasmin por trás tampando novamente sua boca com as mãos, para que ela não gritasse.
– Shhhh… – ele diz em seu ouvido. - Eu vou te soltar, e você vai dizer que está tudo bem. Senão… bem, você já sabe.
Quando a porta se abre, os olhos tanto de João quanto de Lurdes arregalam. Yasmin estava só de roupão com os cabelos bagunçados, o homem a seu lado sem camisa.
Desconcertado, João diz:
– Desculpe, é que ouvimos uns gritos e achamos que estava acontecendo alguma coisa.
O assassino puxa Yasmin pela cintura até ficarem grudados, um sorriso presunçoso nos lábios.
– Acho que nos empolgamos demais. Está tudo bem.
Lurdes estampava um misto de surpresa e alegria no rosto. Yasmin desejou morrer ali mesmo.
– Não queríamos incomodar. – diz joão. – Ficamos preocupados, depois de tudo que tem acontecido.
– Não se preocupem, Yasmin está segura comigo. – a mão que segurava a cintura de Yasmin escorrega pra baixo até chegar em um local que deixa o velho escandalizado. Ele continua: – E caso escutem ruídos novamente, é melhor não virem atrás.
Yasmin tentou em vão dizer alguma coisa, não havia se preparado para a reação do seu corpo, sentiu-se traída por ele, quando as mãos do assassino lhe tocaram.
– Oh! – exclama Lurdes. – Claro, não vamos incomodar vocês. Vamos joão. – Diz Lurdes empurrando o velho João para longe dali. Antes de entrar no seu apartamento ela pisca para Yasmin, aprovando.
Após fechar a porta, ele se joga no sofá da sala, e a fita de longe com um sorrizinho.
– Pode fazer o barulho que quiser agora, eles vão pensar que a gente está… você sabe.
Se ainda não estava, agora definitivamente Yasmin estava corada.
Não pode evitar que seu olhar deslizasse do rosto para o peitoral liso do assassino. Logo desvia o olhar, mas era tarde. Ele tinha notado, a fitando por alguns segundos, pensativo. De repente, se contorce incomodado com algo no sofá. Inesperadamente tira debaixo da almofada a arma que Yasmin escondera, olhando para objeto com surpresa.
Ela sente como se um segredo tivesse sido descoberto, sua primeira reação é correr até o sofá para retomá-lo. Uma voz gritou em sua mente para não fazer isso, mas quando viu já estavam rolando pelo sofá, lutando pela posse da arma.
– Solta! – grita, mas ele segurava firme.
Yasmin já estava sem forças, enfim o assassino vence a disputa. Habilmente analisa o revólver, descobrindo estar sem munição. Ele ri debochadamente olhando pra ela. Yasmin de repente se sente pequena demais, humilhada. Ele a achava ridícula. Uma vontade de que ele gostasse dela vem a tona. Ainda estavam atravancados no sofá, quando Yasmin de supetão o beija.
Foi mais desastroso do que ela esperava. O homem não se rendeu a seu beijo, ele pareceu congelar. Ela tenta enfiar a língua em sua boca, mas ele desvia o rosto, e agarra seu pescoço totalmente enfurecido.
– O que diabos está fazendo! – ele ruge, a empurrando. –Eu ofereço dor, e não prazer.
Yasmin cai no chão, seus olhos lacrimejam, mas ela tenta segurar o choro.
– Está mesmo atraída pelo seu algoz? – ele diz em um misto de incredulidade e diversão.
O corpo dela começa a tremer. Tenta se levantar mas sente uma enorme fraqueza e sintomas já quase esquecidos de sua mente perdendo o controle. Ela teria um ataque ali, diante dele.
Suas mãos se fecham em punho e seu corpo convulsiona.
– Se não me matar agora, eu farei isso. - diz.
Ele não responde.
Yasmin se levanta e quebra a primeira coisa que vê na sua frente. Aquilo parece lhe dar energia e ela acaba fazendo o mesmo com tudo que está a sua volta.
Sem obter nenhuma reação dele, ela corre até a cozinha voltando com uma faca nas mãos.
Posiciona a faca sobre o pulso.
– Ok, já chega. – ele diz, calmamente, se aproximando devagar dela. – Pare com essa ceninha. Me dê essa faca.
– Não. – ela afunda um pouco, deixando uma linha vermelha brotar em seu pulso.
Quando chega diante dela tira a faca de sua mão com uma agilidade impressionante. Antes que ela pudesse fazer algo ele a puxa para si e a beija. Dessa vez, ele o fez com vontade. Ela derruba a faca e entrega-se.
Antes que pudesse entender os dois estavam em sua cama. A noite passa devagar.
Acorda com uma sensação estranha. Algo parecia errado. Demorou alguns segundos para entender o que era: as cortinas estavam fechadas. Com um baque, Yasmin olha pro lado. Não tinha sido um sonho, ele estava lá.
Sabia que deveria sentir medo dele, mas a convivência com suas palavras no caderno e agora sua presença a faziam enxergá-lo como alguém próximo, e além do mais, ele teve várias oportunidades de a matar e não o fez, o que aumentava sua sensação de segurança. Ou talvez estivesse louca… mas estava gostando daquilo.
11
Nos dias que se seguiram, Yasmin ficou dividida entre a excitação de vê-lo de novo e de novo e a racionalidade de que tudo aquilo era uma loucura. Resolveu ignorar a ultima.
Estava sentada no seu sofá, enquanto o homem que vinha perturbando sua sanidade desde que encontrara seu caderno dependurava um quadro em sua parede. Ele parecia muito concentrado no que estava fazendo.
Ela tinha os braços cruzados em forma de protesto, seu quadro que lhe custou tanto trabalho foi jogado pela janela poucos minutos atrás. As visitas dele estavam cada vez mais frequentes. Ele aparecia a hora que queria e ia embora da mesma forma.
– Agora sim. – diz ele, terminando o serviço. Sua parede agora estampava uma quadro enorme e abstrato.
Yasmin ainda não estava totalmente acostumada por tê-lo tão perto. Hesitante levanta a mão e passa pelos cabelos dele. Estavam sempre bagunçados, a sensação de tê-los entre os dedos era maravilhosa.
Ele a olha pensativo.
– Qual o seu nome? – ela pergunta. Mas sabe que é em vão. Tem feito essa perguntas várias vezes e ele nunca responde.
Ele continua a fita-la como se estivesse travando uma batalha interna. Nos últimos dias ela percebeu que ele estava inquieto.
– Quero te mostrar algo, Yasmin. – ele diz enigmático.
– Eu vou gostar? – ela provoca.
Ele sorri.
– Considere como um teste. – responde.
À noite saem de carro. Após andar durante umas duas horas, chegam a um local com aparência de interior. Pela janela se vê várias casas de madeira bastante separadas uma das outras e algumas plantações. Yasmin não fazia ideia de que lugar era aquele.
Finalmente estacionam em frente a uma espécie de depósito, num local bastante isolado.
– Chegamos! – ele diz.
Yasmin pensa em que tipo de surpresa a aguarda.
– Agora, vire a cabeça pra lá.
– Porque? – questiona. Um fio de desconfiança brota em si, mas ainda não é dia 27, lembra.
Ele tira uma venda do bolso.
– Aposto que você nunca usou uma dessas… – diz, mordendo os lábios.
Ela vira o rosto, e ele a venda.
Logo estão andando. Ela ouve ele mexer em um molho de chaves, e é conduzida pelo lugar.
Ele a deixa só por um minuto. De repente, Yasmin começa a ouvir uma música romântica, o que a faz sorrir.
Sua venda é removida, e o sorriso desaparece.
À sua frente, alguém conhecido jazia suspenso com cordas de ponta-cabeça, como um porco no abate.
– Surpresa! – ele diz.
Lurdes se debatia incessantemente a partir do momento que a viu. Na sua boca, uma maça a impedia de falar.
A sensação que teve era de que iria desmaiar, mas seu corpo continua em pé como se obrigando-a a não fugir da cena.
– Tem ideia do trabalho que deu colocá-la ai? – ele comenta após um tempo, indo em direção a uma mesa de ferramentas.
Os olhos de Yasmin o acompanham, lacrimejantes. Ele escolhe um martelo. Seu conto de fadas tinha acabado. O fato de ele ser o vilão da história e não o príncipe encantado não podia mais ser ignorado.
Lurdes se debate mais conforme ele se aproxima dela.
– Fique parada aí, velha gorda! – ele diz.
Yasmin fica em choque. Sabe que é assim que ela costuma chamar Lurdes, quando ela não está por perto.
– Não me diga que está fazendo isso pra me agradar.
– Bem, eu sei que a odeia, me disse isso centenas vezes.
Yasmin abre a boca pra dizer que isso não significa que ela queria a velha morta, mas para a tempo. Precisava de um plano.
– Porque me disse que era um teste? – diz tentando ganhar tempo, até pensar em algo melhor.
– Porque...
Sem aviso, ele dá uma martelada na perna de Lurdes. O som de ossos quebrando ecoa pelo galpão. Yasmin cambaleia pra trás, levando a mão a boca.
– Na verdade, tenho planejado isso desde a primeira vez que a vi. É sempre assim que acontece. Apenas te envolvi na situação. Não é como se nunca tivesse me visto praticando meu hobbie. A pergunta é: O que vai fazer dessa vez?
Diante do silêncio de Yasmin. Ele taca o martelo dessa vez no braço, mesmo com a maça na boca o grunhido de dor de Lurdes é aterrorizante.
– Dizem que para se obter uma carne macia é bom não deixar o animal saber que vai ser morto. Como nesse caso não tem mais como, vou amaciar com isto. – fala apontando o martelo ensanguentado pra ela. – Até que esteja perfeita.
– O que quer que eu faça? – Pergunta em desespero.
O homem se vira, como se acabasse de ouvir o que estava esperando.
– Já que perguntou…quero que venha até aqui.
Com as pernas tremendo, ela caminha até ele. Evita olhar pra Lurdes, não suporta o estado em que ela se encontra e muito menos a culpa que sente pela velha estar ali.
– Ela já está perdida. – diz ele. – Nada pode mudar isso. Aqui… – fala colocando o martelo em sua mão. – Quero que experimente a sensação.
– Eu… eu não consigo. – sussurra Yasmin.
– Você pode dar fim ao sofrimento dela, basta bater com força na cabeça.
Yasmin olha pra trás, tentando encontrar a saída do local. Sente vontade de soltar aquele martelo e sair correndo dali.
– Nem pense nisso… –ele diz, como se lesse seus pensamentos. – Veja, ou você dá fim na agonia dela, ou eu vou prolongar o sofrimento dela até o dia raiar. Acredite, você vai ter desejado matá-la quando teve oportunidade.
Yasmin fica imóvel por alguns segundos. Olha pra Lurdes, a velha implorava por socorro mesmo sem poder falar.
– Tudo bem. – responde Yasmin por fim, apertando os dedos envolta do cabo do martelo. – Eu vou fazer isso.
O assassino sorri. Yasmin levanta o braço ameaçadoramente mirando a cabeça suada de Lurdes. Fica com o martelo no ar, como se estivesse tomando coragem. Uma lágrima rola por sua face.
– Você consegue. – o homem instiga.
Antes que a lágrima atingisse o chão, o martelo atingiu a cabeça do assassino, que dá um grito e cai no chão, levando as mãos a cabeça. Yasmin decide não esperar por um revide, fecha os olhos e bate repetidamente na cabeça dele. Sangue espirra em sua roupa, seus braços e seu rosto, mas ela não para.
Quando finalmente abre os olhos, o homem estava imóvel com um machucado horrível na cabeça. Olha horrorizada fios do cabelo dele grudados com sangue na ponta do martelo, e o solta no chão.
– O que eu fiz...
Corre pra desamarrar Lurdes. Não teve como amortecer a queda dela no chão. Deixa Lurdes tentando tirar a maça da boca enquanto senta-se ao lado do homem. Os olhos dele estavam abertos, mas não se moviam. Ela põe os dedos no pescoço dele, checando o pulso, mas não sente nada. Ainda insatisfeita, levanta a camisa dele e coloca o ouvido no peito. Fica ali por um tempo. Nada de batimentos cardíacos nem respiração.
Estava morto.
Lurdes ainda não conseguira se livrar da maça, estava muito fraca. Usando todas suas forças, Yasmin a levanta. Com uma de suas pernas quebrada, ela se apoia em Yasmin e vai mancando até a saída daquele local.
Antes de sair dali, Yasmin ainda olha de novo pro homem esparramado no chão. Estava como tinha deixado.
Com dificuldade, enfia Lurdes no banco traseiro, liga o carro e parte. Não fazia ideia de onde estava, e não havia ninguém aquela hora na rua para perguntar. Rodam durante um tempão. Às vezes terminavam em uma rua que já tinham passado. Depois de muito tempo, finalmente Yasmin encontra uma Avenida conhecida.
Leva Lurdes até o hospital mais próximo. Yasmin é direcionada para a Enfermaria e a outra pra Emergência, não demora muito para aparecer um policial.
Yasmin conta a ele sobre o acontecido, porém, não sabia onde era o local onde o corpo do homem ficou, muito menos o nome dele. O policial a informou que seria difícil fazer uma investigação assim, mas que havia registrado um boletim de ocorrência e que ela deveria ir a delegacia fazer um retrato falado e incrementar seu testemunho, e que, assim que Lurdes estivesse bem, iriam pegar o testemunho dela.
12
Os dias passaram e como previa nada foi solucionado, Lurdes ficou tão traumatizada que nem da cor de seus olhos lembrava. Yasmin nunca mais tirou o maldito caderno de dentro da gaveta. Repetia pra si mesma que tudo havia terminado e que poderia seguir em frente, mas a cena dele ensanguentado no chão não saia de sua mente.
Naquela manhã, finalmente voltou a faculdade, que vinha faltando desde o ocorrido. Pela primeira vez conseguiu se distrair com algo. A volta a rotina a fez bem. Durante a tarde, foi até um petshop e escolheu um gato novo pra comprar. Decidiu que iria recomeçar a vida.
Era reconfortante ter algo para cuidar. Batizou o gato como Dinamite. Ele não era vira lata como Bazuca, era um persa. Depois de lhe dar comida e alguns afagos, decide estudar para recuperar o tempo perdido. Algumas horas depois já estava exausta e o máximo que conseguiu foi se arrastar até a cama e dormir, em um sono tranquilo e sem sonhos depois de muito tempo.
A sensação inicial foi o frio. Depois a escuridão, que permaneceu mesmo depois de abrir os olhos. Com uma respiração profunda tenta se situar. Sente-se desconfortável, logo nota que não estava mais em sua cama. O piso sob si era duro e gélido.
Seus olhos aos poucos vão se habituando a escuridão. Tateia o espaço em busca de algum reconhecimento. A primeira coisa que sua mão toca é um aparelho, posicionado bem frente a seu rosto. Uma luzinha vermelha piscava, levou o dedo até ele a o lugar todo se iluminou.
Tremeu de pavor quando percebeu onde estava: num caixão.
Num ataque de pânico, se debateu. Logo depois descobriu que era inútil. Não havia como sair dali.
A tela do aparelho, que descobriu ser uma tv, focaliza uma imagem.Era o cemitério. Parecia se passar ao vivo. De imediato reconhece Lurdes e João. Ao lado deles, sua tia e seus primos,a única família que lhe restara.
Lurdes leva um lenço aos olhos, seus primos jogam rosas em um túmulo. De repente, um homem chega ao local. Sua ficha finalmente cai e ela solta um som esganiçado. Ele se vira para a câmera e dá um tchauzinho. Aquele mesmo sorriso que a deslumbrou tantas vezes estava estampando em seu rosto. Sua visão já começava a ficar turva, o ar era puxado de forma dolorosa. Antes que cedesse a escuridão, pode observar ele dizer algo.
Não havia som, mas ele falou de forma que era possível Yasmin fazer uma leitura labial:
‘’ Adivinha que dia é hoje’’.
Antes de entrar no cemitério, Yasmin pega o pequeno espelho que costuma carregar em sua bolsa. Por um pequeno imprevisto, havia se atrasado para o enterro. Seus expressivos olhos castanhos a fitam no reflexo. Passa as mãos pelos cabelos loiros dando uma ajeitada nos cachos revoltos. Não era vaidosa, apenas gostava de estar apresentável em respeito ao local.
Avista de longe que o funeral já tinha começado. Fica á alguns metros de distância, ao lado de uma árvore sem folhas acompanhando tudo.
Haviam umas vinte pessoas presentes. O padre fazia uma reza. Assim que termina, algumas pessoas depositam crisântemos e coroas de flores brancas. Alguns momentos se passam, e o aglomerado de pessoas continua.
Não foi difícil identificar de quem era a maior dor. A mulher estava debruçada sobre o caixão, aos prantos. Mãos prestativas e inconvenientes a puxavam para abraços.
– Estúpidos. – murmura Yasmin. Será que eles não entendiam que o único abraço que a confortaria agora estavam inertes dentro do caixão?
Yasmin aguarda o funeral terminar. Dois homens tem trabalho para puxar a mulher e fazê-la ir embora com eles.
Todos passam ao lado de Yasmin, mas não parecem notá-la. Finalmente ela retira uma rosa amarela que depositara cuidadosamente no bolso externo da bolsa e vai até o local, agora vazio, onde estava o túmulo.
Fica parada alguns segundos olhando e então põe a rosa em frente à lápide, ao lado de uma coroa de flores.
Em seguida, pega mais algumas rosas e parte para cumprir seu ritual. Era fascinada por rituais de despedida, desde que perdera quase todos que amava. Ela compreendia como ninguém a dor pela qual aqueles que iam enterrar pessoas queridas estavam passando.
Coloca uma rosa no túmulo do menino que morreu em um acidente de carro, tinha apenas seis anos de idade, a grama ao redor do seu túmulo está úmida, como se todas as lagrimas derramadas diante dele, ali permanecessem. A outra rosa vai para um senhor que morreu de causas naturais, somente duas pessoas vieram ao seu enterro, além claro da figura clandestina de Yasmin. Não havia nenhuma flor ou escritura em sua lápide.
Quando se prepara para ir embora, nota um objeto estranho caído nas sombras de uma árvore. Não havia ninguém por ali. Yasmin se aproxima, descobrindo ser uma espécie de caderno. Mas não qualquer caderno, um caderno deslumbrante. Quando vê, já está com ele nas mãos. Na capa lê uma inscrição:
“Nem todas verdades são verdades, nem todas mentiras são de fato mentiras. É uma questão de ponto de vista e do reflexo das lentes com as quais se vê o mundo.
Tudo depende se pra você ele é colorido como a vida ou cinza como a morte.”
Sente uma sensação que não sabe descrever ao ler a frase. A capa do caderno era dura e branca, as bordas das páginas eram vermelhas e estava fixado com uma pequena corrente, como se faltasse um cadeado. Havia algo de mágico nele.
De quem seria? Olha ao redor. Não havia ninguém próximo dali, um pouco adiante avista o coveiro, Sr.Francisco, falando com um casal. Ele desvia os olhos rapidamente para ela, como se tivesse pressentido seu olhar, e faz uma expressão de desconfiado, voltando novamente a atenção para o casal. Ele nunca escondeu sua antipatia por ela. Parecia convencido de que Yasmin não batia bem da cabeça, afinal de contas, que tipo de pessoa visita enterros de desconhecidos?
Pensa em deixar o caderno com ele para o caso de alguém vir procurá-lo, mas se impede. Ele estava ocupado e certamente odiaria caso ela o interrompesse.
De repente, mais pessoas começam a chegar ao cemitério. Eram jovens e adolescentes, com o visual gótico. Alguns davam risadas, outros bebiam em garrafas, provavelmente de álcool. Sabe-se lá o que vieram fazer ali, mas aquilo causou um pequeno incomodo em Yasmin.
Lembra que teria mais dois enterros essa semana, e decide devolver o caderno quando retornasse ao Cemitério, prometeu a si mesma.
Sendo assim, parte. Já fora, olha pra trás, a placa enorme anunciava seu lugar preferido na cidade: “Cemitério Municipal de Curitiba”. Talvez voltasse amanhã... A quem ela estava enganando? É claro que voltaria.
2
Assim que chega no andar de número seis, ouve uma porta abrir no corredor. Não demora muito para ver os olhos atentos e curiosos de Lurdes, sua vizinha a espiando por trás da porta entreaberta. Era incrível como sua audição era afiada. Poderia jurar que a velha Lurdes só estava a esperando chegar para poder pedir ou implicar com alguma coisa. O que seria desta vez?
– Ô Yasmin?
Yasmin tenta passar reto, fingindo que não a ouviu, mas ela insiste.
– Ô menina…
– O que é, dona Lurdes? - Diz contrariada.
– Você não tem um pouquinho de açúcar pra me emprestar, não? – diz Lurdes com sua voz rasgada e aguda. – Sabe o que é, meu sobrinho tá fazendo...
– É… vou ver aqui, dona Lurdes. – a interrompe Yasmin. Ela sabia que se deixasse, Lurdes falaria durante meia hora sem parar. – Aguarde só um momento.
Sem esperar resposta, entra em seu apartamento e fecha a porta atrás de si.
Bazuca logo aparece para cumprimentá-la. Era um gato de rua que acolheu no primeiro dia em que chegou ali, vivia nas redondezas. Era rajado com algumas manchas amarelas, tinha até mesmo o rabo torto, resultado da maldade de alguém.
Depois de encher a tigela de bazuca com ração, se joga no sofá e abre a bolsa em busca do celular. Estava viciada em um joguinho. Fica surpresa quando vê o caderno que achara no cemitério. Havia se esquecido completamente dele. O toma nas mãos e uma pequena curiosidade sobre seu conteúdo formiga inocentemente, quem sabe descobrisse o dono ou dona do caderno para devolvê-lo, se abrisse só a primeira página? Após criar uma desculpa convincente a si mesma decide foleá-lo. Mas antes de virar a primeira página, é interrompida por irritantes batidinhas na porta.
- Lurdes. – bufa.
– Filha, minha filha, você tá aí? – gritava a vizinha do lado de fora. – É que eu preciso do açúcar logo. Vou receber visita daqui a pouco. – Ok, aguarde um minuto por favor. - Diz entredentes.
Yasmin vai para a cozinha praguejando baixinho, pega a xícara mais vagabunda que tem e coloca o açúcar, já perdeu a conta de quantas xícaras a mulher já lhe roubou. Quando volta para a sala, para em choque, Lurdes estavam com com o caderno nas mãos.
– O que a senhora está fazendo? – falou com mais aspereza do que pretendia. Lurdes a olhou um tanto desconcertada.
– Só estava olhando.
– Aposto que é só isso que consegue fazer. – diz, mas se arrepende no instante que as palavras saem, sabia que Lurdes era analfabeta.
O rosto da mulher se tinge de vermelho e ela solta o caderno com brusquidão no sofá, ele cai meio aberto e um papel escorrega de dentro dele. Uma foto, uma simples foto que deixou Yasmin sem ar.
Antes que a mulher pudesse ver o conteúdo da foto, ela entra na frente lhe estendendo a xícara de açúcar e a acompanha até a porta. Não fez questão alguma de ser elegante, simplesmente bate a porta na cara dela.
Em seguida corre para ver direito a foto que escorregara. Era, sem sombra de dúvidas, horrenda. Nela havia uma mulher, nua, presa em um grande círculo que imitava a figura de um alvo, como aqueles que se vê em circos, com diversas facas fincadas pelo corpo. A maioria se encontrava em seu tronco, nos seios e na parte baixa da barriga, e uma estava ereta e fincada profundamente no centro de sua testa. Seu rosto estava sereno, como se não tivesse vivido aquele horror.
Com as mãos trêmulas senta no sofá ao lado do caderno. Agora toda a ansiosidade por desfrutar dos segredos contidos nele foi substituída por um enorme receio. A curiosidade porém parecia reger seus movimentos. Pega o caderno com mais cuidado que antes como se tivesse nas mãos uma granada sem pino.
Uma mancha vermelha quebrava a imaculada primeira página. Não havia nenhuma indicação de quem seria o dono ou dona do caderno. Na segunda, porém, haviam algumas coisas escritas com a mesma caligrafia da capa. Não havia como não ler…
“Você só percebe que não tem mais volta, quando tudo o que você quer é seguir em frente, mesmo que o ‘’em frente’’ seja um abismo sem fundo e o seu maior objetivo é se jogar nele”
Já com a foto da mulher morta esquecida do seu lado ela muda de página. Esta, parecia um sumário; vários nomes listados com datas correspondentes à frente. Sem censura ela começar a folheá-lo mais rapidamente. Uma, duas, três vezes. Já desistindo de olhar uma por uma, ela passa as folhas por sobre os dedos e deixa as páginas fluírem.
Em quase todas as páginas existiam fotos – de pessoas mortas. Uma crescente onda de descrença e algo como desapontamento se apossa de si. Como algo tão bem feito e belo pode se tornar uma coleção doentia de algum fanático por mortes bizarras? Então seus dedos param na página de onde a foto caíra. "5 de março de 2015. Fernanda Albuquerque, 34 anos. São Paulo." Yasmin pega a foto jogada no sofá e coloca na pequena moldura feita a mão na página, se encaixa perfeitamente, do outro lado a mesma mulher aparece sorridente. Uma foto dela viva e outra morta. Abaixo encontra-se um pequeno texto.
“Eu à conheci numa saída rápida ida ao mercado. E lá no corredor de frios estava ela: Fernanda. Eu me pergunto como o destino pode ser tão filho da puta, a vida é assim, algumas pessoas simplesmente estão na hora e lugar errados. Ela precisava ter puxado assunto comigo? Eu podia sentir toda a carência afetiva e falta de calor humano que ela emanava. Era uma presa tão fácil que eu não poderia simplesmente virar as costas.
Fizemos amizade e depois de uma semana marcamos nosso primeiro e ultimo encontro. Eu sugeri visitarmos um Circo que estava na cidade. Só não a avisei que na data marcada ele não estaria aberto ao público. “
Os relatos seguintes foram tão assustadores que Yasmin prendera a respiração sem perceber, quando o fôlego lhe faltou fechou abruptamente o caderno. Ele começara a descrever todo o ritual de violência que certamente culminaria no fim trágico da moça.
Só podia ser ficção, Pensou. Um louco qualquer pegou fotos de mulheres mortas na internet e criou histórias para elas. É bizarro mas que criativo se ignorar a lógica de tudo aquilo. Já relaxando com a explicação que criara pra si mesma, passou a folhear o caderno agora com certo fascínio.
A segunda metade do caderno era diferente da primeira. Haviam apenas fotos das pessoas vivas e ao lado um espaço para colocar a de morta. Yasmin franze o cenho. Será que o cara não terminou o caderno? Perdera antes de concluir? Uma onda pequenina de culpa a assola.
Haviam os mesmos relatos de como conhecera a pessoa e de como a pessoa morrera, ou… um pensamento cruza sua mente, “como iria morrer”. Afogamento, atropelamento, esganamento, as mais variadas causas.
Olha pro relógio aturdida, estava lendo o caderno há horas. Precisava dormir. Guarda o caderno e vai tomar banho. As imagens não saem de sua cabeça, as escritas tampouco. Com certeza teria pesadelos essa noite.
3
Pela manhã, Yasmin chega à faculdade. Alguns alunos já estavam presentes na sala, formando rodinhas de conversas nas quais Yasmin não estava interessada. Senta-se em sua carteira a fim de aguardar o professor de Literatura chegar.
Momentos antes de ele entrar, todos celulares apitam em uníssono. Certamente era uma mensagem para o grupo da turma.
– Que horror! – bufa uma das estudantes. – Não aguento mais receber essas coisas.
– Maria, para de ser chata! – esbravejou um outro aluno.
– Cara, eu não sou obrigada a ver isso. - Nessa hora o professor já havia entrado e se acomodava em sua mesa.
– O que está acontecendo? – Pergunta diante o burburinho dos alunos.
– Estão usando nosso grupo para compartilhar atrocidades. – responde Maria. – No momento é a foto de um homem em pedaços, desse jeito vou ter que sair.
Alguns vaiam e uma discussão começa, mas logo é abafada pelo professor que começa a aula.
A cada minuto o celular vibra anunciando a chegada de novas mensagens. Os alunos conversavam escondido. Yasmin pega o celular para desativar o recebimento de mensagens, mas sem querer clica em uma das notificações e acaba abrindo a conversa. Assusta-se quando vê as fotos das quais Maria estava falando.
Tinha umas vinte, cada uma com um pedaço diferente do corpo de um homem. Foi baixando as mensagens até chegar na cabeça, curiosa, deu um zoom para ver mais detalhadamente.
Dá o máximo de zoom que pode buscando diferentes ângulos da cabeça. Ali, do lado esquerdo da face havia uma tatuagem em forma de raios.
Ela já vira essa tatuagem antes, mais precisamente na noite passada.
“Desde que o vi pela primeira vez meu instinto era picotá-lo em diversos pedaços e fazer um desenho com eles.”
Com a garganta seca, agarra sua bolsa e sai da sala. O professor diz algo mas ela ignora.
Chega ao prédio pouco tempo depois, sua aparência deve estar péssima, pois alguns moradores a olham de soslaio. Sobe correndo as escadas e acaba esbarrando em alguém.
– Cuidado anjo, não vai querer rolar pela escada e estragar esse lindo corpinho.– diz Douglas, seu vizinho asqueroso, ele a segurava pela cintura sem qualquer necessidade. Yasmin estava tão aturdida que demorou a reagir.
– Eu estou bem, pode tirar as mãos de mim. – esbraveja o empurrando.
– Um dia vai querer minha mãos…
Não espera para ouvir mais um de seus comentários pervertidos, desvia dele e corre até seu apartamento, deixando a risada sinistra dele para trás.
Quando chega, vai direto até o caderno. Respira fundo, sabe exatamente onde abrir.
“Gilberto Fonseca, 28 anos. Causa da Morte: Esquartejado.” Uma foto dele carrancudo, porém vivo, destacava a página.
Yasmin sente seu sangue esvair do rosto. Tinha certeza que era o mesmo Gilberto das mensagens.
Isso não pode estar acontecendo, deve ser uma coincidência… –Murmura pra si, mas por alguma razão não consegue se convencer.
Rapidamente vira a página. A suposta próxima vítima seria uma tal de Luana Alvarenga. Se aquilo tudo for real, o assassino pretende matá-la dali uma semana, por afogamento.
Buscou em sua mente diversas alternativas para lidar com aquilo, porém não havia muitas coisas que poderia fazer.
4
Havia uma certa vantagem em se morar no centro da cidade. Todas as coisas ficavam próximas. O cemitério, a faculdade e a delegacia também.
Era a primeira vez que entrava em uma. Após preencher uma ficha, é conduzida a uma salinha, onde uma policial estava sentada em frente a um computador mascando um chiclete.
– Sente-se. - diz a mulher, se apresentando como Sargento Brando.
Yasmin a obedece, ainda sem jeito. O cheiro do chiclete preenchia a sala.
– O que a traz aqui?
Ela não sabia como começar.
– Eu achei um caderno no cemitério e no começo pensei ser uma brincadeira, então o assassinato aconteceu…
– Que caderno e que assassinato?
Yasmin o retira da bolsa.
– Esse. – diz, entregando à policial, que começa a folheá-lo.
Yasmin fica apreensiva, esperando. A mulher demora sua atenção em algumas páginas, às vezes franzindo o cenho, em outras passa mais rápido.
Um pouco depois da metade, você vai ver o relato do assassinato de um homem que morreu essa manhã, chamado Gilberto Fonseca. – fala Yasmin. A Sargento continua a mexer no livro como se não tivesse ouvido. Yasmin continua, em expectativa: – Depois dele, tem o relato do assassinato de uma outra mulher, que está marcado para acontecer daqui a três dias.
Levantando uma das sobrancelhas, a Sargento olha para ela com uma leve expressão duvidosa. Após alguns momentos encarando Yasmin em silêncio, ela pisca algumas vezes e fala:
– Espera aí, vamos devagar, ok? –ela diz, um pouco asperamente. - Esse caderno é seu?
– Bem… não.
– De quem é, então?
– Eu o encontrei no cemitério municipal.
– No cemitério? Você estava indo visitar algum parente seu?
– Na verdade… não.
– O que você estava fazendo lá, então?
– Isso é mesmo necessário? – tenta mudar de assunto. – Tem um assassino a solta, e nesse livro conta tudo sobre a próxima vítima dele… Vocês precisam evitar esse assassinato!
– Calma aí, mocinha. Eu faço as perguntas aqui, ok? Me diga, o que fazia no cemitério?
– Eu… tenho costume de visitar o cemitério.
A policial faz uma expressão de desentendida, Yasmin tenta explicar.
– Enterrei meus pais e meu irmão, além de meus avós maternos e avô paterno. Fui tantas vezes em cemitérios que… fiquei acostumada. - Dar de ombros.
– Então… você vai no cemitério para fazer nada? Só por ir?
A jovem resolveu contar sem delongas; a pressão da policial estava funcionando.
– Eu visito enterros de outras pessoas. – confidencia. A policial arregala os olhos. – Mas enfim, não é isso que vim discutir aqui, sem querer desrespeitar a senhora.
– Olha menina, essa história toda é muito estranha.
– Veja ai depois da metade do livro, você vai encontrar tudo… todas as informações… – A Sargento a interrompe.
– Olha menina, eu não sei que brincadeira é essa que você está fazendo, mas sugiro que pense duas vezes antes de vir aqui na delegacia tentar pregar uma peça nos policiais. – Yasmin fica aturdida ao ouvir isso. A Sargento continua: – Eu vejo claramente que você sofre de algum problema mental… e certamente não deve ter consciência dos seus atos, nem deve imaginar o quanto esse seu livro é doentio.
“Doentio?”, repetiu mentalmente Yasmin.
– Me escuta, não é uma brincadeira… uma mulher vai ser assassinada! – Yasmin insiste, mas logo sua insistência se prova sem sucesso.
– Querida, por favor… eu já trabalhei numa instituição de doentes mentais e reconheço um quando vejo. Eu entendo que você não pode ser penalizada pelas suas ações, mas agora, preciso que você me dê licença, eu tenho uma sala cheia de pessoas com problemas reais para atender, tudo bem?
– Mas…
Yasmin encara a sargento sem acreditar. A mulher então toca uma companhia sobre a mesa. Aquilo a deixa amedrontada, poderia ser alguém vindo prendê-la. Levanta-se rapidamente da cadeira e agarra o livro.
Sai da delegacia mais perdida do que quando entrou. O caderno na sua bolsa de repente passou a pesar como se fossem mil tijolos.
5
Após a tentativa frustrada na delegacia, ainda tentou por denuncias anônimas, o que não surtiu o efeito esperado; assim que ela começava a falar de caderno, cemitério e assassinatos, a pessoa do outro lado da linha achava ser um trote. Precisava ser mais objetiva. Pesquisou todas as mortes que conseguiu do caderno, algumas ainda estão como desaparecidas. Ela não podia simplesmente ir até os familiares e dizer o que aconteceu, com certeza se meteria em confusão. Seu histórico não era dos melhores. Poderiam achar que tinha alguma participação naquilo.
Sendo assim, ela tinha duas escolhas: fingir que aquilo não estava acontecendo, coisa que fazia muito bem, ou fazer de tudo para salvar a estranha que estava marcada para morrer: sozinha.
Com as informações contidas no caderno, descobriu o local em que ocorreria o assassinato de Luana Alvarenga: o Parque Passaúna. Depois do choque inicial de estar tão perto do local do crime, toma sua decisão, só precisava de coragem para concretizá-la.
Chega ao Parque alguns minutos antes de virar a meia noite do dia marcado. Não tinha nenhum plano em mente, apenas uma coragem que não sabia de onde surgiu, coragem esta, ela tinha de admitir, ia se esvaindo progressivamente. Levava consigo apenas uma faca e o celular.
Havia algumas pessoas no parque, no meio das árvores. Estava tudo escuro, e Yasmin poderia apenas supor o que faziam. Talvez estivessem bebendo e se drogando, ou fazendo alguma orgia.
Caminhou pelo parque observando se via Luana, foi até o fim e voltou; nem sinal dela. A cada segundo olhava pra água, totalmente negra, com o coração na mão, esperando que o corpo de Luana emergisse a qualquer momento.
Um homem suspeito aparece vindo em sua direção, meio cambaleante. Parece ter surgido do nada, o que fez o sangue de Yasmin esvair do rosto, as mãos involuntariamente foram até sua bolsa e lá ficaram com a faca na mão.
Apreensão.
No fim, ele passa reto e nem sequer parece notá-la. Era apenas um bêbado qualquer.
Avista um banquinho próximo a entrada do parque e decide sentar-se à espera, só não sabia do quê. Gritos, talvez? Um corpo? Não tinha ideia de como o assassino ia agir, apenas que seria em alguma parte do rio. A menos que… Imprevistos acontecem. Ele pode ter mudado os planos desde que perdera o caderno, pensou.
O tempo passava...
Uma pequena luz reflete em algum lugar, como de uma lanterna, chamando a atenção. Seus sentidos entram em alerta. Olha para todos os lados, algumas pessoas estavam em um quiosque, mas era consideravelmente distante.
O reflexo surge novamente e ela se levanta. Alguém estava se esgueirando pela mata do outro lado do rio. Uma tremedeira se apossa de Yasmin… seria ele? Fica observando o movimento no matagal. Por um momento parece calmo, parado. O silêncio era mortal. Talvez tenha se enganado, pensamento esse que some rapidamente quando um vulto passa atrás de algumas moitas e árvores fazendo um pequeno ruído de algo se movimentando no mato.
Sem ter tempo de pensar duas vezes, corre para lá.
Procura ficar à uns vinte metros de distância de onde tremeluza a luz, agora tendo a certeza ser uma lanterna. Pode ouvir e barulho de galhos quebrando sob os pés de alguém. Respira fundo e coloca a mão sobre o peito temendo que ele pudesse ouvir as batidas do seu coração, pois pra ela estava ensurdecedor.
Cuidadosamente vai se esgueirando atrás dos sons, até se aproximar do fim do matagal. O homem finalmente havia saído dali para campo aberto. Yasmin decide parar no fim matagal, ficando atrás de um tronco. Espera alguns momentos para espiar.
Ele agora estava mais longe, agachado na beira do rio. A iluminação lunar caía sobre ele, dando-lhe uma aparência fantasmagórica.
Uma luz apareceu de onde ele estava e Yasmin soube que era o flash de uma câmera. Estava fotografando algo. Só quando ele se levantou ela pôde ver uma outra pessoa caída na beira do rio.
Yasmin abafa um grito, seus olhos enchem de água quando avista a figura de uma garota imóvel no chão. O homem se agacha novamente e passa as mãos pelos cabelos dela, parecia conversar baixinho. Ela não podia ouvir o que ele dizia. Ele então ergue a moça nos braços. Os braços dela pendem para trás, inertes. Ela usava um vestido branco que contrastava com a escuridão do lugar.
Devagarinho, ele vai caminhando para o fundo no lago, levando a moça consigo. Suas pernas vão sendo engolidas pela água. Era ele? Porque conversou com ela? Seriam namorados ou algo assim? Deveria ligar pra polícia agora? Decide esperar mais um pouco, a situação ainda não estava clara.
Ficou meio hipnotizada pela cena, parecia algo saído de um filme, isso a fez esquecer seus questionamentos. Ele para de andar e passa a segurá-la, fazendo seu corpo flutuar na água. Porque ele estava sendo tão delicado?
Quando começa a sentir-se constrangida por invadir tal cena, ele faz algo que no fundo já esperava. Devagar liberta o corpo da garota que vai afundando aos poucos. O rosto ainda fora da água. E então ele começa a se afastar largando-a ali como uma oferenda.
Um calafrio percorre o corpo de Yasmin. Por um momento, o egoísmo toma conta de si e ela volta mata a dentro aos tropeços. As lágrimas embaçando sua visão. “Não posso fazer nada”, indaga consigo mesma. Para ofegante perto de uma árvore, encosta a cabeça ali e respira fundo. Mesmo com medo de que ele voltasse pelo mesmo caminho e acabasse esbarrando nela, nunca se perdoaria se saísse dali assim. Então segue seus passos de volta, pronta pra fazer qualquer coisa, mas quando seus olhos alcançam o lago, o homem não estava mais ali. Havia sumido, como se fosse uma aparição. Assim como o corpo da garota que estava submerso agora, apenas a ponta do vestido branco flutuando.
Abandonando seu esconderijo de entre as árvores, ela não pensa, simplesmente corre até o rio e mergulha.
Nada velozmente até o ponto onde enxergava o vestido e consegue erguer a mulher com a ajuda da água. Sua face estava arroxeada. Yasmin a puxa até a margem deixando-a deitada de costas.
Com as duas mãos, faz movimentos para cima e para baixo no peito dela, quando vê que não dar resultado, tenta respiração boca-a-boca. Também não funciona, então decide repetir os movimentos alternadamente. Um soluço começa a sair de sua garganta. Até aquele momento não imaginava o quanto queria salvá-la. Observa seu rosto jovem e pergunta qual teria sido sua história se não fosse interrompida dessa forma brusca. Continua os movimentos quase desistindo, até que finalmente a garota espirra um jorro de água.
– Oi, oi… você tá me ouvindo? – Yasmin tenta falar com ela tomada por um enorme alívio. Sem obter resposta, continua o processo.
Mais um tanto de água escapa, e a moça finalmente mexe os olhos. Yasmin tenta contato novamente
– Luana! - Chama.
Algo estranho acontece. A garota, agora consciente parece tentar dizer algo, mas nada sai senão grunhidos. Os olhos dela estão esbugalhados e o esforço para falar faz com que sangue escorra pela boca, e mais um filete pelos ouvidos.
Rapidamente Yasmin liga para a emergência. Enquanto espera atendimento, tenta segurar a moça cada vez mais descontrolada.
– Calma! Eu vou te ajudar.
Luana parecia estar sentindo muita dor, ao mesmo tempo que sua aparente fraqueza não lhe permitia fazer muita coisa.
Alguém atende e ela não hesita.
– Tem uma garota morrendo aqui no parque Passaúna, por favor venham depressa. Depressa!
Yasmin sufoca outro grito quando percebe o motivo da agonia de Luana, cuja boca borbulhava sangue: ela não conseguia falar porque não tinha mais língua.
Sorri amargamente quando se vê fazendo o mesmo que o assassino, passando a mão pelo cabelo de Luana, na tentativa de tranquilizá-la.
Quando escuta o som de sirenes não muito longe dali, sabe que precisa agir.
Não pode ficar ali, não sabe se acreditariam nela. Com um olhar como quem pede perdão, aperta forte a mão de Luana, se despedindo. Então corre para longe, e dessa vez não volta.
Mal sabe ela que um par de olhos azuis curiosos a fitavam de longe, tendo acompanhado tudo que aconteceu.
6
Passou-se um mês desde o acontecido. Yasmin buscou informações sobre Luana, mas ao que parece ela sumiu do mapa. Apenas uma notinha em um jornal, já esquecido.
Nas últimas semanas se ateve a investigar as próximas vítimas listadas no caderno, algumas até conseguiu entrar em contato e avisar de modo anônimo para não irem a tal lugar em tal data. Depois de muito procurar não achou nenhuma noticia preocupante sobre eles, alguns até estavam ativos em redes sociais após o dia marcado. Talvez esteja ganhando essa batalha anônima ou talvez ele tenha mudado sua agenda e suas vítimas.
Toda essa atividade com o caderno passou a ser sua maior ocupação. Era como se finalmente sua vida tivesse ganhado um sentido.
7
O vizinho debaixo dava uma festa, era possível respirar a droga saindo de lá. Pensou em reclamar com Dª Lurdes, mas sabia ser em vão. O cara pagava um extra pra não ser incomodado e afinal de contas, Yasmin era a inquilina-alvo favorita dela.
Isso era tão verdade, que bastava pensar para a mesma aparecer.
– Minha filha, ô minha filha. – ouve Lurdes batendo na porta. - Eu sei que você tá aí...
A fim de se livrar logo, Yasmin atende.
– Sim.
– Um vizinho andou reclamando do seu animal pulguento. - disse ela com sua voz única e irritante.
– Como é que é?
– É isso mesmo. Ele disse que seu pulguento comeu o passarinho dele.
Yasmin fica pasma. Sabia que Bazuca não comia nada a não ser ração.
– Não pode ser, meu gato…
A partir de semana que vem, animais serão proibidos nesse prédio. – Mas você não pode fazer is…
– Que? – convenientemente a audição de Lurdes acabara de falhar.
– E o Douglas, do apartamento de baixo? Ninguém reclamou da música alta e do fedor de maconha, não?
– Que? – repetiu Lurdes, como se não tivesse escutado.
– Quer saber? Dane-se! – Bate a porta na cara dela.
Naquela noite Yasmin foi dormir com uma tremenda vontade de matar alguém.
Pela manhã, se autocensura: esqueceu de fechar as cortinas de novo e o Sol invadiu seu quarto, lhe despertando de forma irritante. Levanta-se a contragosto e vai escovar os dentes. Era domingo e ela não tinha nada pra fazer, nem mesmo um assassinato pra evitar. Estavam ficando chatos os seus dias, pensa. Mas logo censura-se pelo pensamento medonho.
Chama Bazuca mas ele não vem. Sua vasilha de comida porém, está vazia, na certa foi passear. Olha para seu apartamento com certo desgosto, teria que sair dali em breve caso Dª Lurdes insista na proibição. Vai até a sala e sente uma sensação estranha. As coisas pareciam fora do lugar. Algo em particular chamou sua atenção: havia uma xícara na mesa de centro. Se aproxima confusa. Era chá. Não lembrava de ter tomado chá ontem.
Retorna ao quarto e vai até a gaveta do criado-mudo. Já fazia uns dias que não lia o caderno, porém, a gaveta estava vazia. Busca em sua mente se tinha o posto em outro lugar. Procura embaixo da cama, no guarda-roupa, na sala, mas não estava em lugar algum. Olha para o relógio, teria um velório dali a uma hora, pensaria nisso depois. Precisava se arrumar, depois, passaria numa floricultura para comprar algumas rosas.
Se despe e entra no chuveiro. Lurdes tinha conseguido mexer com ela. Uma nova preocupação ocupa agora sua mente.
Quando sai do banho, leva um susto que a faz sobressaltar e ficar imóvel.
O caderno.
Seus batimentos cardíacos vão acelerando em exponencial. Ele estava jogado em cima de sua cama, aberto. Ele não estava ali antes. Após o choque inicial, trêmula e a passos lentos vai até ele. Se fosse do tipo que desmaiava tinha certeza que teria caído ali mesmo.
Uma foto dela, deitada na própria cama, dormindo, estava colada na página aberta. Pelo pijama exposto na imagem, sabia que a foto tinha sido tirada hoje.
“Yasmin, 22 anos. Causa da Morte? “
Pontos de interrogação enfeitavam toda a página, que marcava o dia 27 de Agosto. Dali a um mês.
Fica desesperada, e se o assassino ainda estivesse na casa? Olha para todos os cantos, imaginando que ele vai sair a qualquer momento e matá-la. Faz a única coisa que poderia no momento.
– Lurdes, Dª Lurdes! – Berra em frente o apartamento de Lurdes.
– Que tá acontecendo menina? – Pergunta uma surpresa Lurdes.
Yasmin ainda olha para todos os cantos.
– Alguém entrou em meu apartamento. – diz esbaforida.
Lurdes franze o cenho.
– Tem certeza? Roubaram alguma coisa?
– Não… Não sei. Só sei que entraram e não apenas alguns minutos.
– Entre aqui menina. Vou pedir para seu João olhar seu apartamento. Aqui está segura.
Yasmin não pensa duas vezes, entra e toma a liberdade de girar a chave duas vezes. Se Lurdes está dizendo algo, não consegue ouvir, sua cabeça está girando.
Em alguns minutos, seu João retorna.
– Não tem ninguém. - diz.
– Tem certeza?
– Absoluta, mocinha.
Mesmo assim, Yasmin insiste para que ele vá com ela até lá. Checa novamente todos os cômodos, embaixo das mesas e atrás das cortinas. Realmente não havia ninguém. Agradece-o e volta pro quarto, onde o caderno a encara.
Uma coisa era certa: Ele sabia.
Hoje é dia 28 de julho. Ela tem até o dia 27 de agosto para encontrar ele, antes que a morte a encontre.
E Bazuca, havia sumido.
8
Faziam três dias que Yasmin se mantinha refém do medo no apartamento. Reforçou as portas e não saiu de casa. Ficava olhando para o caderno e imaginando o que ele reservara pra ela. Ao contrário das outras vítimas, ela não sabia como ia morrer. Foi até a polícia, mas não mostrou o caderno. Apenas disse que recebeu uma ameaça de morte e que seu apartamento foi invadido. Pegaram um depoimento e prometeram investigar.
Yasmin porém não conseguia se sentir segura. A brincadeira havia acabado, agora era sério. Decidiu fazer algumas investigações por conta própria, iniciando do lugar onde tudo começou: o Cemitério Municipal de Curitiba.
Vestiu um conjunto preto, botou um óculos escuro e partiu, levando consigo um bloco de notas.
Chegando lá, foi direto de encontro ao coveiro.
– Bom dia, sr Francisco? – Yasmin o aborda.
Ele se vira para ela.
– Será que o sr pode me ajudar em algo?
– E o que seria? – ele questiona com estranhamento.
– Gostaria de saber se o sr tem algum registro das pessoas que passam pelo cemitério.
Dos vivos ou dos mortos?
– Dos vivos.
– Não.
– E dos mortos?
– Tem.
– Bem, então… – Yasmin pensa e pergunta quais os enterrados do dia em que encontrara o caderno.
Ele pega uma caderneta do bolso e passa a folheá-la. Ainda desconfiado, Francisco a responde.
– De uma Maria Clara e um Iuri Souza.– Yasmin anota os nomes e pega mais alguns escassos dados. – Mas porque a senhorita quer saber isso?
Ela dá uma desculpa qualquer, agradece e vai embora.
Pesquisa os nomes e procura descobrir quem esteve nos enterros, através de fotos nas redes e portais. Quem sabe o assassino estivesse lá? Será que ela o reconheceria se o visse novamente?
Encontra algumas fotos, as copia. Ninguém parece conhecido, mesmo assim, sente que está se aproximando da verdade.
Depois de achar fotos dos dois enterros para analisá-las, é surpreendida por um toque no celular.
Está tão entretida nas fotos que atende sem olhar que é.
– Aló?
– Yasmin… – diz uma voz masculina.
O mesmo arrepio que sentira quando seu apartamento fora invadido, acontece.
– Como vai sua pesquisa? Descobriu algo significante?
Suas mãos tremem no mouse, a respiração acelera e repensa a questão do desmaio.
– Quem é? – Pergunta com medo de saber a resposta.
Pergunta errada.
– Qual a pergunta certa? Quem é você, o que quer comigo? – sua voz vai ficando levemente histérica.
– Você sabe o que quero. Na verdade você sabe demais, não é? Sua mãe não lhe ensinou que é feio mexer nas coisas alheias?
A voz dele era limpa, quase melodiosa. Ela podia senti-lo sorrir.
– Sabe onde estou agora, Yasmin? – ele pergunta.
Ela corre até o quarto e busca o caderno. Ele não escondia se divertir com a situação. Buscou a página correspondente ao dia de hoje e encontrou uma foto de mulher. Se esquecera completamente dela. Nos últimos dias não pensou em nada além de si mesma. Se tudo estivesse certo ele estava agora no Rio de Janeiro prestes a matá-la. Valéria Abreu, morte por arma de fogo.
– Você é um monstro. - diz baixinho, sabia que era inútil pedi-lo pra parar. Ele ri.
– Já estou quase finalizando aqui. Quer ouvir? Sei que gosta de presenciar esse tipo de coisa. Você é o tipo de garota capaz de se esgueirar por uma mata atrás de um assassino.
Ele a viu naquele dia, salvando Luana. Foi o que concluiu. Só em pensar que ele esteve li tão próximo sua garganta fica apertada, como algo a impedisse de falar.
– Você me deixou curioso, Yasmin. Fiquei sem ação pela primeira vez. Nunca antes alguém salvou uma de minhas vítimas.
– Você é doente. O que fez com aquela moça não tem palavras. – diz recobrando o raciocínio, estava falando com um assassino. Precisava agir antes que fosse tarde.
– Não tenho tempo pra conversar agora, querida. Estou chegando.
– Espere! Me deixe em paz. Chegando onde? O que houve com Bazuca?
– Bazuca? - ele ri.
– O meu gato, ele sumiu depois que esteve aqui!
– Ah…
Ele faz uma pausa.
– Fica tranquila, ele vai aparecer.
A ligação é interrompida, não sem antes de ouvir um grito acompanhado de dois tiros do outro lado da linha.
9
Yasmin resolve recorrer a medidas extremas. O tempo passava, precisava fazer algo. Estava agora na porta do seu vizinho.
– Está planejando me matar? – diz Douglas, ao ouvir o pedido de Yasmin.
A vontade dela era dizer que sim.
– Não, é claro que não. Mas é que estou passando por alguns problemas e… enfim, eu tenho o dinheiro, você tem o contato, quer ou não? – Yasmin estava quase desmaiando com o odor de podridão que a casa dele exalava. Queria sair dali o mais rápido possível.
Ele a avalia e toma sua decisão. Vai pra outro cômodo e retorna trazendo consigo um objeto mãos.
– Sua sorte é que tenho essa disponível. – era um revólver negro e pequeno.
Após hesitar uns segundos, ela pega a arma.
– Quanto é?
Ele a lança um olhar sujo novamente:
– Podemos repensar a forma de pagamento. – diz abrindo um sorriso, deixando a mostra falhas e ausência de dentes.
O asco fica visível em seu rosto, mas ela se controla.
– Acho que isso dá.- Estende duas notas de cem.
Ele olha um tanto desapontado mas aceita. Começa a dizer algo mas ela não espera e sai, voltando ao apartamento.
Afinal de contas Yasmin tinha uma vantagem sobre as outras vítimas: ela sabia quê e quando iria morrer. Tinha chance de defesa.
10
Era noite de sábado. As coisas parecem seguir seu curso normalmente. Chega do supermercado e fica surpresa por não encontrar Lurdes de tocaia no corredor. Bate em seu apartamento mas ninguém atende. Ansiosa vai até o apartamento do Seu João; ninguém atende também.
Com uma sensação de mau agouro, entra em casa.
Tranca a porta com todos os trincos. A chuva parece aumentar e ela reza para não faltar luz.
Depois de algum tempo ouve uma batida na porta. Fica alerta; Não devia ser Lurdes nem seu João. E definitivamente ela não costuma receber visitas. Busca a arma que guardara embaixo da almofada do sofá e aproxima-se da porta.
– Quem é? – Pergunta.
Silêncio.
– Quem é? – fala mais alto, a voz saindo levemente esganiçada.
Sou eu, gatinha. – Diz uma voz que ela reconheceu como sendo do vizinho debaixo.
O que diabos ele estava fazia ali?
Esconde a arma atrás da calça e abre parcialmente a porta. Ele estava lá espiando-a com um sorriso.
– Tudo bem, gatinha?
– O que quer?
– Posso entrar?
– Na verdade, não. – diz com firmeza.
Ele solta um riso horripilante.
– Você é difícil.
– Olha… Vá pra sua casa, eu preciso dormir. – diz. Ele estava visivelmente drogado.
– Não quer companhia?
– Não. – diz já fechando a porta, mas ele coloca o pé impedindo.
– O que pensa que está fazendo? – grita.
– Estou tentando falar com você. Tenho te observando a muito tempo, sabe? – diz, forçando a porta.
Yasmin entra em pânico mas consegue se controlar, estava armada e ele drogado e bêbado. Só precisava fechar a porta e ele iria embora.
– Sai daqui! Antes que eu faça uma loucura!
– O que vai fazer vadia?
– Tenho uma arma esqueceu? Não me obrigue a atirar em você, seu nojento!
– Ah… a arma. Agora me diz gatinha. Está carregada?
De repente um estalo em sua cabeça, ela não atentou para esse detalhe. Encosta na porta para impedir que ele passe e olha a arma. Realmente não havia nenhuma bala.
– Droga! Estúpida, Estupida! – diz e ouve a gargalhada do lado de fora.
Eu não quero te machucar. Podemos nos divertir.
Tomada pela raiva, ela abre e fecha a porta de uma vez batendo no seu braço. Ele cai pra trás urrando de dor. Sem perder tempo chaveia a porta e coloca um móvel na frente.
– Suma daqui, seu maldito! Senão juro que chamo a policia ou faço coisa pior!
Fica encostada na porta pronta pra qualquer atitude dele, substituiu a arma sem bala por uma faca qualquer. Depois de um tempo sem nenhum sinal dele, se arrisca e abre a porta aos poucos. Não havia nenhum rastro do vizinho. Com um suspiro de alivio fecha a porta com brusquidão. Ela precisava ir embora dali, mas no momento, só precisava dormir.
Não sabe quanto tempo ficou se revirando na cama, mas parecia ser tarde da noite e nada de pregar o olho.
De repente, um grito ecoa pela escuridão. Yasmin dá um pulo na cama, mortificada. Logo depois, mais gritos.
Veste rapidamente um roupão e decide averiguar o que está havendo. Corre até o local de onde vinham os sons, descobrindo que vários moradores tiveram a mesma ideia. Estavam se amontoando para ver algo dentro de um apartamento, mais precisamente, o apartamento de Douglas.
Yasmin vai se enfiando entre as pessoas até conseguir chegar à porta. Lurdes e João já estavam la dentro. Douglas também estava, porém com um aspecto nauseante. Suas roupas estavam cobertas de sangue, estava sentado em seu sofá velho e rasgado. A cabeça pendia para trás, mostrando um corte grotesco e profundo na garganta, por onde o sangue escorria. Sua mão ainda segurava firme uma arma. Havia sido quase decapitado.
O furdunço em torno do apartamento só aumentava. Yasmin não sabia o que pensar. Estava terrificada. Não conseguia nem distinguir os murmúrios das pessoas. Parece que alguém já havia chamado a polícia. Lurdes discutia alguma coisa com João.
Aos poucos uma ânsia e uma tontura foram tomando conta de Yasmin, tudo que queria era sair daquele lugar.
Atordoada, pede passagem aos curiosos para voltar ao seu apartamento. Queria acreditar que tudo não passara de um pesadelo, até se beliscou. Mas infelizmente estava vivendo a realidade. Sua terrível e amarga realidade.
Deixou a porta do apartamento aberta quando correu para baixo e estava tão aturdida que não percebeu nada estranho quando entrou. Mas ali sentando confortavelmente em seu sofá estava um homem.
Mesmo nunca o tendo visto antes, sabia que era ele.
– Dia difícil? – ele pergunta. – Sua vizinhança é bem animada.
Ela para no meio do caminho, estática. Era uma coisa fútil para o momento, mas a primeira coisa que pensou era em como ele é atraente. Tinha os cabelos negros, no momento estavam em uma bagunça organizada, como se ele tivesse o hábito de passar as mãos por eles a todo o momento. Vestia uma camisa social branca com os primeiros botões abertos. Estavam amarrotadas como se ele tivesse dormido com elas.
Encarou seus olhos e mal pode manter o olhar por dois segundos. Eram muito intensos. Havia um misto de diversão e expectativa neles.
Costuma sair por ai vestida assim? - Pergunta. Ela abaixa os olhos para as suas vestes, e o encara novamente.
– Você o matou? - Foi direto ao ponto. A policia estava lá embaixo e ela ali em cima com o assassino. Porque não gritava? Era o que sua mente indagava.
Ele se levanta e vai em sua direção. Ela permanece estática, como se tivesse cimento nos pés. Ele passa por ela e fecha a porta. O clique dos trincos soam como uma sentença de morte.
Estava agora atrás dela, circulando-a. Podia sentir todo o peso de sua presença.
– Vai me matar agora? – Pergunta em um sussurro.
– Ainda não. – diz a poucos centímetros de seu ouvido. – Você sabe que ainda não é a hora.
– Porque o matou? Ele não fazia parte do caderno.
– Faço alguns extras de vez em quando. Esse foi mais como uma prestação de serviço. Eu vi o que ele tentou ontem. Me irritou.
– Está me dizendo que fez um favor a mim? – agora ela vira e fica cara a cara com ele. Ele é pelo menos duas cabeças mais alto que ela. Sentiu-se miseravelmente inofensiva perto dele.
– Claro que não. Fiz por mim. Ele me irritou. – ele tentava reprimir um sorriso. - Qual a sua história, Yasmin? Quem é você? Estou curioso... Até agora sei que é: intrometida, estranha, corajosa… – ele pega em suas mãos, é como se levasse uma rajada de choque. – Suicida… – ele continua. Tocando na cicatriz em seu pulso.
Ela puxa o braço cambaleando para trás.
– Eu vou gritar. – ela arfa. – Tem policiais lá embaixo, eu vou gritar!
– Sabe porque cortei a língua de Luana? Ela me fez a mesma ameaça. Você tem sorte por eu ainda não ter ideia de como matar você. É uma coisa inédita para mim. Você merece o meu máximo de criatividade, já que é uma trapaceira.
– O que estava fazendo no cemitério quando perdeu seu caderno? – pergunta, lembrando a pequena curiosidade que lhe afligiu durante todo esse tempo.
Ele sorri, mas não responde de imediato, passa a circular pelo apartamento, olhando todos os detalhes dele.
– Estava trabalhando. – responde enquanto analisa um quadro.
Considera matar pessoas um trabalho? – pergunta deixando transparecer toda a sua repulsa.
O homem solta uma leve gargalhada.
– Não, esse é meu hobbie. Eu sou fotógrafo. Estava fazendo um catálogo que retrata a perda.
– Ela o olha confusa.
– Fotos de pessoas, retratando o sofrimento delas no momento da perda. No momento eu fotografo funerais.
Yasmin fica em choque. Era possível que tivesse aparecido em alguma foto. Não podia crer que ele fazia o mesmo que ela, só que com perspectivas distintas.
– Tem alguma vítima sua naquele cemitério? – Pergunta.
– Não. Só você. – Ele a dá uma piscadela.
Os olhos dela arregalam. Pensou não ter ouvido direito.
– O que disse?
– Esse quadro na sua sala é particularmente tenebroso.
Ela não sabia que podia se ofender naquela situação. Mas se ofendeu. Suas bochechas coram, pois aquele quadro de fato era muito importante para ela. Ela o fez.
Ele a olha por um segundo então explode em uma gargalhada.
– Foi você que o pintou? Espero que esteja estudando algo que não seja arte. É capaz que morra de fome.
Mais irritada do que com a ofensa, ela ficou consigo mesma. O sorriso dele era algo a se observar.
– Cadê o meu gato?
– Ainda não o encontrou? – Pergunta surpreso.
– Não. O que fez com ele?
Surpresa.
Antes que pudesse questioná-lo novamente, ouve-se batidas na porta. Ela o olha assustada, como quem pergunta o que fazer.
Ele lhe dá um meio sorriso, se encaminha até a porta e a abre. Yasmin fica boquiaberta. Era Lurdes, a velha estava com o rosto cansado. Na certa teve que ficar até agora com o corpo de Douglas sendo interrogada pela policia. Por um momento havia esquecido o morto no andar baixo.
Lurdes fica atônica quando vê o homem abrir a porta.
– Oh. – Ela diz.
– Bom dia. – ele diz a ela, com muita naturalidade.
Lurdes olha de um para o outro e Yamim é capaz de escutar as engrenagens de seu cérebro trabalhando.
– Yasmin, minha filha, você está bem? Depois do acontecido fiquei preocupada. Lembrei do dia em que seu apartamento foi invadido, será que teria a ver com o assassinato do pobre Douglas?
O assassino fita Yasmin em expectativa, desafiando-a a dizer alguma coisa.
– Não.. Não sei. Dona Lurdes. Eu estou muito assustada também com tudo isso.
– E esse homem, quem é? – Pergunta olhando-o de cima a baixo. Yasmin sabia bem o que ela estava pensando.
– Sou um amigo de Yasmin.
– Amigo? – diz surpresa. – Puxa, ela já está aqui a quase um ano e nunca recebeu uma visita sequer.
– Mesmo? – Ele pergunta interessado.
– Sim, até me preocupo. Ela é uma boa menina mas retraída demais, nunca participa das nossas reuniões.. – Estala a língua.
– Dona Lurdes. – interrompe Yasmin, contrariada. – Estou bem. Só um pouco assustada com tudo que está acontecendo.
– Oh. Que bom que está bem e que tem companhia.
– Na verdade ele já estava de saída. – diz. O assassino ergue uma sobrancelha.
– Sim, estou de saída, mas a senhora vai me ver novamente. Passarei uns dias por aqui. Até dia 27.
O estomago de Yasmin vai abaixo.
Lurdes sai, e ele logo em seguida. Antes porém se vira pra ela.
– Você precisa se alimentar, Yasmin. Parece abatida.
Ela não faz ideia do que ele está falando, mas vê-lo partir a traz um profundo alívio.
Esse encontro fortuito a distraiu-a da tontura que antes sentia, mas que agora volta a incomodá-la. Precisa de um remédio. Vai até a cozinha para procurar. Vasculha as gavetas do armário até encontrar, em seguida pega um copo e vai a geladeira em busca de água mineral. Assim que a abre, sente um cheiro forte e ruim. Será que tinha algo estragado?
Pega o leite e o cheira. Parecia normal. Continua a procurar a fonte do odor desagradável. Quando finalmente abre o congelador, leva o pior susto de sua vida, que a faz cambalear pra trás e levar a mão a boca. Só consegue balbuciar um nome… “Bazuca”.
Lá estava ele, totalmente contorcido, com a língua estrebuchada. O assassino quebrou seu pescoço como se fosse de uma galinha. Yasmin não tinha coragem de tocá-lo, não naquele instante. Em lágrimas, corre para seu quarto.
Chora até o dia raiar, e já sem lágrimas pra derramar, senta-se imóvel na cama com o olhar perdido; já esteve assim diversas vezes nos últimos anos. Perder um gato não deveria doer tanto depois de tantas perdas que já teve. Mas doía e muito.
Busca o celular tomada por uma ideia repentina. Havia gravado o número dele.
‘’Ficaria muito bravo se eu lhe passasse a perna de novo? ‘’ – digitou, enviando a mensagem em seguida. A resposta veio alguns minutos depois.
Abre com o coração aos pulos. Não pensou que ele fosse responder.
“E como espera fazer isso? Você é a próxima. “
Um sentimento irracional tomou conta dela.
“Simples, minha morte não pertence mais a você”
Dessa vez a resposta demora mais. Fica esperando com o celular na mão.
O som de notificação aparece. Ela hesita. Então olha a mensagem.
“Você é diabólica Yasmin, estou chocado! “
Um riso escapa sem que ela pudesse evitar.
“Talvez eu tenha passado tempo demais nas suas escritas. Eu não tenho nada a perder e, sinceramente, estou cansada desse jogo. Eu queria poder fazer algo contra você, mas esse me parece ser o único modo. Acredite eu não tenho medo de morrer”. Enviou.
Algumas horas passam, ela se corroendo por dentro olhando o celular em busca de uma resposta, tendo somente um silêncio ensurdecedor. Algumas batidas na porta seguida pela voz de Lurdes a faz largar o celular. Abre a porta pronta pra despachar a velha, quando é pega de surpresa novamente.
Lurdes conversava animadamente com o assassino.
– Yasmin! Seu amigo está aqui para vê-la. Foi tão amável me ajudando com as compras. Bem, agora que ela abriu a porta eu vou saindo. Até mais.
Ele a encara, e entra fechando a porta atrás de si.
Aquela leveza em seu rosto se fora. Ele parecia com raiva. Dá passos para trás conforme ele se aproxima.
– O que faz aqui? Porque não aparece só na data marcada como com todos os outros? – questiona. Ele a ignora.
– O que prefere, ficar trancada em algum lugar durante quinze dias ou esquecer essa ideia de suicídio? Francamente, achei que fosse mais corajosa.
– Me mate agora se quiser. Eu não me importo.
– Tudo isso por causa daquele gato ridículo?
A menção a Bazuca a tira do sério e ela começa a gritar, enquanto parte pra cima dele:
– Filho da puta! – repete seguidamente, tentando acertá-lo tapas. - Filho da puta!
Aturdido, o assassino tenta segurá-la e põe a mão em sua boca.
– Calma. Quer ter o mesmo destino da Lu? – a lembrança da moça sem língua a faz congelar imediatamente. – Eu vou te soltar, promete ficar quieta?
Ela balança a cabeça positivamente e ele retira as mãos de sua boca.
– Agora, vamos conversar como duas pessoas racionais. Se gritar novamente, aquela senhora aqui do lado vai aparecer e eu serei obrigado a matar ela igual se mata um porco. Entendeu?
Antes que Yasmin pudesse responder, são surpreendidos por vozes no corredor.
– Tá tudo bem aí, minha filha? – era a voz de seu João.
– O que será que tá acontecendo? – ouvem Lurdes comentar.
O assassino revira os olhos visivelmente irritado. Num movimento rápido, ele segura Yasmin por trás tampando novamente sua boca com as mãos, para que ela não gritasse.
– Shhhh… – ele diz em seu ouvido. - Eu vou te soltar, e você vai dizer que está tudo bem. Senão… bem, você já sabe.
Quando a porta se abre, os olhos tanto de João quanto de Lurdes arregalam. Yasmin estava só de roupão com os cabelos bagunçados, o homem a seu lado sem camisa.
Desconcertado, João diz:
– Desculpe, é que ouvimos uns gritos e achamos que estava acontecendo alguma coisa.
O assassino puxa Yasmin pela cintura até ficarem grudados, um sorriso presunçoso nos lábios.
– Acho que nos empolgamos demais. Está tudo bem.
Lurdes estampava um misto de surpresa e alegria no rosto. Yasmin desejou morrer ali mesmo.
– Não queríamos incomodar. – diz joão. – Ficamos preocupados, depois de tudo que tem acontecido.
– Não se preocupem, Yasmin está segura comigo. – a mão que segurava a cintura de Yasmin escorrega pra baixo até chegar em um local que deixa o velho escandalizado. Ele continua: – E caso escutem ruídos novamente, é melhor não virem atrás.
Yasmin tentou em vão dizer alguma coisa, não havia se preparado para a reação do seu corpo, sentiu-se traída por ele, quando as mãos do assassino lhe tocaram.
– Oh! – exclama Lurdes. – Claro, não vamos incomodar vocês. Vamos joão. – Diz Lurdes empurrando o velho João para longe dali. Antes de entrar no seu apartamento ela pisca para Yasmin, aprovando.
Após fechar a porta, ele se joga no sofá da sala, e a fita de longe com um sorrizinho.
– Pode fazer o barulho que quiser agora, eles vão pensar que a gente está… você sabe.
Se ainda não estava, agora definitivamente Yasmin estava corada.
Não pode evitar que seu olhar deslizasse do rosto para o peitoral liso do assassino. Logo desvia o olhar, mas era tarde. Ele tinha notado, a fitando por alguns segundos, pensativo. De repente, se contorce incomodado com algo no sofá. Inesperadamente tira debaixo da almofada a arma que Yasmin escondera, olhando para objeto com surpresa.
Ela sente como se um segredo tivesse sido descoberto, sua primeira reação é correr até o sofá para retomá-lo. Uma voz gritou em sua mente para não fazer isso, mas quando viu já estavam rolando pelo sofá, lutando pela posse da arma.
– Solta! – grita, mas ele segurava firme.
Yasmin já estava sem forças, enfim o assassino vence a disputa. Habilmente analisa o revólver, descobrindo estar sem munição. Ele ri debochadamente olhando pra ela. Yasmin de repente se sente pequena demais, humilhada. Ele a achava ridícula. Uma vontade de que ele gostasse dela vem a tona. Ainda estavam atravancados no sofá, quando Yasmin de supetão o beija.
Foi mais desastroso do que ela esperava. O homem não se rendeu a seu beijo, ele pareceu congelar. Ela tenta enfiar a língua em sua boca, mas ele desvia o rosto, e agarra seu pescoço totalmente enfurecido.
– O que diabos está fazendo! – ele ruge, a empurrando. –Eu ofereço dor, e não prazer.
Yasmin cai no chão, seus olhos lacrimejam, mas ela tenta segurar o choro.
– Está mesmo atraída pelo seu algoz? – ele diz em um misto de incredulidade e diversão.
O corpo dela começa a tremer. Tenta se levantar mas sente uma enorme fraqueza e sintomas já quase esquecidos de sua mente perdendo o controle. Ela teria um ataque ali, diante dele.
Suas mãos se fecham em punho e seu corpo convulsiona.
– Se não me matar agora, eu farei isso. - diz.
Ele não responde.
Yasmin se levanta e quebra a primeira coisa que vê na sua frente. Aquilo parece lhe dar energia e ela acaba fazendo o mesmo com tudo que está a sua volta.
Sem obter nenhuma reação dele, ela corre até a cozinha voltando com uma faca nas mãos.
Posiciona a faca sobre o pulso.
– Ok, já chega. – ele diz, calmamente, se aproximando devagar dela. – Pare com essa ceninha. Me dê essa faca.
– Não. – ela afunda um pouco, deixando uma linha vermelha brotar em seu pulso.
Quando chega diante dela tira a faca de sua mão com uma agilidade impressionante. Antes que ela pudesse fazer algo ele a puxa para si e a beija. Dessa vez, ele o fez com vontade. Ela derruba a faca e entrega-se.
Antes que pudesse entender os dois estavam em sua cama. A noite passa devagar.
Acorda com uma sensação estranha. Algo parecia errado. Demorou alguns segundos para entender o que era: as cortinas estavam fechadas. Com um baque, Yasmin olha pro lado. Não tinha sido um sonho, ele estava lá.
Sabia que deveria sentir medo dele, mas a convivência com suas palavras no caderno e agora sua presença a faziam enxergá-lo como alguém próximo, e além do mais, ele teve várias oportunidades de a matar e não o fez, o que aumentava sua sensação de segurança. Ou talvez estivesse louca… mas estava gostando daquilo.
11
Nos dias que se seguiram, Yasmin ficou dividida entre a excitação de vê-lo de novo e de novo e a racionalidade de que tudo aquilo era uma loucura. Resolveu ignorar a ultima.
Estava sentada no seu sofá, enquanto o homem que vinha perturbando sua sanidade desde que encontrara seu caderno dependurava um quadro em sua parede. Ele parecia muito concentrado no que estava fazendo.
Ela tinha os braços cruzados em forma de protesto, seu quadro que lhe custou tanto trabalho foi jogado pela janela poucos minutos atrás. As visitas dele estavam cada vez mais frequentes. Ele aparecia a hora que queria e ia embora da mesma forma.
– Agora sim. – diz ele, terminando o serviço. Sua parede agora estampava uma quadro enorme e abstrato.
Yasmin ainda não estava totalmente acostumada por tê-lo tão perto. Hesitante levanta a mão e passa pelos cabelos dele. Estavam sempre bagunçados, a sensação de tê-los entre os dedos era maravilhosa.
Ele a olha pensativo.
– Qual o seu nome? – ela pergunta. Mas sabe que é em vão. Tem feito essa perguntas várias vezes e ele nunca responde.
Ele continua a fita-la como se estivesse travando uma batalha interna. Nos últimos dias ela percebeu que ele estava inquieto.
– Quero te mostrar algo, Yasmin. – ele diz enigmático.
– Eu vou gostar? – ela provoca.
Ele sorri.
– Considere como um teste. – responde.
À noite saem de carro. Após andar durante umas duas horas, chegam a um local com aparência de interior. Pela janela se vê várias casas de madeira bastante separadas uma das outras e algumas plantações. Yasmin não fazia ideia de que lugar era aquele.
Finalmente estacionam em frente a uma espécie de depósito, num local bastante isolado.
– Chegamos! – ele diz.
Yasmin pensa em que tipo de surpresa a aguarda.
– Agora, vire a cabeça pra lá.
– Porque? – questiona. Um fio de desconfiança brota em si, mas ainda não é dia 27, lembra.
Ele tira uma venda do bolso.
– Aposto que você nunca usou uma dessas… – diz, mordendo os lábios.
Ela vira o rosto, e ele a venda.
Logo estão andando. Ela ouve ele mexer em um molho de chaves, e é conduzida pelo lugar.
Ele a deixa só por um minuto. De repente, Yasmin começa a ouvir uma música romântica, o que a faz sorrir.
Sua venda é removida, e o sorriso desaparece.
À sua frente, alguém conhecido jazia suspenso com cordas de ponta-cabeça, como um porco no abate.
– Surpresa! – ele diz.
Lurdes se debatia incessantemente a partir do momento que a viu. Na sua boca, uma maça a impedia de falar.
A sensação que teve era de que iria desmaiar, mas seu corpo continua em pé como se obrigando-a a não fugir da cena.
– Tem ideia do trabalho que deu colocá-la ai? – ele comenta após um tempo, indo em direção a uma mesa de ferramentas.
Os olhos de Yasmin o acompanham, lacrimejantes. Ele escolhe um martelo. Seu conto de fadas tinha acabado. O fato de ele ser o vilão da história e não o príncipe encantado não podia mais ser ignorado.
Lurdes se debate mais conforme ele se aproxima dela.
– Fique parada aí, velha gorda! – ele diz.
Yasmin fica em choque. Sabe que é assim que ela costuma chamar Lurdes, quando ela não está por perto.
– Não me diga que está fazendo isso pra me agradar.
– Bem, eu sei que a odeia, me disse isso centenas vezes.
Yasmin abre a boca pra dizer que isso não significa que ela queria a velha morta, mas para a tempo. Precisava de um plano.
– Porque me disse que era um teste? – diz tentando ganhar tempo, até pensar em algo melhor.
– Porque...
Sem aviso, ele dá uma martelada na perna de Lurdes. O som de ossos quebrando ecoa pelo galpão. Yasmin cambaleia pra trás, levando a mão a boca.
– Na verdade, tenho planejado isso desde a primeira vez que a vi. É sempre assim que acontece. Apenas te envolvi na situação. Não é como se nunca tivesse me visto praticando meu hobbie. A pergunta é: O que vai fazer dessa vez?
Diante do silêncio de Yasmin. Ele taca o martelo dessa vez no braço, mesmo com a maça na boca o grunhido de dor de Lurdes é aterrorizante.
– Dizem que para se obter uma carne macia é bom não deixar o animal saber que vai ser morto. Como nesse caso não tem mais como, vou amaciar com isto. – fala apontando o martelo ensanguentado pra ela. – Até que esteja perfeita.
– O que quer que eu faça? – Pergunta em desespero.
O homem se vira, como se acabasse de ouvir o que estava esperando.
– Já que perguntou…quero que venha até aqui.
Com as pernas tremendo, ela caminha até ele. Evita olhar pra Lurdes, não suporta o estado em que ela se encontra e muito menos a culpa que sente pela velha estar ali.
– Ela já está perdida. – diz ele. – Nada pode mudar isso. Aqui… – fala colocando o martelo em sua mão. – Quero que experimente a sensação.
– Eu… eu não consigo. – sussurra Yasmin.
– Você pode dar fim ao sofrimento dela, basta bater com força na cabeça.
Yasmin olha pra trás, tentando encontrar a saída do local. Sente vontade de soltar aquele martelo e sair correndo dali.
– Nem pense nisso… –ele diz, como se lesse seus pensamentos. – Veja, ou você dá fim na agonia dela, ou eu vou prolongar o sofrimento dela até o dia raiar. Acredite, você vai ter desejado matá-la quando teve oportunidade.
Yasmin fica imóvel por alguns segundos. Olha pra Lurdes, a velha implorava por socorro mesmo sem poder falar.
– Tudo bem. – responde Yasmin por fim, apertando os dedos envolta do cabo do martelo. – Eu vou fazer isso.
O assassino sorri. Yasmin levanta o braço ameaçadoramente mirando a cabeça suada de Lurdes. Fica com o martelo no ar, como se estivesse tomando coragem. Uma lágrima rola por sua face.
– Você consegue. – o homem instiga.
Antes que a lágrima atingisse o chão, o martelo atingiu a cabeça do assassino, que dá um grito e cai no chão, levando as mãos a cabeça. Yasmin decide não esperar por um revide, fecha os olhos e bate repetidamente na cabeça dele. Sangue espirra em sua roupa, seus braços e seu rosto, mas ela não para.
Quando finalmente abre os olhos, o homem estava imóvel com um machucado horrível na cabeça. Olha horrorizada fios do cabelo dele grudados com sangue na ponta do martelo, e o solta no chão.
– O que eu fiz...
Corre pra desamarrar Lurdes. Não teve como amortecer a queda dela no chão. Deixa Lurdes tentando tirar a maça da boca enquanto senta-se ao lado do homem. Os olhos dele estavam abertos, mas não se moviam. Ela põe os dedos no pescoço dele, checando o pulso, mas não sente nada. Ainda insatisfeita, levanta a camisa dele e coloca o ouvido no peito. Fica ali por um tempo. Nada de batimentos cardíacos nem respiração.
Estava morto.
Lurdes ainda não conseguira se livrar da maça, estava muito fraca. Usando todas suas forças, Yasmin a levanta. Com uma de suas pernas quebrada, ela se apoia em Yasmin e vai mancando até a saída daquele local.
Antes de sair dali, Yasmin ainda olha de novo pro homem esparramado no chão. Estava como tinha deixado.
Com dificuldade, enfia Lurdes no banco traseiro, liga o carro e parte. Não fazia ideia de onde estava, e não havia ninguém aquela hora na rua para perguntar. Rodam durante um tempão. Às vezes terminavam em uma rua que já tinham passado. Depois de muito tempo, finalmente Yasmin encontra uma Avenida conhecida.
Leva Lurdes até o hospital mais próximo. Yasmin é direcionada para a Enfermaria e a outra pra Emergência, não demora muito para aparecer um policial.
Yasmin conta a ele sobre o acontecido, porém, não sabia onde era o local onde o corpo do homem ficou, muito menos o nome dele. O policial a informou que seria difícil fazer uma investigação assim, mas que havia registrado um boletim de ocorrência e que ela deveria ir a delegacia fazer um retrato falado e incrementar seu testemunho, e que, assim que Lurdes estivesse bem, iriam pegar o testemunho dela.
12
Os dias passaram e como previa nada foi solucionado, Lurdes ficou tão traumatizada que nem da cor de seus olhos lembrava. Yasmin nunca mais tirou o maldito caderno de dentro da gaveta. Repetia pra si mesma que tudo havia terminado e que poderia seguir em frente, mas a cena dele ensanguentado no chão não saia de sua mente.
Naquela manhã, finalmente voltou a faculdade, que vinha faltando desde o ocorrido. Pela primeira vez conseguiu se distrair com algo. A volta a rotina a fez bem. Durante a tarde, foi até um petshop e escolheu um gato novo pra comprar. Decidiu que iria recomeçar a vida.
Era reconfortante ter algo para cuidar. Batizou o gato como Dinamite. Ele não era vira lata como Bazuca, era um persa. Depois de lhe dar comida e alguns afagos, decide estudar para recuperar o tempo perdido. Algumas horas depois já estava exausta e o máximo que conseguiu foi se arrastar até a cama e dormir, em um sono tranquilo e sem sonhos depois de muito tempo.
A sensação inicial foi o frio. Depois a escuridão, que permaneceu mesmo depois de abrir os olhos. Com uma respiração profunda tenta se situar. Sente-se desconfortável, logo nota que não estava mais em sua cama. O piso sob si era duro e gélido.
Seus olhos aos poucos vão se habituando a escuridão. Tateia o espaço em busca de algum reconhecimento. A primeira coisa que sua mão toca é um aparelho, posicionado bem frente a seu rosto. Uma luzinha vermelha piscava, levou o dedo até ele a o lugar todo se iluminou.
Tremeu de pavor quando percebeu onde estava: num caixão.
Num ataque de pânico, se debateu. Logo depois descobriu que era inútil. Não havia como sair dali.
A tela do aparelho, que descobriu ser uma tv, focaliza uma imagem.Era o cemitério. Parecia se passar ao vivo. De imediato reconhece Lurdes e João. Ao lado deles, sua tia e seus primos,a única família que lhe restara.
Lurdes leva um lenço aos olhos, seus primos jogam rosas em um túmulo. De repente, um homem chega ao local. Sua ficha finalmente cai e ela solta um som esganiçado. Ele se vira para a câmera e dá um tchauzinho. Aquele mesmo sorriso que a deslumbrou tantas vezes estava estampando em seu rosto. Sua visão já começava a ficar turva, o ar era puxado de forma dolorosa. Antes que cedesse a escuridão, pode observar ele dizer algo.
Não havia som, mas ele falou de forma que era possível Yasmin fazer uma leitura labial:
‘’ Adivinha que dia é hoje’’.