Enquanto o sol surgia entre as nuvens, para aquecer mais um dia de outono na aldeia que eles chamavam de Gioia, Vincenzo pegou seu cajado e chapéu de palha. Entrelaçou seus braços na cintura de      Antonella, que passava pela cabeça um vestido longo, rendado e florido, deu-lhe um leve beijo na face e saiu do quarto. Antonella passou as mãos pela barriga proeminente, onde estava o primeiro filho do casal sendo formado, sorriu e se dirigiu para cozinha. Pegou a massa de trigo que havia deixado descansando do dia anterior, colocou no balcão e mexeu para abri-la, salpicando levemente sal em cima. Olhou para cesta de cerejas, comeu uma e foi retirando as outras, espremendo entre as mãos para que o sumo caísse em uma tigela.
     A cabana onde moravam era simples, feita pelas próprias mãos de Vincenzo, assim como eram as outras da aldeia. Todos os móveis construídos pela habilidade de carpinteiro dele. Rústicos, de madeira figueira, retirada das imediações do lugar. A cozinha, com o balcão, uma mesa quadriculada com quatro cadeiras e um fogo a lenha ao canto. Um pequeno corredor seguia para sala. Possuía uma lareira feita de tijolos, duas cadeiras de balanço, e dois troncos ao lado da porta da frente, que serviam de bancos.
     Entre ambos os espaços, via-se o quarto do casal, com cama de pilares que davam suporte à trama de palhas secas e colchão de penas. Um baú encostado nos pés da mesma guardava suas pesadas roupas de inverno para quando o tempo esfriasse e uma cômoda alojava suas demais roupas. No outro quarto, Vincenzo já iniciava o molde do que seria o berço do futuro filho e pendurado em cima estava um protetor de sonhos, feito por Antonella com ganhos e folhas secas, no meio algumas gravuras de provérbios bíblicos pintados por suas mãos.
 
     Quando Vincenzo pisou no grama de frente da cabana, virou-se para contemplar, orgulhoso, sua pequena, simples, mas confortável e acolhedora casa de madeira, com telhado de colmo. Inspirou a felicidade e a deixou invadir seu corpo.
     A aldeia começava a ganhar vida com pessoas saindo de suas casas e indo cuidar de seus afazeres. Na área onde moravam Vincenzo e Antonella as casas ficavam mais próximas um das outras. Uma espaçosa estrada de terra batida dividia o restante da vila em dois lados. Cerejeiras, laranjeiras, figueiras e ameixeiras estavam por todos os lugares ao redor, com algumas folhas secas ainda presas em seus ganhos e outras caídas aos pés dos troncos. Uma leve brisa vinda do sul trouxe consigo algumas delas que passaram aos pés de Vincenzo e estancaram um pouco mais a frente, onde um senhor de idade catava-as com uma varra e um prendedor artesanal na ponta.
     - O dia começa bom, Vincenzo.
   - E que seja bom todo o restante dele, meu amigo. O frio se aproxima.
     Vincenzo seguiu seu caminho passando a frente da pequena capela do lugar. Um local construído como os demais, madeira e colmo, com uma pequena torre e uma cruz grande ao topo. Ele se benzeu e novamente a brisa fria se fez sentir.
     Demarcando todo aquele lindo e pacato lugar, de norte a sul havia imponentes montanhas com seus picos brancos de gelo. Elas que aliviavam um pouco o frio, quando o inverno chegasse. Ao norte, um poço ao lado da  estrada de terra batida demarcava o inicio de Gioia. Ao sul, a aldeia foi sendo construída e ampliada aos pés de Paura, um grande vulcão maior que todas as outras montanhas e colinas, expelindo de tempos em tempos leves fumaças cinza de sua boca.
     Vincenzo passou por outra vizinha que colhia ovos de uma pequena construção onde as galinhas se abrigavam a noite. Algumas delas ciscavam e cacarejavam ao redor. Ao lado, um curral onde porcos se despreguiçavam e começavam seu ritual de rolarem na lama para limpeza, grunhindo um para o outro.
     Cumprimentou a mulher com aceno do chapéu, e acenou para outro senhor carregando um balde de barro, que ia em direção as cabras amarradas em uma cerca, para retirada de seus leites.
     Algumas crianças pequenas já corriam para o galpão que servia de escola. Vincenzo viu outras já sentadas, inquietas, conversando enquanto a jovem professora organizava alguns livros na mesa.
     Seguiu seu caminho para o lado das colinas, onde encontraria suas ovelhas. Os raios solares já abrilhantavam a rasa grama verde que cobria todo o moro, e Vincenzo se apoiava no cajado para subir as partes mais íngremes. Olhou para aldeia e viu as plantações de cultivo de milho e uvas, organizadas em vários pontos de todo lugar. Foi quando percebeu de relance o vulto branco que caminhava devagar pelos limites de Gioia.
     Todos na aldeia conheciam de vista aquele vulto. Usava sempre um manto puído, que já foi branco um dia, mais se encardiu com o tempo. Um capuz cobria toda sua cabeça, indo cair-se além da testa, o que impossibilitava que seu rosto fosse visto. Suas mãos e pés, únicas partes do corpo visíveis, eram pequenos e delicados.
     Foi em um dia comum. Simplesmente surgiu e começou a caminhar ao redor da aldeia, sem nunca entrar.
     Com o tempo, os habitantes perceberam sua presença e resolveram segui-lo, para saber de onde veio, se estava perdido ou seria filho de alguém querendo morar ali. O pequeno subiu a maior colina de Gioia e entrou na caverna aos pés de uma das montanhas. Não respondeu nenhuma das perguntas feitas a ele enquanto era seguido.
     Depois disso, os poucos com quem o pequeno falou, disseram que sua voz era fina e delicada, uma voz infantil, mas com o tom já de adulto. Monossilábico, que não parecia prestar atenção mais do que suficiente para qualquer coisa.
     Os dias passaram e Gioia se habitou com a criança da colina que caminhava ao redor da aldeia. Nenhum animal havia sumido, ninguém havia sido incomodado, nada de incomum acontecerá desde seu aparecimento e a vida prosseguiu seu rumo.
 
     Antonella já misturava o liquido das cerejas com a massa, colocando em uma fôrma e deixando sobre o balcão. Acariciou novamente a barriga e pegou a vassoura de palha. Dirigiu-se a sala, onde começou a varrer a poeira do chão. Ao lado da lareira, o machado de Vincenzo estava encostado, ela o segurou com uma mão enquanto puxava a sujeira ao redor, recolocando-o no lugar quando terminou. Foi varrendo toda poeira dali até a cozinha, e saindo para o quintal, onde reuniu na porta de trás toda a sujeira em um montinho.
     Olhou para as folhas secas espalhadas pelo vento na grama. Sua vizinha do lado, também varrendo, parou quando a viu e acenou:
     - Antonella, como esta grande a barriga, querida.
     - Sim, e vem crescendo a cada dia. Sinto-me já pesada.
     - Mas ainda com forças para continuar a limpar?
     - E a orar a Deus pedindo cada vez mais, senhora. Esperamos um menino forte, valente, com saúde e trabalhador.
     - Mais um para nos ajudar nessa vida de Nosso Deus.
     - Que a Ele seja dada toda glória para sempre.
     - A torta de cerejas, quando fica pronta?
     - Antes do almoço, senhora.
     Antonella encostou a vassoura na parede e pegou o ancinho para recolher as folhas, enquanto a vizinha voltou a varrer.
     Uma menina de cabelos negros e lisos, crescidos até abaixo de sua cintura, com no máximo oito anos, saiu da casa ao lado carregando um balde vazio. Olhou para mãe e depois para Antonella, que adentrava o quintal cobrindo os olhos com as mãos para proteger-se do suave brilho solar.
     - Senhora, bom dia
     - Bom dia pequena. Não foi a escola hoje?
     - Não, não, senhora. Minha aula é só amanhã, pude ficar em casa hoje ajudando minha mamãe.
     - Que benção. Indo buscar água?
     - Sim, senhora
     E toda orgulhosa, ergueu o balde para que Antonella pudesse vê-lo melhor.
     - Que o bom Deus te acompanhe até o poço.
     - E que Ele fique com as senhoras o restante do dia.
     A mãe deu um leve empurrão nas costas da pequena, para incentiva-la a ir andando. Ela sorriu para Antonella e saiu dali saltitante e cantarolando.
 
     A pequena menina continuou cantarolando pela estrada central da aldeia, até seus limites. Parou na frente do poço e chutou um monte de folhas secas reunidas ali. Riu quando elas levantaram do chão, colocou o balde embaixo da torneira e começou a bombear a manivela que fazia sair água.
     O balde já estava com a metade cheia quando a criança da colina apareceu na sua frente.
     - Oi - Disse a garota.
     A criança da colina olhou o balde, depois a vila em suas costas e demorou fitando o rosto da garota.
     - Como é seu nome? – Falou novamente a pequena.
     O capuz dele mexeu um pouco pelo vento que sobrou, o ajeitou e com sua voz fina e suave respondeu:
     - Asmodeu.
   - Logo estaremos comendo torta de cereja que a vizinha esta fazendo. Gostaria de vim e comer um pouquinho?
     - Tem um bebê lá. – Não foi uma pergunta, mesmo assim a garota respondeu:
     - Sim, o bebê da senhora Antonella. Mamãe diz que ele chegará logo.
     Ele voltou sua atenção novamente para aldeia as costas da menina, e sem responder, virou-se e saiu caminhando.
     Sussurrou consigo mesmo: “Tem felicidade demais para que eu possa entrar”.
 
     Foi quando um forte barulho de explosão se fez ouvir. Asmodeu virou-se para aldeia ao mesmo tempo em que a garota retirava seu balde de debaixo da torneira e também olhava para trás. Paura estava expelindo fumaça e lavas para cima.
     Outro grande barulho ressoou pelo ares, uma segunda explosão, mais estrondosa. A garota largou o balde, derramando seu conteúdo, tapou os ouvidos com as mãos e saiu correndo. Não olhou para trás para ver que Asmodeu também se afastava dali, caminhando.
 
     No alto da colina, Vincenzo pastorava seu rebanho de ovelhas, quando Paura lançou a primeira explosão. Elas começaram a se agitar desorganizadamente e ele largou seu cajado, correndo em direção à aldeia.
     Foi alcança-la já com a nuvem de fumaça cinza se espalhando pelas primeiras casas ao pé do vulcão e o cheiro de enxofre sendo inspirado no ambiente. Lavas incandescentes brilhavam devido os raios solares e encostavam-se às primeiras habitações. O caos na aldeia já era ouvido e visto.
     Vincenzo não reconhecia rosto em meio à fumaceira. Cobriu o nariz com a gola de sua camisa e correu, desviando de objetos e pessoas que passavam gritando, chorando, pedindo ajuda. Elas corriam em todas as direções. Algumas tentando levar aquilo que suas mãos conseguissem carregar, outras procurando apagar as chamas que subiam de suas casas. O calor começou a aumentar.
     O fogo já criava labaredas atrás da casa de Vincenzo quando a alcançou. Alto e imponente, dançava conforme o vento lhe guiasse.
     Com três estocadas fortes com seu ombro na porta, Vincenzo conseguiu entrar e lá estava Antonella.
     Uma das grandes vigas que seguravam o teto da sala estava caída. Chamas estavam espalhadas em todas as direções, e a fumaça cinza concentrada em suas cabeças, dançando e formando estranhas figuras no teto. Embaixo da grande viga encontrava-se Antonella, chorando, presa pelas pernas:
     - Vincenzo, o bebê.
     - Não se preocupe agora querida, vamos tira-la daqui rápido.
     - Não sinto as pernas.
     - Tentarei tira-la.
     Mesmo fazendo toda força que conseguia, só pôde mover um pouco do pesado pedaço de pau. Viu que o osso de uma das coxas estava exposto, e sangue escorria para o chão, entrando nas frestas das tabuas.
     Em seu desespero, olhou para os lados e encontrou seu machado. Lascas de madeira já enegrecidas pelo fogo começaram a voar pelo ar com cada estocada que Vincenzo dava.
 
     Paura explodiu pela terceira vez e Asmodeu calmamente caminhava entre o desespero dos moradores. Ele havia entrado em Gioia.
     Seguiu pela estrada central da aldeia. Viu quando cavalos davam coices dentro do estabulo, tentando desesperadamente sair da fumaça, calor e fogo que tomava conta do lugar. As cabras puxavam suas cordas presas à cerca e berravam. Porcos no curral se debatiam uns contra os outros.
     Os pequenos dedos de Asmodeu dançavam, enquanto caminhava, por cima de focos de fogo que se criaram em vários pontos, queimando grama, montes de folhas e animais. Ao seu redor, as casas já ardiam com mais intensidade, e barulhos se faziam ouvir sempre que uma delas ruía e desmoronava. Pessoas entravam, em algumas, para nunca mais saírem, segundos antes delas caírem em suas cabeças. Outros simplesmente se deixavam ficar, na frente daquilo que um dia foi sua moradia, com os ombros arqueados e cabeças baixas, desistindo de lutar. Ninguém mais tentava apagar o fogo, que já estava em toda Gioia.
     Ao longe, a lava do vulcão chegava até as plantações, lenta, quente e destruidora. A cada vez que encostava-se a uma uveira ou milharal, o fogo consumia em segundos, com pequenas explosões ao ar.
     Asmodeu parou em frente à porta de uma casa. Virou a cabeça quando ouviu a garotinha que enchia o balde sair correndo da casa ao lado. Seu cabelo pegava fogo, e um dos lados de seu pequeno corpo estava coberto por chamas. Ela gritou, se jogou no chão, rolou e levantou a mão na direção dele.
     - Ajuda...!
     Fitou o braço da pequena garota pendendo bruscamente ao lado de seu corpo e ela fechou os olhos pela ultima vez.
     Abriu a porta que estava a sua frente.
 
     Vincenzo continuava dando machadadas na viga que prendia a esposa. Sua testa estava suada, suas mãos pretas da madeira queimada e suas roupas já completamente cinzas da fumaça. Asmodeu entrou e observou.
     - Garoto, me ajude aqui, por favor.
     - Não.
     Asmodeu sentou-se no tronco ao lado da porta e olhou ao redor, depois pousou os olhos em Antonella. Tirou o capuz que cobria todo seu rosto e Vincenzo viu sua face pela primeira vez. Suas feições eram realmente de uma criança, cabelos curtos, castanhos claros, traços do rosto delicados, pele branca, lábios carnudos e levemente avermelhados, sobrancelhas bem delineadas e os olhos. Grandes e expressivos olhos verdes claros que refletiam naquele momento o vermelho do fogo que consumia a casa.
     - Ela esta bem mal, e sua casa irá desabar a qualquer momento - Disse Asmodeu, com sua voz suave e calma.
     - Se não puder ajudar, saia daqui, salve-se.
     - Não.
     - Vincenzo, minha barriga... esta doendo.
     Vincenzo voltou sua atenção para Antonella. Limpou com as costas da mão o suor que escorria, largou o machado no chão e puxou novamente a viga. Ela não se mexeu.
     Seu corpo foi a baixo, exausto pelas tentativas frustradas, e começou a esmurrar o pau várias vezes.
     - As coisas estão feias por aqui, senhor. – Asmodeu se fez ouvir novamente.
     - Saia daqui! – Lagrimas escorriam do rosto de Vincenzo. - Por quê? Por que isso agora? – As juntas de suas mãos já estavam esfoladas e sangrentas pelos repetidos socos dados na viga.
     - Chame de castigo da natureza... ou do seu Deus. São as duas únicas explicações possíveis.
     E Asmodeu levantou seu pequeno dedo.
     - Mas eu tenho uma solução. Você me dá o bebe que esta na barriga dela e eu a salvo.
     Vincenzo levantou a cabeça e fitou a criança:
     - O que você disse?
     A outra viga que sustentava o inicio da casa começou a fazer barulho, crepitando enquanto as chamas subiam até o teto. Não se via mais a cozinha, tomada completamente por fumaça, e agora a lava começava a chegar à sala onde eles estavam.
     Asmodeu abriu um leve sorriso enquanto inclinava levemente a cabeça e levantou uma sobrancelha:
     - Não é todo mundo que pode ter tudo. Você me ouviu bem apesar de todo esse barulho e destruição. Dei-me o bebê e sua esposa viverá. Caso contrário, ela e o bebê morreram e você ficará sem nada.
     Antonella tinha a expressão de pura dor. Ela soluçava de tempos em tempos enquanto seu rosto era lavado, da poeira cinza, com suas lágrimas.
     - Meu filho, meu primeiro filho e você o quer. Por quê? – Exclamou Vincenzo.
     - Não temos tempo para mais respostas, senhor. Diga... diga que o bebê será meu, liberto ela e vocês poderão reconstruir a vida em um lugar menos... digamos... fúnebre, como esse.
     Com os dentes cerrados, Vincenzo aumentou o tom de voz:
     - Nunca. - Pegou o machado.
     - Amo você. Por mim, por você e pelo nosso filho.
     Com um rápido movimento cortou a garganta de Antonella. O sangue jorrou rápido de seu pescoço e pela ultima vez Vincenzo viu os olhos da esposa com vida.
     Deixou o machado pender de sua mão e abraçou a esposa, enquanto seu corpo dava seus últimos espasmos.
     Asmodeu levantou-se do tronco e saiu da casa. Um alto crepitar, um estrondo e a construção desmoronou.
     Caminhou entre a lava que já tomava conta de todo o lugar, o fogo que ainda queimava o que restava de madeira e árvores, as labaredas que dançavam nos montes de cinzas e os corpos carbonizados de animais e pessoas, espalhados pelo chão daquilo que um dia foi Gioia.
Já havia dado vários passos com suas pequenas pernas. Atrás dele subia fumaça da aldeia e Paura continuava a jorrar suas lavas. Asmodeu olhava para frente e sussurrou consigo mesmo:
     - Talvez um dia consiga entender as escolhas humanas.
Labrac
Enviado por Labrac em 10/12/2019
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