Circuito fechado
- Marcão! Marcão! - gritou Roberto, que corria na direção de Marcos, que andava a passos largos.
Ao ouvir seu nome, Marcos voltou-se para trás, e viu Roberto, esbaforido.
Assim que se aproximou de Marcos, Roberto disse-lhe:
- Você anda rápido demais. Com essas pernas, você bate o recorde mundial dos cem metros rasos.
- Você precisa abandonar a sua vida sedentária, Betão - censurou-o Marcos. - Você bebe refrigerante e come hambúrguer no café-da-manhã, no almoço, no café-da-tarde, na janta, de segunda a segunda. Por isso você está assim, que mal se agüenta. Assim você se arrebentará, Betão. Qualquer dia desses...
- Pôxa! - exclamou Roberto, com um pouco de dificuldade, enquanto esforçava-se para se recompor. - Amigão, você, hein, Marcão! Amigão! Vim dar uma notícia, que é do seu interesse... Deixe-me recuperar o fôlego... Você anda muito rápido... As minhas banhas impedem-me de acelerar os passos. De certo ponto de vista, você tem razão. Estou fora de forma. Mas não precisa ficar me dizendo isso, não, tá?, e nem fique me esculhambando toda vez que nos encontramos... Agora, do ponto de vista de um barril, estou em ótima forma. Forma de um barril, obviamente. Para uma barrilzinha fofinha e gostosinha, sou um galã.
- Você leva tudo na brincadeira.
- E você é sério demais. Cara, você precisa abrir um sorriso de vez em quando nessa cara feia e abandonar a sua ridícula pose de gostosão. Você tem o rei na barriga.
- E o que você tem na sua barriga?
- Eu... O boi, os leitões, os frangos e os peixes que comi no café-da-manhã. Marcão, hoje enchi a pança.
- Todo dia você a enche.
- Hoje exagerei.
- Qual notícia você veio me trazer?
- Ah! Sim. A notícia... A Carolina convidou você para a festa de aniversário dela?
- Convidou.
- Você sabe quem me disse que vai lá?
- Não. Quem?
- A Janaína.
- A Janaína?
- Não. A Berenice. Você é surdo? Eu disse Janaína, então é Janaína. Se eu tivesse dito Fabiana, seria Fabiana. Se eu tivesse dito Ângela, seria Ângela. Se eu tivesse dito Catarina, seria...
- Está bem. Já entendi.
- Você sempre fica perdido, com cara de bobo, de idiota, sempre que alguém fala da Janaína. Você está gamado nela, hein, garanhão.
- Estou.
- Também pudera, a Janaína é uma gostosura.
- Não falte com o respeito.
- Ih! O homem virou fera. “Não falte com o respeito.” “Não falte com o respeito.”
- Detesto que me arremedem.
- “Detesto que me arremedem.” “Detesto que me arremedem.” “Não falte com o respeito.”
- Você perdeu a noção do perigo, Betão?
- “Você perdeu a noção do perigo, Betão?” “Você perdeu a noção do perigo, Betão?”
- Vem aqui, besta. Você não me escapa, maldito bolofofo. Rolha-de-poço! - e Marcos passou seu braço por trás do pescoço de Roberto, e apertou-lhe as bochechas ao mesmo tempo que o atraía para si e Roberto esmurrava-lhe, com socos inofensivos, a barriga.
Roberto e Marcos são amigos há mais de dez anos. Inseparáveis. Confidentes um do outro. O contraste, que não pode ser ignorado, de porte e de temperamento, deixa todas as pessoas admiradas. Marcos é alto, atlético, ríspido, desprovido de senso de humor, vaidoso e indiferente ao exercício intelectual. Joga vôlei. Encanta as mulheres. Roberto é gordo, tem um metro e setenta de altura e cento e sete quilos. Bonachão, zombeteiro, está sempre de bem com a vida, dono de inesgotável repertório de anedotas e frases de efeito. Estudioso, pretende seguir carreira literária. Participou de mais de cem concursos literários. Ficou em primeiro lugar em quatro concursos, recebeu sete menções honrosas, três menções especiais e cinqüenta e quatro prêmios de edição. Escreveu um romance e o enviou para nove editoras. Todas o rejeitaram.
Andavam pela avenida Nossa Senhora do Bom Sucesso. Dirigiam-se à escola. Os dois, ambos com dezessete anos de idade, fazem planos para a carreira que cada um sonha seguir. Marcos está determinado a chegar à seleção brasileira de vôlei; Roberto almeja o Nobel de literatura. Ambos estão dispostos a sacrificar outros prazeres da vida para atingir, cada um deles, o objetivo que cada um tem em mira. Essa precoce consciência da realidade e a força de vontade, mais do que tudo, os unem.
Marcos disse para Roberto que não pretendia ir à festa de aniversário da Carolina, mas como Janaína iria, ele, Marcos, também iria. Roberto perguntou-lhe porque ele não se simpatiza com Carolina; Marcos disse que ela é interesseira e duas-caras. Roberto discordou, disse que ela é adorável, e aprecia admirá-la nas aulas de educação física, nas academias de ginástica e nos clubes, à piscina. Falaram de Carolina durante uns dez minutos. Diante da livraria, despediram-se. Roberto entrou na livraria e Marcos rumou ao ginásio.
No final de semana, Marcos e Roberto foram à casa da Carolina. Divertiram-se muito. Separaram-se no momento em que Marcos abordou Janaína.
Na segunda-feira, Roberto, debruçado sobre o seu caderno de literatura, o cérebro entupido de idéias, pôs-se a escrever. Queria dar vazão à sua imaginação prodigiosa, expor os seus pensamentos, desenvolver as tramas concebidas. As personagens desfilavam, animadas, vivas, na sua mente. Roberto conversou com elas, pediu-lhes esclarecimentos sobre pontos obscuros da vida delas, detalhes de eventos por elas protagonizados e revelações sobre os pensamentos que lhes animavam a mente. Para Roberto, as suas personagens são vivas, reais. De todas as personagens que concebeu, Yvone é a mais instigante, a mais interessante, a de temperamento mais complexo e admirável. (Roberto adora conceber personagens femininas, que, para ele, são mais interessantes do que as masculinas). Yvone é uma jovem de dezoito anos (inspirada em uma jovem chamada Giovana, por quem Roberto suspira e alimenta um amor secreto - ele sabe que Giovana jamais olhará, com admiração e paixão, para ele, pois o rival dele, Ricardo, é um tipo muito mais interessante do que ele aos olhos dela).
No conto Divina, Roberto narra a história de Yvone:
Não há mulheres perfeitas. Há mulheres que se aproximam da perfeição. Mulheres honestas, belas, inteligentes, simpáticas. Elas são raras, dizem muitos homens. Não é a minha opinião. Há muitas mulheres extraordinárias. Os defeitos pequenos eu os relevo. Não desejo uma criatura celestial que desceu dos céus à Terra, perfeita, uma deusa - os deuses também são dotados de defeitos e de vícios tipicamente humanos, que são incalculáveis: gula, fúria, luxúria, incúria, etc. E os deuses têm serviçais e escravos para executar-lhes as tarefas mais comezinhas. E são ingratos e rancorosos.
Na condição humana, na absoluta ausência de pretensões a transcendê-la, Yvone é divina. Dela jamais ouvi propósitos transcendentais e objetivos inalcançáveis para os humanos. Ela não alimenta ideologias irracionais e não sonha com utopias que jamais serão concretizadas porque não levam em consideração a condição humana, utopias que, em resumo, são apenas conceitos de mundo ideal concebidos por pessoas desajustadas, pessoas que alimentam o desejo de erigir um mundo onde elas são reverenciadas. Yvone trata de coisas reais, palpáveis, mensuráveis. Admiráveis a sua determinação, a sua beleza, a sua simpatia e a sua inteligência. Tem dezoito anos - restam-lhe cinco meses para o décimo nono aniversário. Nas suas palavras há mais inteligência do que nas proferidas por muitos homens e mulheres de cabelos brancos. Tem idéias interessantes. Jamais apresenta lições supostamente edificantes. O belo corpo bem torneado ela o mantêm com alimentação balanceada, dieta saudável, sem os excessos das dietas dos vaidosos que, submissos - patéticos! - aos modelos disseminados pelos programas de televisão, pelas novelas, pelas passarelas de desfiles de modas e pelo cinema, emagrecem e convertem-se, como efeito colateral (ou não?), em esqueletos cadavéricos, lívidos, despidos de beleza natural. As falsas promessas das empresas de cosméticos, das revistas femininas e da cultura da anorexia bulímica jamais seduziram Yvone. Ela sempre resguardou a sua autenticidade, de temperamento, de personalidade, de idéias. Jamais se arrastou ao abismo para o qual muitas mulheres (e homens também) se arrastam. Conserva-se Yvone. Bela, linda. Divina. É aplicada nos estudos. É leitora voraz de romances clássicos e de livros de filósofos consagrados - mas mantêm independência de pensamento em relação a todos eles; jamais submeteu-se a uma doutrina e jamais sucumbiu à autoridade de um gênio reverenciado pela humanidade estéril (mais justa apreciação da humanidade: uma parcela é estéril; para sorte dos humanos, todas as épocas tiveram os seus espíritos independentes e libertários). É leitora apaixonada de Montaigne, Leibnitz, Hume, Ortega y Gasset, Gilberto Freyre, Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Joaquim Nabuco, Tocqueville, Ludwig von Mises, Locke, Mário Ferreira dos Santos, Proust, Tolstoi, Machado de Assis, Balzac, Dostoiévski, Swift, Cervantes, Melville, Stendhal, Shakespeare, Whitman, Pessoa, Thomas Mann. Essa lista representa a qualidade da leitura de Yvone. A lista completa, se inserida aqui, ocuparia uma resma de papel de sulfite. Nutrida pela leitura da obra de tão extraordinários romancistas, poetas e filósofos, Yvone adquiriu erudição de causar inveja aos eruditos. Na sua pouca idade, não tem rivais.
Dedica-se aos exercícios intelectuais - e não descuida dos exercícios físicos.
Todos os dias, ao acordar, Yvone, antes de o sol nascer, vai à piscina e nada durante trinta minutos. Após retirar-se da piscina, faz a refeição da manhã, rica em carboidratos, vitaminas, fibras e proteínas. Vai ao trabalho, de segunda a sábado, de bicicleta. O trajeto, da sua casa à loja na qual trabalha, corresponde a dois quilômetros. Ao fim do expediente, às seis horas da tarde, ela transita por um percurso de três a quatro quilômetros. Ao chegar à sua casa, troca de roupas e faz caminhada de três quilômetros e, depois, nada, na piscina do clube, por meia hora. À noite - não todos os dias - reúne-se, no clube, com as amigas e os amigos. Joga, em um dia, vôlei, no outro, basquete, em outro, futebol, em outro, handebol. Duas vezes por semana, na terça-feira e na quinta-feira, tem uma aula de uma hora, em cada dia, de karatê; na sexta-feira e no sábado, uma hora, cada dia, de capoeira. Muitas pessoas perguntam-lhe como ela consegue conciliar trabalho, namoro, estudo, esportes e diversão. Ela responde, lacônica:
- Defino as minhas prioridades, e me concentro nelas.
Essa frase, para muitas pessoas um enigma indecifrável, reserva mistérios insondáveis.
Yvone escreve romances, poesias, contos, novelas, ensaios filosóficos, reflexões sobre a vida e o universo e faz pesquisas, na internet, sobre inúmeras ciências. Participa de concursos e saraus literários e filosóficos e de congressos científicos. Integra duas academias. Ostenta, com orgulho, o seu título de acadêmica.
O namorado de Yvone, Marcelo, é um sujeito da estirpe e do temperamento de Yvone. Dizem que os contrários se atraem. Marcelo e Yvone não são contrários, não são, um, o pólo positivo, e o outro, o negativo. Os dois conservam, cada um dentro de si, os dois pólos.
Nos dois finais de semana anteriores, Yvone escreveu trechos de uma novela e de um roteiro de filme ao qual ela vinha dedicando-se havia seis meses. No capítulo quatro da novela, narrou a seguinte cena:
Capítulo 4 - Um diálogo descontraído.
Na casa de Larissa, reuniram-se Marco Antonio, Pedro Paulo, Larissa, Cláudia e Madalena. Pedro Paulo foi o que menos se pronunciou. Ouviu mais do que falou. É submisso ao seu temperamento: retraído. Manifestava-se apenas quando algum dos seus interlocutores pedia-lhe a opinião. Marco Antonio, bonacheirão, falou sem parar e não compreendeu as insinuações maliciosas de Madalena, mulher de espírito livre e temperamento agressivo. Cláudia, estudiosa e tímida, de espírito crítico, comentou todos os assuntos de perspectivas inusitadas. Larissa, tagarela, fofoqueira, não deixou de falar tudo o que sabia a respeito da vida alheia.
- Vocês não sabem da novidade - disse Larissa, com ar de suspense, atraindo a atenção de Marco Antonio, Pedro Paulo, Cláudia e Madalena. Todos, certos de que ela lhes daria revelações surpreendentes sobre a vida de alguém, ouviram-na, atentamente. - Vocês não imaginam o que eu soube, hoje cedo. Não imaginam...
- Conte logo, Larissa - reclamou Madalena. - Deixe de suspense, e conte logo, mulher.
- A Carla contou-me que o Túlio pegou, no flagra, a Marcela e o Lauro, na cama, na casa dela.
- E o que o Túlio fez? - perguntou Madalena, excitada pela notícia.
- O Túlio pulou sobre o Lauro, e esmurrou-o até ele dizer chega! A Marcela tentou separá-los. Não conseguiu. O Túlio quase fez picadinho do Lauro, que, sortudo, safou-se de ir parar num caixão, mas está numa enrascada na qual eu não desejaria me ver. O Túlio prometeu enviá-lo para o inferno. E ele é capaz disso. Se o Lauro dele não tivesse se livrado, agora estaria sete palmos abaixo da terra, conversando com os vermes.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Cláudia, na sua casa, escreveu o último capítulo de um conto no qual trabalhava havia uma semana. É o que segue:
Quatro dias após a festa de aniversário de Carolina, Marcos e Roberto encontraram-se na Praça Emílio Ribas.
- E aí, Marcão – disse Roberto, expansivo, ao saudar Marcos, ao mesmo tempo que lhe estendeu a mão direita para cumprimentá-lo.
- Aí, Beto - disse Marcos, cabisbaixo, voz sumida, cujo rosto transparecia o sofrimento que lhe avassalava o espírito. Roberto abaixou, automaticamente, o braço direito, enfiou a mão no bolso da calça, sentou-se ao lado de Marcos, tocou-o no ombro, e perguntou-lhe:
- Que bicho mordeu você, brother? Diz respeito a Janaína, não é?
- É. É a Janaína - respondeu Marcos, sussurrando. Pela primeira vez em sua vida, Roberto viu-o chorar. O silêncio, opressivo, constrangedor, estendeu-se por uns dez minutos, até Marcos, recomposto, enquanto enxugava as lágrimas, pôr-se a falar: - Você não imagina o que aconteceu, Betão. Você não imagina... Na casa da Carolina... Conversei com a Janaína. Nos entendemos... Eu e ela conversamos. Ela se mostrou bem receptiva, bem disposta... Ficamos na casa da Carolina até... Não sei até que horas. Saímos de lá, acho, depois da meia-noite. Você havia ido embora. Sei que você havia ido embora porque a Ingrid me contou. Eu lhe perguntara se ela havia visto você, e ela me disse que você havia ido para Taubaté, meia-hora antes, mais ou menos, com a Beatriz, a Samantha e o Vanderlei. Sei disso... A Ingrid... Ela me contou. E eu e a Janaína nos despedimos da Carolina, do pai e da mãe dela, da Ingrid, da Renata, do Paulo, e de mais alguns conhecidos, e fomos à discoteca. Perguntei à Janaína se ela queria namorar comigo. Ela sorriu. Não precisou me dizer o que ela desejava. Beijei-a. Nossa! Beto. Fazia décadas que eu desejava beijá-la. Beijo daqueles, sabe, Beto? Inesquecível... Coisa de louco. Ia tudo muito bem... Ia... A Janaína... Eu, cheio de mim, todo prosa, a considerava minha. Mas... Diabos! As coisas nunca acontecem como desejo. Inferno! Vou contar para você o que aconteceu. Você vai entender... Diabos! Puxa, Beto... Sou um filho-da-polícia! Mereço um tiro na cabeça! Que alguém me estoure os miolos, para eu deixar de ser besta! Na discoteca, depois... Estávamos na discoteca. Conversávamos. Dançávamos. Eu olhava para a Janaína... Eu pensava... Nossa! Seria a melhor noite da minha vida... Como eu disse, seria... Mas não foi. Por quê? Porque o papai aqui é um idiota, um imbecil, um retardado, uma besta quadrada. Burro! Asno! Imbecil! Por que... Eu e a Janaína nos entendíamos muito bem... Aí, a Janaína pediu-me licença para ir ao banheiro. E fiquei, lá, na pista de dança. E eu ia me chegando ao balcão... Sabe quem cortou o meu caminho? Sabe quem me apareceu? A Ludmila. Lembra-se dela? A minha ex. Ludmila! Por que ela foi aparecer lá? Vestida com aquele decote, com aquela mini-saia... Meu Deus! Beto, que desgraça! Duas gatas... Eu, interessado na Janaína, e a Ludmila aparece para me atormentar... Por que a Ludmila foi àquela discoteca? Se eu soubesse que ela iria lá, eu levaria a Janaína para outra discoteca, ou... Pois é, meu velho... Beto... Fiquei perdido. A Ludmila estava linda. Tentação. Gata. Deusa. Olhei, com cara de bobo, para ela. De um bobo bem bobo, um bobo idiota, um bobo imbecil. E ela veio... Deu-me um beijo no rosto. “Oi.”, disse-me ela, com aquela voz doce... Sorria... Olhei para ela, com cara de idiota. “Tudo bem, Marcos?”, perguntou-me ela. “Não nos vemos há um bom tempo. Que bom encontrar você aqui. Passei na sua casa. Seu pai disse-me que você havia ido à festa de aniversário da Carolina. Fui à casa da Carolina. A Carolina disse-me que eu encontraria você aqui. E aqui estou, Marcos, para você, todinha para você.” E ela, Beto, passou-me os braços pelo pescoço e espremeu-se em mim. E beijou-me. Não resisti. Estreitei-a nos braços. Beto... Eu e a Ludmila nos beijamos.
- E a Janaína?
- A Janaína? Eu e a Ludmila nos beijávamos... Eu havia me esquecido da Janaína. Tão absorto... A Ludmila, com aquele decote, aquela mini-saia, aquele perfume, aquele batom... Irresistível. Irresistível. E a Janaína... Eu havia me esquecido dela. Maldita Ludmila! A Janaína foi ao banheiro, voltou, e o que ela viu? Eu e a Ludmila aos braços um do outro. Aos beijos... Aos amassos... Ah! Beto. Melhor não contar... A Janaína soltou um berro que podia ser ouvido em Tóquio. Em Kuala Lumpur... Não sei onde fica Kuala Lumpur; sei que fica bem longe, e de lá seria possível ouvir o berro da Janaína. Eu não sabia o que pensar... O beijo, tão gostoso... Afastei-me da Ludmila. Olhei para a Ludmila. Olhei para a Janaína. Olhei para a Ludmila. Olhei para a Janaína. Você não imagina, Beto, o que aconteceu. Você não é capaz de imaginar. Olhei para a Janaína. Olhei para a Ludmila. Ah! Inferno! Que escândalo! Escândalo para figurar na primeira página de um tablóide britânico. De um tablóide britânico! Britânico! A Janaína... Os olhos dela... Os olhos dela... Atingiram-me em cheio... Dos olhos dela, lágrimas... Os lábios, trêmulos... Mas... Ela, com raiva... Muita raiva... Furiosa... Ela queria me devorar. Queria me mandar desta para a melhor. Beto, a Janaína deu-me um tapa na cara. Virou-me para o avesso. Depois, a Ludmila, os olhos arregalados, mãos na cintura, fez um “Oh! Não acredito.”, e acertou-me um tapa na cara, que me virou para o avesso do avesso; em seguida, virou-me às costas, e, furiosa, andando entre a multidão de curiosos, foi-se, batendo os pés. Foi constrangedor. E a Janaína, Beto, a Janaína... Ah! A Janaína, Beto, disse-me que não deseja mais me ver, nem morto. Nunca mais. Virou-me às costas. E foi-se. Belo conquistador eu sou... Perdi, em uma noite, a Janaína e a Ludmila. A Ludmila, bem, eu não a namorava... Mas a Janaína... Perdi a Janaína... Beto, perdi a Janaína...
- Não fique cabisbaixo, Marcão. Pense: Você ficou no avesso? Não. A Janaína virou você para o avesso. Por sorte, a Ludmila desvirou você. E isso não é bom?
- Não estou para brincadeiras, Beto...
- Você é sortudo, Marcão - comentou Roberto.
- Sortudo!? Sortudo!? Beto, você ficou louco? O que você bebeu? Tequila? Vodka? Whisky? O que você cheirou? A Janaína e a Ludmila, Beto, as duas... Nenhuma delas quer me ver mais, nem pintado. Nem morto. Perdi a Janaína... E você diz que sou sortudo!? Você perdeu um parafuso? Perdeu dois parafusos? Você encheu a sua cabeça com titica de galinha?
- Você é um homem de sorte, Marcão. Você tem as duas mulheres mais bonitas da cidade nas palmas das suas mãos.
- Beto, não estou para brincadeiras.
- Você está com a faca e o queijo nas mãos. É só estalar os dedos, que as mulheres correm até você... Que homem sortudo.
- Beto, não continue com essa piada...
- Marcão, as duas mulheres mais bonitas da cidade estão loucas por você. As duas, enciumadas, e por você. Você é um Casanova. Você é um dom Juan. Garanhão. Gostosão. Você é o cara, Marcão. A Janaína e a Ludmila... Garanhão - e deu-lhe um tapa no ombro. Marcos fitou-o, embasbacado. Não queria acreditar no que ouvia. Ou Roberto havia enlouquecido ou apreciava um tipo de humor que ele, Marcos, não compreendia e não desejava compreender.
À noite, Roberto debruçou-se sobre a escrivaninha, e escreveu o encerramento da história de Yvone:
Yvone e Marcelo, nas férias de Yvone, foram ao cinema, ao teatro, a festivais de música, a saraus literários e filosóficos, a congressos de tecnologia e científicos. Foram dias produtivos, férteis de idéias e extraordinariamente proveitosos. As conversas com amigos, atores, escritores, músicos, filósofos, webdesigners, internautas, blogueiros e cientistas enriqueceram-lhes a rica erudição. Os livros, os filmes, as revistas em quadrinhos e os games inspiraram-lhes inúmeras idéias que eles remoeram e as traduziram para uma linguagem singular, distinta, que deles refletia o temperamento e as afinidades literárias.
Dois dias antes do fim das férias, Marcelo e Yvone, de regresso de Ubatuba, onde passaram três dias banhando-se ao sol, tomando banhos de mar, passeando pela orla marítima, degustando deliciosos frutos do mar, entraram em Taubaté. Um caminhão desgovernado colidiu com o carro no qual iam Marcelo e Yvone, e o arrastou por mais de cinquenta metros, e capotou, vindo a colidir com um ônibus desocupado, e um muro, derrubando-o. A colisão, tão violenta, reduziu o carro à sucata. Marcelo morreu instantaneamente. Seu cérebro foi esmigalhado, os pulmões e o coração, perfurados, as pernas e os braços, quebrados. Yvone, com traumatismo craniano, as pernas quebradas, um braço quebrado, morreu, na ambulância, a caminho do hospital. O motorista do caminhão morreu esmagado entre as ferragens.
Três dias antes, Yvone concluíra a história de Cláudia, Larissa, Marco Antonio, Pedro Paulo e Madalena, história cujo último parágrafo é o que segue:
Pedro Paulo, numa inconsequente aventura amorosa com uma prostituta, contraiu o vírus HIV. Seu pai e sua mãe o expulsaram de casa. Uma semana depois, desesperado, pulou de sobre um viaduto, na linha férrea, à frente de um trem. Seu corpo foi mutilado. Um artigo a respeito do suicídio estampou a primeira página dos principais jornais da cidade. Marco Antonio casou-se duas vezes. Sua primeira esposa, Cátia, autoritária e histérica, sugava-lhe o pouco dinheiro que ele recebia todo início de mês. Marco Antonio surpreendeu-a, na cama, aos beijos e abraços, com dois homens. Sua segunda esposa, Solange, sofreu de depressão pós-parto, matou o filho recém-nascido, afogando-o na banheira, e enlouqueceu; Marco Antonio internou-a em um manicômio. Larissa foi expulsa da família por seu pai e sua mãe, que souberam que ela era lésbica e mantinha um relacionamento, desde os dezoito anos, com Marta, a sua chefe, com quem foi morar em Belo Horizonte. Madalena, aos quarenta anos, ingressou em um convento. Cláudia, escritora promissora, com dezenas de prêmios literários, amputou as duas pernas após um acidente automobilístico. Abandonada pelo primeiro marido, que a trocou por uma jovem beldade de dezoito anos, ficou deprimida. Seu segundo marido usou-a como um imã para atrair outras mulheres e dissipou-lhe a fortuna que ela arduamente amealhou com os seus romances, contos, novelas, roteiros de filmes, de revistas em quadrinhos, e traduções. Seu filho, Cauã, que se envolveu com tráfico de drogas, morreu com um projétil alojado no coração, ventrículo direito, e um no cérebro, hemisfério esquerdo, lobo temporal. Sua filha, Marli, vinte e um anos, casada com Saulo, empresário bem-sucedido, deu-lhe uma netinha, Virgínia, corada e saudável. Cláudia a adora.