VALE DAS FLORES - CARTA I
Carta I
Tailândia, 10 de janeiro de 1958
“Juan
Não sei como anda a correspondência para os combatentes e os recrutados para a guerra, só sei que eu, seu pai e sua irmãzinha estamos bem, porém com saudades. Desde o dia em que nossa cidade foi atacada pelo exército inimigo, muitas pessoas morreram e muitas fugiram. Nossas casas quase foram destruídas e nossas ruas e bairros estão irreconhecíveis, se comparado com a antiga Rua dos Fogos de Artifício, alcunha que nosso vilarejo possuía por causas das nossas festas sagradas.
Quando o exército te recrutou, eu fiquei imaginando como te vi crescer junto da nossa Eleonora. Ela sempre imperativa e você calado e sisudo, mas muito forte.
Vi como você aguentou por um bom tempo o momento duro que foi a nossa primeira mudança de casa lá em Bangkok para a Rua dos Fogos. Você deixou amiguinhos de infância para trás e mesmo assim eu não te vi chorar. Sei que sofreu, mas você mostrou ser um legítimo soldado não somente no exército, mas também na vida.
Enquanto a guerra insiste, continuamos a ficar sob a proteção dos soldados que aqui estão para direcionar o povo. A caixa de correios da cidade foi colocada do lado de fora e então é sempre uma longa caminhada te enviar minhas cartas, porém ainda aguardo uma resposta sua.
Cada um montou sua barraca para habitar com suas famílias. Seu pai já montou a nossa. Provavelmente os refugiados e sobreviventes que estão aqui serão transferidos para o Vale das Flores, lugarejo nos recônditos da cidade onde os rebeldes não farão nem ataques aéreos nem mandaram seus soldados miseráveis e cruéis para lá. Mas não quero ir para lá.
Os recursos vêm ficando cada vez menores (Filho, não queria te dar essa preocupação), porém ainda temos um supermercado afastado de Bangkok, próximo ao Bágvata, onde, dizem alguns, possui comida e roupas. Ele também foi quase destruído, mas ainda existe o freezer de lá que guardam as carnes do açougue.
Infelizmente para chegar lá só armado, pois muitos animais ferozes cercam o lugar devorando as vítimas desavisadas que passam por ali em busca de alimento. Entre essas feras e os rebeldes, ainda confio mais nas feras.
Sua irmãzinha de vez em quando tosse ainda por causa daquela doença. Mas esse final de mês ela faz oito anos e queria que seu presente fosse uma boneca da Shiva. Que ela mantenha essa inocência.
Seu pai continua em busca de alimento para nós, mesmo debilitado. Ele muitas vezes come menos para colocar um pouco mais no nosso prato. Os soldados, embora estejam nos defendendo, são muito lentos quando o assunto é trazer mantimento pra cá, então seu pai tem se virado da melhor maneira possível, sempre caçando a noite. Temos que comer escondidos porque não temos pra todo mundo. Um castor, um coelho, um sapo, isso não é lá o manjar dos deuses, mas é o que mata nossa fome.
Creio que você responderá em breve. Não desista. Nosso país precisa de você.
Com amor,
Sua mãe Jadhina.”
Continua...