O tiro
Testemunhei, ontem, ao entardecer, um dos mais horrendos espetáculos que a vida poderia me proporcionar. Indescritível. Inenarrável. Inominável. Não encontro as palavras adequadas para dar a dimensão das profundas impressões que o evento me deixou no espírito de homem pacato que nunca testemunhara cena tão horripilante e que não deseja testemunhar outra igual. Digo, na ausência de uma expressão que traduza melhor os meus sentimentos: carregarei para o túmulo imagens, tão impactantes, que dissolveram meu espírito. Eu gostaria de jamais haver testemunhado tão... Como eu direi? Estranho? Inusitado? Grotesco? Horripilante? Nenhum desses adjetivos dá a dimensão do que testemunhei. Eu gostaria de poder me expressar com palavras que reproduzissem com exatidão as impressões que o evento me gravou na memória, no espírito, na alma.
Por que não intervi... O que eu, assustado, impressionado, estupefato, poderia fazer? Não sou clarividente. Eu não sabia como o evento se desenrolaria, e tampouco como se encerraria. Encerramento tão... Inusitado? Imprevisível? Absurdo? Eu, um observador petrificado diante de uma cena inédita, mantive-me distante dos dois protagonistas desta história, desde o início do evento, que transcorreu num ritmo vertiginoso. Aproximei-me deles, curioso, na expectativa, sem ter consciência de que deles eu me aproximava. O que eu poderia fazer contra um homem que empunhava um revólver? Telefonei para a polícia. Naquelas circunstâncias, na companhia da Laura, a minha namorada, esta era a única providência que eu poderia tomar. Passou-me pela cabeça o desejo de bancar o herói. Tal pensamento foi-se embora tão logo se me aflorou ao cérebro. Não sou um herói. Seria uma rematada tolice interferir na discussão daqueles dois homens, que prodigalizaram um espetáculo que não está no gibi. Um deles empunhava um revólver. Eu, a Laura e não sei quantas outras pessoas assistimos à cena entorpecente. Nenhum filme nos proporciona cena tão impactante.
Após relatar o horrendo evento para o Ulisses, a Zulmira, o Júlio César, respectivamente, pai, mãe e irmão da Laura, e, depois, para a Adriana, a Zuleica, o Milton e o Osvaldo, amigos meus e da Laura, despedi-me da Laura, e vim para a minha casa. Aqui, narrei o ocorrido ao meu pai, à minha mãe e às minhas irmãs. Curiosos, ouviram-me atentamente. Prendi a atenção deles porque lhes narrei uma tragédia, gênero narrativo mesmerizante. Todas as atenções convergiram para mim durante o jantar, e depois. Meu pai não assistiu ao noticiário, e minha mãe e minhas irmãs não assistiram à novela. Sou um jovem extraordinariamente poderoso: fiz com que minha mãe e minhas irmãs perdessem um capítulo da novela. Esta é a explicação para a borrasca que despencou, ontem, em todo o estado. Pediram-me a repetição da cena derradeira. Não me fiz de rogado. Narrei-a. E a comentei. Perguntaram-me o que fiz, se fiquei nervoso, com medo. Perguntaram-me da Laura, se ela tremeu de medo (medrosa do jeito que ela é, disseram), se ela correu, e se escondeu dentro de uma loja. A Jéssica quis que eu lhe dissesse porque o protagonista deste episódio agiu como agiu, e exigiu-me explicações. Não lhas dei, obviamente. Se eu as tivesse! Ela não se satisfez com o meu silêncio a respeito. Minha mãe e meu pai vieram em meu socorro, chamando-a à razão; perguntaram-lhe como eu poderia saber o que se passava dentro da cabeça de um desmiolado. Depois de ouvir as minhas ponderações sensatas, as de papai e as de mamãe, a Jéssica insistiu em querer me extrair uma explicação plausível para a conduta do indivíduo ao qual minha mãe se referiu como um desmiolado. Não lha forneci, mas não me furtei a conjecturar algumas hipóteses – cinco ou seis, todas erradas, certamente. Não satisfiz a curiosidade intelectual de minha irmã – ela será uma psicóloga, pois tem o hábito de fazer perguntas para as quais ninguém conhece a resposta certa; melhor, ela faz perguntas para as quais não se deve perder tempo procurando por uma resposta, pois há mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia. Após minha mãe pôr a Jéssica para dormir, e a Tábata sair com a Luciana e a Rafaela, recolhi-me ao quarto. Pouco depois, banhei-me. Comi torradas, uma fatia de bolo de laranja, uvas, e bebi leite com baunilha em pó. Conversei com meu pai, durante uns dez minutos, sobre futebol, e despedi-me dele. Voltei para o quarto, bocejando, sonolento, exausto. Exauriram-me as energias a tensão, a apreensão e o medo de horas antes. Deitei-me, na cama. Pressionei o interruptor à cabeceira da cama - e apagou-se a luz. Fez-se a escuridão. Ajeitei o travesseiro. Aconchegado, no esforço de suprimir da mente as horrendas imagens que testemunhei, pensei na Laura, no desenho animado e nos vídeos de mulheres aos quais assisti, na internet. Nem as mulheres conseguiram afugentar de minha cabeça as cenas que testemunhei à tarde. Virei-me, na cama, de um lado para o outro. Deitei-me com o lado direito para cima. Deitei-me com o lado direito para baixo. Deitei-me de barriga para cima. Deitei-me de barriga para baixo, e enfiei a cara no travesseiro. Não consegui respirar, e ergui a cabeça. Não recomendo esta prática, para se buscar o sono, a ninguém. É sufocante. De nada me adiantou contar carneirinhos. Não sou um pastor. Muitos carneirinhos desgarraram-se do bando, e os lobos os devoraram. E a cerca por sobre a qual eles pulavam era eletrificada. Tempos modernos. Eletrificada para dissuadir ladrões, lobos e raposas de invadir a minha fazenda, mas acabou por matar, carbonizados, alguns carneirinhos. Resumindo: revirei-me na cama e não consegui pregar o olho. E para dormir não me injetei na veia a substância que Leonardo de Caprio se injeta, naquele filme do Christopher Nolan. Tentei sonhar que sonhava - para fazer isso eu teria de dormir. E quem disse que eu conseguia dormir! Morfeu não me visitou nesta noite. Não entrei no País das Maravilhas. Neste reino onírico eu entrava quando era criança, e protagonizava aventuras para lá de fantásticas. Notabilizei-me como rei e monarca e faraó e gênio nestas aventuras oníricas. Mas, nesta noite, o sono não me veio. Passei a noite em claro. As terríveis cenas que testemunhei, ontem, à tarde, repetiam-se, incessantemente, em meu cérebro. Sobrepunham-se as imagens. Intercalavam-se, entrecortadas. Imbricavam-se. Justapunham-se. Fundiam-se. Não pude afastá-las de minha mente. Era como se elas estivessem incrustadas em todos meus neurônios, dos quais não poderiam ser removidas sem que, com a remoção, não destruíssem minha mente. Agora, com a esferográfica à mão, debruçado sobre a mesa, sustentando a cabeça com a mão direita, escrevo, sonolento, bocejando a intervalos curtos, esta narrativa. As imagens afluem, incessantes, à minha mente, avassalam-me a alma, preenchem todos os interstícios de meu cérebro, este órgão de aparência tão repulsiva. Parece nozes. Mas não é comestível. Quem dirá isto para Hannibal Lecter? E as imagens afluem à minha mente, em profusão. Repetem-se. E repetem-se. Decidi relatar o evento da véspera, para que, assim, penso, registrando-o, eu o esqueça, e ele não me atormente mais, e eu possa dormir, na noite de hoje, tranquilamente, e sonhar sonhos idílicos. O impulso de escrever, irrefreável. Encerrarei a redação após narrar o horrendo episódio que testemunhei, ontem, na companhia da Laura. Até agora limitei-me a aludir ao evento, desordenadamente. Afinal, a qual evento referi-me desde o início deste manuscrito? Terei de conter-me no meu ímpeto de escrever, e organizar meus pensamentos. Principiarei do começo a narrativa, como, zombeteiramente, declaramos, antes de iniciar o relato de uma aventura que protagonizamos.
Fui à casa da Laura às quatro horas da tarde. Conversamos, não sei durante quanto tempo, com a tia da Laura, Maria Elizabeth, que viera, dois dias antes, do Rio Grande do Sul, onde mora, para visitar os familiares. Ela nos deu muitas notícias que nos alegraram e algumas entristecedoras: a morte de um primo e a de uma sobrinha, cujos nomes não me recordo. Josias e Jennifer, se não me engano. Ou Nicole? Não me recordo. Jennifer e Nicole são irmãs. Uma delas foi assassinada. Notícia entristecedora. Lágrimas vieram aos olhos de Maria Elizabeth. Os outros que a ouvíamos nos silenciamos. Não eram seis horas da tarde quando eu e a Laura nos despedimos de sua mãe e de sua tia. Não tínhamos outro objetivo além do de andar pelas calçadas do centro da cidade, olhar para as roupas, os calçados, os computadores, os chocolates, expostos nas vitrines das lojas, e, se nos desse vontade, determo-nos em uma sorveteria, para chuparmos sorvetes; picolés, não; não os aprecio, e Laura também não.
Andávamos, tranquilamente, em meio ao azáfama reinante. Crianças com uniforme escolar, acompanhadas de um adulto, e jovens sobraçando cadernos, iam de um lado para o outro. O trânsito, caótico. Detivemo-nos diante da vitrine de uma loja de calçados. Laura apontou os calçados que desejava comprar, todos inacessíveis ao seu pai e à sua mãe. Na loja vizinha, à direita, quatro manequins exibiam vestidos deslumbrantes pelos quais Laura, disse ela, apaixonou-se. Ela também disse que pediria para sua mãe comprar-lhe um vestido; não o pediria ao seu pai, pois dona Zulmira é, nas palavras da Laura, mão aberta, e seu Ulisses, mão fechada, mão de vaca, unha de fome. O Ulisses não é mão de vaca, como diz a Laura. Ele é parcimonioso, diria meu tio Washington, sempre mergulhado nos livros, com o nariz, como diz tia Luiza, esposa dele, enfiado entre as linhas, os olhos grudados nas folhas, e os ouvidos a ouvir a voz interior enquanto decifra os indecifráveis segredos daqueles misteriosos livros de filosofia. À direita da loja de vestidos femininos, há uma loja de calçados à frente da qual detivemo-nos eu e Laura. Alguns calçados eram, direi, atraentes; outros, de um mal gosto de provocar engulhos até no diabo. E a Laura, mais uma vez, para não perder o costume, disse que pediria para sua mãe, mulher generosa, comprar-lhe este e aquele par de sapatos pelo qual se apaixonou, e não os pediria ao seu pai, porque ele não abre a mão nem para dar tchau. Andamos alguns metros. Expostas à vitrine de uma loja, roupas íntimas femininas. Arregalei os olhos. Expressei uma interjeição. Não escondi da Laura o meu interesse por aqueles sutiãs e aquelas calcinhas (obviamente, interessei-me pelas roupas íntimas femininas não para eu as usar, mas para a Laura cobrir-se com elas. Cobrir-se com roupas tão minúsculas!?). Detive-me. Laura puxou-me pela mão, a passos pesados. Esbocei resistência. Laura beliscou-me, e ameaçou dar-me um tapa. Deixei-me levar por ela, sorrindo, divertidíssimo. Laura irritou-se, franziu o cenho, disse-me que me quebraria o nariz com um soco se eu me detivesse diante daquela loja, e mandou-me suprimir o sorriso do rosto. Andamos alguns metros. Detivemo-nos diante da vitrine de uma loja de roupas femininas. Dos quatro vestidos expostos, a Laura apaixonou-se por três; pediria, disse, para sua mãe, mulher generosa e mão aberta, comprar-lhos. Informo: O mais barato dos três vestidos estava à venda por R$ 250,00. Diante da vitrine desta loja permanecemos por mais tempo do que diante da das outras lojas. Laura amou – disse ela - os vestidos, que lhe inspiraram aventuras mais comuns aos contos de fadas do que à realidade. Disse que queria entrar na loja para ver quais outros vestidos haviam lá, mas queria vê-los ‘com as mãos’, e puxou-me pelo braço. Foi neste momento que nos chegou aos ouvidos barulho de pneus cantando no asfalto. Viramo-nos, simultaneamente, para a nossa esquerda, a tempo de assistir à colisão de dois carros, um vermelho e um prateado. Laura exclamou: “Nossa!”, arregalou os olhos, cobriu a boca com a mão esquerda, e, soltando-me o braço, com a mão direita cobriu a mão esquerda. Arregalei os olhos. Vi várias pessoas, todas com o olhar convergindo para os dois carros que se envolveram no acidente. Por sorte, ambos os motoristas frearam a tempo de impedir uma colisão destruidora. Nenhum dos dois carros teve danos significativos. Do carro prateado ficou quebrado o farol dianteiro; do carro vermelho, a porta ficou amassada. Ajuntou uma pequena multidão de curiosos nas proximidades. Ninguém, no entanto, aproximou-se dos dois carros. Os curiosos, expectantes, aguardamos o desenrolar do evento. O que haveria a seguir? Os dois motoristas se insultariam, se engalfinhariam, se arrancariam sangue um do outro? Do carro vermelho retirou-se um homem robusto, de um metro e oitenta de altura, barba rapada, cabelos curtos, queixo quadrado, sobrancelhas espessas, lábios finos, descoloridos, quase indiscerníveis. Trajava uma calça jeans e uma camisa de um time espanhol de futebol. Com o olhar assustado, deteve-se; coçou a cabeça, e olhou, apalermado, para o motorista do carro prateado. A colisão roubara-lhe o governo de si. Presumo que foi a primeira vez que ele se envolveu em um acidente de carro, daí a sua imobilidade. Ele não sabia quais providências tomar, o que dizer, nem para o motorista do carro prateado, nem para si mesmo. Estava constrangido. Sorriu, acanhado. Indisfarçável, o seu constrangimento. Coçou o nariz com a ponta do dedo indicador direito, premiu as narinas, e olhou ao redor. O motorista do carro prateado, nesse meio tempo, ao desvencilhar-se do cinto de segurança, abriu a porta do carro, e do carro retirou-se, bufando de raiva, rilhando os dentes. Fitou o motorista do carro vermelho, bateu a porta do carro, fungando, furioso. Visível a raiva contida em seu rosto. Era um homem de estatura mediana. De um metro e sessenta, se muito. De trinta anos de idade, presumo. Trajava uma bermuda verde-abacate e camisa regata; nos pés, tênis azul com faixas brancas e amarelas. Era magro, mas não era desprovido de músculos salientes; os vasos sanguíneos destacavam-se. De lábios grossos, queixo pontudo. Tinha, na orelha direita, dois brincos (um, argola; o outro, uma estrela azul); na narina esquerda, um piercing; e um piercing na extremidade externa da sobranceira direita. Carregava cabelos compridos pretos, presos, num rabo-de-cabelo, com elásticos; no ombro, no braço e no antebraço esquerdos tinha uma tatuagem, ou várias tatuagens; não pude distinguir a figura (ou figuras) representada. Ele andou, a passos pesados, na direção do motorista do carro vermelho. Não o agrediu, no entanto, como, presumo, desejava fazer, pois o motorista do carro vermelho era maior e mais forte do que ele. Irritado, enraivecido, com os punhos cerrados, esbravejou e ofendeu o motorista do carro vermelho, mantendo dele a distância de dois metros. Os curiosos, expectantes, antevíamos uma briga corpo-a-corpo entre os dois motoristas. Ansiávamos por uma briga. Queríamos assistir à luta do século, ao vivo, e em cores, entre aqueles dois homens. Quais regras eles respeitariam? Nenhuma. Ninguém arbitraria a luta. Eles, previ, prodigalizariam uma luta inesquecível. O motorista do carro vermelho e o motorista do carro prateado entrariam para a história universal como os protagonistas da luta do século. Perguntei-me, em silêncio, porque o motorista do carro vermelho, com os seus um metro e oitenta de altura e punhos de aço não cerrava os punhos e não nocauteava o baixinho do carro prateado. Por que ele o ouvia, calado, constrangido, e olhava de um lado para o outro, enquanto o motorista do carro prateado intensificava os insultos, e punha-lhe o dedo indicador em riste diante do nariz? Vários curiosos atiçavam o motorista do carro vermelho contra o motorista do carro prateado; diziam-lhe que lhe quebrasse o nariz; que não levasse desaforos para casa; que o golpeasse com um soco. Exclamaram “Quebre ele!”, “Esmague o nariz dele!”, “Não deixe barato, não, cara. Arrebente ele!”. Mas o motorista do carro vermelho não lhes deu ouvidos. Ao contrário, buscou entender-se com o motorista do carro prateado, pedia-lhe que se acalmasse. Seus gestos, serenos, indicavam que ele desejava o entendimento, por meios pacíficos, mas o motorista do carro prateado queria proporcionar ao público um espetáculo inesquecível que seria narrado em prosa e verso por todas as testemunhas repetidas vezes e perpetuar-se-ia por gerações. Enquanto assistia à agressão verbal do motorista do carro prateado contra o motorista do carro vermelho, perguntei-me qual deles causara a colisão.
A multidão acercou-se dos dois motoristas, aproximou-se deles. Eu e a Laura a acompanhamos; conservamo-nos mais perto do motorista do carro prateado, dele distando três metros. Eu estava com a mão direita pousada no ombro direito da Laura, que me enlaçava, pela cintura, com o braço esquerdo, a mão esquerda na minha ilharga esquerda. Assistíamos, curiosos, expectantes, ao desenrolar do episódio. O motorista do carro prateado, olhos esbugalhados, punhos cerrados, esbravejava, esgoelando-se, insultava o motorista do carro vermelho, que, era visível, estava constrangido. Após uma sequência de obscenidades, numa série que, parecia, seria interminável, sucedeu-se o imprevisível. Eu poderia reproduzir as obscenidades que o motorista do carro prateado cuspiu sobre o motorista do carro vermelho. Todavia, não o farei. O pudor mo impede. Quero, no entanto, reproduzi-las. Não o farei, entretanto. Elas são impublicáveis. Eu as substituirei por eufemismos. Ei-los: “Imbecil! Idiota! Você é débil mental, asno retardado? Não viu o sinal vermelho, mocorongo? Idiota! Olhe para o meu carro! Olhe! Viu o que você fez, burro filho-de-uma-égua!? Viu o que você fez!? Anta! Você tem titica de galinha na cabeça, cérebro de ameba!? Você tem inteligência de lombriga! Idiota! Filho-de-uma-égua! Você tem cérebro de ameba. Quantos neurônios você tem na cabeça!? Dois. Apenas dois. Um estava com a data de validade vencida no dia que você foi concebido e um queimou-se no dia que você nasceu. Asno! Débil mental! Filho-da-polícia! Filho-de-uma-égua!” Ato contínuo, cuspiu no motorista do carro vermelho, que se enfezou, e deu dois passos firmes e decididos na sua direção. O motorista do carro prateado recuou três passos, e, para surpresa de todos, principalmente do seu antagonista, retirou, de sob a camisa e do cós da calça, um revólver calibre 38, e apontou-lho, o braço estendido, para a cabeça. O motorista do carro vermelho arregalou os olhos, escancarou a boca, e recuou. Todas as testemunhas suspendemos a respiração. Eu não quis acreditar no que meus olhos viam: Um homem, com uma arma apontada para a cabeça de outro homem, ameaçava apertar o gatilho, e estourar-lhe os miolos. Até ontem, vi cenas assim apenas nos filmes. Antevi a tragédia: O motorista do carro prateado aperta o gatilho, e o motorista do carro vermelho cai, morto, com uma bala alojada na cabeça, na testa, entre os olhos, e o cadáver do motorista do carro vermelho a esvair-se em sangue, e os curiosos, apavorados, aterrorizados, a correr, em disparada, e o caos instalado no centro da cidade. Não pensei duas vezes: tirei, com as mãos trêmulas, o meu telefone celular do bolso da minha camisa, e telefonei para a delegacia de polícia. Despi-me do medo que me avassalava. A Laura puxou-me, para nos afastarmos dos dois motoristas; eu, imóvel, não a percebi me puxar, mas senti sua mão pressionando-me o braço e o antebraço direitos. O motorista do carro prateado, esgoelando-se, deu três passos – ou quatro, ou cinco, não sei – na direção do motorista do carro vermelho, que recuou. Muitos dentre os curiosos afastaram-se, muitos agacharam-se. Alguns procuraram chamar o motorista do carro prateado à razão. O motorista do carro vermelho, assustado, olhos arregalados, recuava e pedia, mãos erguidas, calma ao motorista do carro prateado, que, fora de si e surdo aos rogos dele, ameaçava matá-lo. Ao policial que me atendeu à ligação relatei, em poucas palavras, o que eu via, e dei-lhe a nossa localização, e desliguei o telefone. Não desviei do motorista do carro prateado e do do carro vermelho o meu olhar. Nem piscar, pisquei. O revólver mesmerizava-me. Prendiam-me a atenção os berros do motorista do carro prateado. A Laura rogava-me afastarmo-nos dos motoristas. Não a atendi, e aproximei-me deles. A minha curiosidade, atiçada; e eu desejava saciá-la; eu queria assistir ao desenlace da história. O motorista do carro vermelho recuou até encostar-se no seu carro, mãos espalmadas à frente de si, palmas voltadas para o motorista do carro prateado, rogando-lhe que abaixasse a mão que empunhava o revólver. Dobrou-se para trás, sobre o carro. O motorista do carro prateado renovou as ameaças, elevou a voz, que ricochetou no interior de meus ouvidos, que a amplificou, aterrorizando-me. O motorista do carro vermelho meneava a cabeça, balbuciava palavras que não ouvi; a sua fisionomia transparecia o pavor que o revólver e a voz ameaçadora do motorista do carro prateado infundiam-lhe. Aproximei-me do motorista do carro prateado. Eu queria ver-lhe o rosto. A Laura puxava-me para trás e pedia-me que eu me afastasse. Não a ouvi. E ela aplicou mais força em meu braço e antebraço direitos. E o motorista do carro prateado, esgoelando-se, deu um berro ensurdecedor, que abafou todos os outros sons, todas as outras vozes, e apontou o revólver para si, encostou-o em sua têmpora, e apertou o gatilho. Ouviu-se o detonar do revólver. O motorista do carro prateado caiu, pesadamente. O seu olhar encontrou-se com o meu. Após espasmos, sob dores excruciantes, esvaiu-se-lhe a consciência, cessaram-lhe os batimentos cardíacos. Morreu.