Quando a dor chega
O barulho do giz riscando a lousa de alguma maneira, sempre deixou dor aqui dentro de mim. É como foi o grito do meu passarinho ao ter uma espingarda apontada para ele e viveu. E somos meio parecidos com isso: quando uma bala inevitavelmente pode atravessar nosso corpo em segundos, nos levando ao chão. Isso foi um pretexto para meu pai empunhar a arma, mirando bem no meio do Frodo, dizendo que essa seria melhor maneira de acabar com sofrimento da sua infecção irreversível. O veterinário da cidade, já tinha dito que o melhor seria sacrifica-lo. Três mil reais, cobrou. Meu pai logo esbravejou, dizendo que não, ele mesmo faria esse serviço. Pegamos o carro e chegamos em casa. Eu, com uma tristeza gigantesca, que corroía as paredes do meu coração, fui pro quarto. Meu pai desceu até o porão, abriu uma das sete gavetas cheias de poeira e pegou uma arma já meio antiga. Tateou e assoprou tirando todo o pó que ficava pelas arestas, colocou as balas e foi para o meu quarto.
- Vai querer me ajudar?
- Matar algo é ajudar?
- Não é matar... Você não entende. É o melhor para ele. Quer ficar vendo ele sofrer?
Desço junto para ver o Frodo com sentimento que aquele momento seria a última vez.
Frodo estava muito abatido, quase não tinha forças para ficar em pé. Os olhos esverdeados já não tinham mais aquele mesmo brilho. Pareciam estar cheios d'água, sentindo o seu momento de partir.
Isso tudo só não me comoveu mais que o cheiro que ficaria impregnado pelo quintal por quase dois dias seguidos. Um odor forte. Uma mistura de sangue, naftalina, ervas podres com óleo queimado pelo Monza 92 que meu pai tinha. Parecia até o cheiro da morte. Gastaríamos horas e vários produtos de limpeza para poder limpar tudo. Talvez não fosse um cheiro, mas apenas sensação de medo quando olhei a situação do bichinho. Isso me chocou bastante. Aos meus dez anos de idade, aprender que a dor chega, mesmo quando o amor é maior. Sem poder fazer nada. Nesse momento as paredes do meu coração já tinham desmoronado. Sento na escada e choro abafado, limpando as lágrimas com as pontas dos dedos. Imagina meu pai, ter que decretar algo com gesto nobre ou misericordioso - apontar o cano no meio do animal, sem demonstrar sentimento. Arrancar ou previnir todo uma doença para liberta-lo de vez do sofrimento. Subo para meu quarto novamente para não ver a cena. A arma estava pronta e na mira. O primeiro disparo acontece. Muito alto. Ouço um grito da ave, como se tentasse alcançar a nota mais alta do Renato Russo - nem tanto pelas músicas, mais pelas letras.
Frodo que nunca foi tanto de voar, começou a bater as asas rápido. batendo asas como quem sonha com a liberdade, se desprendendo de tudo aquilo lhe impedia de viver. Do meu quarto eu senti minha alma se rasgando e ir morar junto com os beija-flor de Curitiba. Tocante.
Volto correndo para ver o que aconteceu, me deparo com meu pai sorrindo:
- O que houve? Frodo morreu?
- Não filho. Ele vôou.
- Mas você não atirou nele? Como assim?
- Eu atirei pro alto. Jamais o mataria.
Nesse instante eu não sabia o que sentia, só que entendi a dor. Os pedaços da parede do meu coração voltaram ser sólidas como concreto.
E lembro disso, mesmo o barulho do giz não sendo igual do Frodo. Mas parecido, me fazendo dobrar todos os dedos do pé, me pegando em ataques de ansiedade extremos, olhar a janela do quarto com a cabeça sobre os braços cruzados, a vista para azul do céu. aliviando essa mesma ansiedade que ficava. Dessa mesma raiva que ficava. Dessa mesma tensão que ficava. Lamentar a dor de uma ave que sofria muito, mas poder ter o seu o melhor lugar para descansar. Em paz. Talvez tudo seja sobre essa mesma saudade, e assim ficamos: Eu, meu pai, Frodo, a epifânia, o monza 92, a casa, o silêncio e a vida.
Pego a bicicleta, coloco a mochila sobre ombro esquerdo e saio para escola.