A Toca do Coelho
Sereno fino, ralo, adentrava os poros feito agulha.
Trajava moletom, sandália e desemprego. Ócio vira ópio, precisava fazer algo quanto à isso. Chutar carro, conversar com um cão ou roubar balão de criança e sair correndo. Qualquer coisa.
Mas justo terça, noite exclusiva de fruta podre ou aposentada. Nada ali preencheria o limbo de sua existência.Tomás não passava de um depressivo não romantizado, e os não romantizados não são lembrados, são feios demais para isso.
E pra foder, começava. Do céu. Tijolos de gelo à despencar, ó Deus brincando de queimada com os mortais valendo Coca gelada, a caminhada atrás de seja-lá-o-que-for acabaria ali. Granizo não cessa, o tempo não para, ele assiste, nada muda. A vida Cirque Du Soleil e Tomás espectador, só, nada mais, não tem, nunca teve. Emoçâo.
Mas.
Acima de sua cabeça, era lá, anunciado em letras foscas, quase que para não ser visto. O desanúncio:
"A Toca do Coelho
Aos que tem fome
Daquilo sem nome".
- Pode curiar aí de fora rapaz, mas não se anime não viu. A não ser que seja um excepcional. Tu és excepcional? Já sofreu? E cicatrizes hein, tem? Tira a roupa, deixa eu ver essa sua ânsia, vai, teu olhar de já sentenciado me deixa em êxtase...
O homenzinho esbravejava, mas sorrindo, ironizava e era curioso, que nem a porta. Velha, suja, convidativa. Pareciam estar desafiando-o: "Entre, se puder". A chuva sussurrava o mesmo.
Pois bem, girou a maçaneta, o pequeno sorriu. Afastou a porta, o anão agora saltitava. Abriu-a completamente, então o homenzinho rodopiou, era a festa do gol nos acréscimos. E saiu assim, transbordando valsa no assoalho.
Tom Waits riscava o vinil, "All The World is Green". Recinto era fumaça e madeira, um balcão e luz amarelada. O anão apontou um copo vazio com o nariz, encheu de conhaque e foi para os fundos. Tomás senta, ataca, sente, vira o restante, fecha os olhos. Um cara sentado ao lado observa.
- Primeira vez aqui guri?
Tomás fez que sim com a cabeça.
- Olha rapaz, então vou te situar. Aqui é recanto, recanto dos uivos, saca? É o caldo grosso de melancolia. E melancolia é bom pra caralho. Você não parece estar de bem com a sua, que pega? Tu é borrão de café no fundo do copo guri, o mel do beck. Me lasca um beijo que vai entender. Quer passar a mão aqui? vejo que não é de falar muito.
- 0, o... obrigado. Dispenso.
- Age assim pela feiura, não é? Certeza. Deve ter apanhado muito da vida. Bom, não é desculpa. Eles lá fora desafiando a vida de cima dos pôneis, e nós aqui, mastigando barro, camarote e passe livre para a verdade. Devia dar graças ao papai do céu por ser assim. Papai. Meu pai. Diferente de ti sou o mais belo dos filhos, mas de que adianta? O velho balança o ombro para o meu amor, acredita? Diz que faço um escarcéu onde passo, o verdadeiro inferno. Bem, nada posso fazer se ele enxerga questionamento como pecado. Enfim, já falei demais por hoje, não irei mais incomodá-lo. Foi um prazer.
Tomás acenou sem as mãos e baixou a cabeça, esperou o homem fechar a porta para abraçar outra dose. Acendeu meio tabaco esquecido no balcão e novamente fechou os olhos.
- Posso pitar contigo?
Tomás esticou o braço ofertando o restante da palha, não se virou para a voz. Sentiu os dedos da moça brincarem com sua palma no ato. A fumaça veio lenta ao pescoço logo em seguida.
Silêncio.
Mãos no ombro dele, nuca no decote dela. A poeira paira, a pele de ambos rasga, tem fluidos saindo das aberturas, não dói. Na verdade, é bom, está maravilhoso, é líquido, e celestial e escorre e flutua, não faz sombra, será palpável?
- Antes que não perceba, ou que morra, sou sua beleza, aquela que não quis encontrar, pensou não existir. Pois é, cá estou você, loirona, linda, gostosa, cheia de tesão pro universo, toda Afrodite. Olhe bem para a gente, está vendo as constelações que saem de nossas cascas? Quer saber o que é? Talvez te conte, mas antes precisamos falar dela, a Morte. Dona está sempre por aqui às terças, observando desse balcão, sentada aí na mesma cadeira que você. Já faz um tempo, acho que quer nos levar. E não adianta me olhar com essa cara de cão perdido não, tenho tentado te avisar tem bem umas décadas sabe? Desde que aprendeu o desamor, lá atrás, mas me deixou falar? Uma vez sequer? Só teve tempo e olhos para o deserto. Malditos sejam os "queridos" com quem viveu e os poetas que te afagaram. Parou, parou. Lá vem ela. A dita cuja. A dona moça. Toda enfeitada. Sem foice ou manto negro, a velha só me tras um sorriso e uma viola. Taquepariu. E agora Tomás? vamos morrer de desgosto! Sem nem ter vivido, não senti nada por aqui, meu vestido está inteirinho, a maquiagem em dia, e é tudo culpa sua! Talvez seja até melhor, me desvincular de ti, sua assombração! Me leve, senhora! para qualquer lugar que seja longe deste embuste! Me leve! Eu não mereço! Nem tive tempo de pecar, qualquer Deus vai me aceitar! Só me deem a oportunidade de falar, sem precisar do abutre aqui. E você, seu mulambo, não vai falar nada não? só olhar para o chão não vai resolver nossos problemas...
A Morte interrompeu tocando um Lá menor e erguendo o instrumento, arregalou o olhar de índia imponente e virou-se para Tomás.
- Uma música, meu bom garoto. Uma canção e partiremos. E não sou soprana, antes que pergunte. Qual vai escolher?
Tomás bateu os bolsos, sacou um tabaco amassado, a foto de um cão e
algumas moedas. Colocou tudo no balcão, sorria discretamente.
- Tem fogo, Dona?
Morte sorriu de volta, presenteou um fósforo ao rapaz.
- Então, já decidiu?
Tomás dava leves tragadas, como se beijasse alguém de boca pequena. O sopro vinha mais lento que de costume. Sorriu um pouquinho mais sagaz dessa vez.
- A loira escolhe.