A Culpa Felina
O copo já não estava tão cheio e a garrafa de conhaque há muito havia se esvaziado. Ele estava sentado, observando a única lâmpada acesa logo a sua frente. Era um homem atribulado, sem amigos e agora sem família… vestia-se com roupas velhas e tinha os sapatos sujos de poeira. Tinha o rosto pálido, embriagado e largo, muito embora isso não refletisse em seu corpo esguio. Os olhos estavam avermelhados e um pouco de barba crescia sob o queixo. Na pequena mesa que se estendia frente ao sofá, uma dezena de cigarros apagados descansavam dentro do cinzeiro enquanto um fino fio de fumaça subia, flutuando em uma dança única e fúnebre. Bem ao lado, como quem não quer nada, um revólver carregado com apenas uma bala, talvez não houvesse motivo para isso, mas estava lá, bem acima de um documento, o divórcio já assinado.
Era como se seu mundo tivesse caído. Não havia ninguém, há muito ela havia ido embora, sem sequer olhar para trás ou deixar qualquer recado. O celular fielmente próximo não recebia ligações há alguns dias. As redes sociais cheias de pessoas vazias, já não o interessavam. Todo aquele cenário artificialmente construído para que todos atuassem era insuficiente para todo aquele mal-estar que ele sentira e apenas um cigarro que nunca fumara, a bebida que nunca bebera e a arma que nunca atirara, pareciam ser algum tipo de saída. Os livros, uma de suas maiores preocupações onde debruçava-se dias a fio, descansavam solitários e empoeirados na prateleira, sem lhes chamar a atenção; serviam apenas para aqueles que não conseguiam compreendê-los. Nenhum tratado de política, ciência, filosofia ou história conseguiam explicar-lhe tal aflição.
Seu dinheiro? Nada podia comprar agora. Todos os rios de dinheiro que ele acumulara até então, poderiam servir apenas para compra-lhe mais conhaque, mais cigarros ou qualquer coisa que pudesse afogar suas amarguras e desilusões. Que pudessem destruí-las enquanto entorpeciam seu corpo. Poucas fotos se mostravam na estante da sala, a maioria delas pertenciam a um vago número de lembranças. Lembranças estas que se ligavam a um passado não muito distante, porém feliz, fazendo-se uma enorme contraponto aos tempos atuais. Outras fotos, nas quais ela sempre estava com ele, há poucas horas haviam se tornado cinzas na lareira. Uma tentativa inútil de esquecer tudo, muito embora em seu mais profundo íntimo ainda nutrisse todo o sentimento amoroso e nunca quisera que ela fosse embora. Certamente enganava a si mesmo.
E afogado em lágrimas e amarguras ele já desistia de prosseguir. Era um oceano de tristeza, ódio e decepção. E como qualquer pessoa que é dominada por sentimentos tão hostis, jamais suportaria por muito tempo. E foi então que, em um momento tão delicado, surgiu-lhe – como quem vem do nada - um enorme gato cinzento. Era grosso como nenhum gato e sua longa calda dançava no ar, como uma serpente hostil. Sentava-se na janela como um verdadeiro rei em seu trono e lhe observava com seus olhos enormes que cintilavam um forte brilho amarelado. Toda a soberba se concentrava no olhar daquele misterioso gato que, em silêncio, punha-se a observar todo o sofrimento do pobre homem, afogado em sua infelicidade. Muito provavelmente ele nunca o veria, caso não tivesse olhado para o lado em um movimento tão aleatório e sem sentido.
E os dois olhares, quando se cruzaram, não se desviaram mais, salvo algumas piscadelas que o gato vez ou outra dava, sinalizando alguma indiferença quanto ao homem. Quebrando todo o silêncio que havia se perpetuado por todo o escuro apartamento, o gato soltou seu primeiro miado. Era alto, contínuo e agudo. Muito embora se assemelhasse ao miado de um gato estando irritado, pouco se tinha de sentimento no seu largo focinho e olhos gigantes. Apenas indiferença era o que se demonstrava ali. O homem bebeu mais um gole do conhaque sem sequer retirar os olhos do gato que, por algum motivo ainda desconhecido, o fazia sentir-se ainda mais atribulado, o atingia por uma inquietude talvez nunca sentida antes por ele. O gato mais se assemelhava a uma estátua de um deus onipotente. Passava todo o seu tempo sentado com os olhos grudados no pobre embriagado e, com exceção de sua calda e pálpebras, estava intensamente imóvel. Sua boca, pouco se movia para soltar aquele miado estressante e perturbador. Um miado que perpetuava horror e tristeza.
– Pare de miar! - Gritou o homem, impaciente. - Vá embora de minha casa!
Porém o gato lhe deu pouca atenção e continuou a miar tão soberbamente como antes. E sua calda parecia ter ficado mais lenta, como se quisesse desafiar o pobre infeliz que gritara com ele há pouquíssimos segundos. O miado, ficara mais alto e frequente.
– Cale essa boca! - Gritou mais uma vez enquanto apertava o copo que tinha em mãos. E naquele momento, ele percebera algo de diferente no gato e não acreditou que não havia notado antes… o olhar indiferente do gato parecia mudar. A indiferença que sentia, transformou-se em pura malícia e seu focinho…, seu focinho sorria! Era um sorriso tímido, porém cínico e diabólico. Armado por alguém que com toda sua soberba fazia pouco do pobre homem sofredor. Mas por que ele havia se posto ali para se divertir de sua desgraça?! Mas, em meio a seus pensamentos tristes, o homem já sabia o que ocorrera, com quem se deparara. Já não era mais um gato, era um monstro, certamente um demônio!
É impossível descrever com palavras os sentimentos que se apoderaram do pobre homem atribulado no instante que viu o sorriso e olhar cínico entre aquela pelagem acinzentada. Era uma mistura entre medo e ódio. Ele ficara apavorado, porém nutria dentro de si um ódio descomunal pelo misterioso gato que do nada surgira e que nada tinha a ver com sua situação. Porém, se era mesmo inocente por seus problemas, qual a motivação de se estar ali, sentado a sua janela, com aqueles olhos diabólicos e aquele sorriso cínico, repleto da mais pura soberba e perversidade? A qualquer modo, o gato ali sentado se divertia de sua infelicidade como se sua vida fosse um programa de TV.
– O que quer?! Saia de minha casa, cale essa boca! Pare de miar! - Gritava, já em pé diante do gato, porém este não se calava por motivo algum ou sequer refletia qualquer sentimento de medo pelo homem gritante. - O que quer de mim?! Já me foi levado tudo, o que mais quer? Ver a desgraça em seu último estágio? Sou um homem morto, seu gato estúpido!
O gato, parado em sua frente não se moveu nenhum centímetro em resposta aos seus gritos. O homem, cometido e dominado pelo ódio, agarrou o revólver que havia deixado em cima da mesinha e agora apontava furiosamente para o enorme gato que nada havia feito em relação à ação. Simplesmente continuara parado, às vezes sorrindo, às vezes miando; porém, sempre com seu olhar brilhante e amarelado em direção aos olhos embriagados daquele que lhe ameaçava de morte. Certamente aquilo seria uma espécie de desafio e ele já não queria saber de desafios. Com a mão trêmula ele disparou a única bala contra a testa do gato que tanto lhe fizera pouco, a tal bala que há muito havia guardado especialmente para lhe perfurar mortalmente o crânio quando se achasse pronto. A bala que nunca atirara, porém que tinha sido destinada para pôr fim a sua própria vida. Porém, como que por ironia do Altíssimo, o erro havia sido trágico. A bala sequer passou perto do gato e este continuou em sua soberba, parado ante seu possível assassino, sem expressar medo pelo barulho do tiro.
Ainda movido pelo ódio o homem tentou agarrar o gato pelo pescoço, porém, sendo mais ágil e aproveitando-se da embriaguez do infeliz, o gato passou entre suas pernas e correu para algum lugar escuro do apartamento, sem encerrar seus miados. “Estúpido, posso ouvir seus miados”, pensou enquanto seguia furiosamente os miados que o levavam para seu quarto que estava de porta entreaberta. Por algum motivo desconhecido ele hesitou, sentia medo de seguir em frente e procurar o gato em seu quarto, mas não sabia explicar a origem de seu medo. Porém, mesmo acometido pela hesitação, seguiu em frente.
– Está aí? Eu vou pegar você! - Disse ao gato que estava logo após a porta. Ele a abriu…
Os miados do gato estavam altos, pareciam que iam acordar toda a vizinhança. Eles soavam em seus ouvidos, quase estourando seus tímpanos, mas ele não via o gato, apenas ouvia o miado diabólico preso à sua mente perturbada. Se ajoelhou ao berros e não pôde acreditar no que via, tão horrorizado quando a verdade lhe foi posta aos olhos. Em todo o quarto o cheiro forte de decomposição estava impregnado. Na cama, com lençóis avermelhados por conta do sangue, descansava um corpo inerte, há dias já assassinado e com quatro disparos de pistola em sua testa. E o gato deitava-se indiferente sobre o cadáver enquanto projetava aqueles malditos olhos amarelos sobre o rosto apavorado do pobre homem. Era ela, era sua esposa! O maldito gato, com seus olhos e miados diabólicos, lhe denunciava e mostrava sua culpa! Maldito seja!