A casa solitária

Logo a direita de quem desce, no alto de um morro não muito íngreme, existe uma casa branca pequena de duas janelas na frente junto com uma porta coberta por um telhado alaranjado, tom que acompanha o telhado maior do pequeno lar. Em volta, um grande gramado completa a paisagem que eu sempre observo ao passar diante da porteira que dá acesso a esse quintal durante a minha caminhada diária.

Já me abriguei da chuva sob o telhado de madeira que cobre a porteira, assim como já viajei sentindo a brisa que sopra quando ali estou passando e também já parei para sentir o silêncio que reina ao me aproximar da casa solitária.

Uma noite, voltando da minha caminhada bem mais tarde do que o costume, me vi diante da casa. Foi a primeira vez que passei ali depois do por do sol. Estava escura, vazia e silenciosa. Segui o meu caminho. Ao dobrar a última curva antes da casa sumir de vista, olhei para ela sem querer, e notei de imediato uma tênue luz que brilhava da segunda janela depois da porta. Fiquei parado um instante observando, e de súbito a luz apagou. Voltei alguns passos com o olhar fixo na janela agora escura. Não voltou a acender e não notei nenhum movimento diferente na casa.

Esse acontecimento me deixou curioso, mas naquele momento não dei importância, pois a única surpresa foi saber que a casa era habitada. Só não sabia por quem.

No dia seguinte, lá estava a casa, silenciosa e escura como sempre, mesmo sob o sol mais forte. E assim foram se passando os dias, até que um acontecimento totalmente novo e inesperado me chamou a atenção.

O dia ainda estava claro, e o sol se aproximava do seu poente. Estava eu voltando do meu passeio e antes de chegar diante da porteira, comecei a ouvir um som musical, como se alguém tocasse um instrumento ali por perto. O som estava baixo, e como ventava, sua intensidade oscilava bastante. Ao me encontrar diante da porteira que leva a casa, o som ficou mais nítido e se intensificou quando o vento parou. Era evidente que vinha da casa.

Senti uma curiosidade tremenda de saber quem estava tocando aquele som, e de descobrir quem habitava aquele lar. Então, tomei coragem, abri a porteira e me pus a caminhar pelo longo caminho de chão de terra ladeado de grama verde escura que levava até a casa. Começava reto e depois se transformava em um leve aclive curvo e suave. Durante o percurso, o som foi se tornando mais nítido. As notas eram carregadas de uma melodia melancólica e lenta, porém firmes e decididas, mas desconhecidas. No meio do caminho já era possível perceber que o som era de violino. As janelas de madeira bruta estavam fechadas, mas a porta se encontrava entreaberta, permitindo ouvir de longe.

Ao chegar diante da porta, o som era inconfundível. Um violino muito bem afinado e tocado por alguém experiente. Comecei a subir os dois degraus que levam a porta e já ia bater para anunciar minha chegada, quando a música parou.

Logo depois, ouvi algumas vozes, onde não pude entender o que diziam. Afastei-me da porta rapidamente e aguardei alguns instantes. Ninguém saiu da casa e nenhum ruído foi produzido. Olhei em volta e não havia nenhuma viva alma na estrada lá em baixo. Ali de cima, se via o horizonte em todas as direções, inclusive o vilarejo para o qual eu estava me dirigindo antes de ouvir a música.

Resolvi então entrar na casa. Precisava descobrir o que estava acontecendo. Se tivesse alguém ali dentro, pediria desculpas e iria embora.

- Olá? Tem alguém em casa? – anunciei – Sou Nicolas Valentine. Estava passando e ouvi a música.

Silêncio total. Abri a porta e entrei. A sala estava vazia. Tinha apenas uma mesa com uma cadeira, ambas de madeira envelhecida. Ao lado da porta, a janela empoeirada ofuscava a entrada de luz pelos vidros foscos. Na parede da esquerda, havia uma entrada que levava a outro cômodo. Caminhei naquela direção bem devagar. Ao visualizar o interior, fiquei paralisado de surpresa, medo e dúvida. Estava vazio. Não havia ninguém e nenhum móvel, apenas outra janela empoeirada e uma vela apagada no beiral.

- De onde vieram aqueles sons? Como isso é possível? – disse baixinho.

Olhei em volta do quarto e vi apenas o chão com alguns entulhos espalhados. Encarei a vela apagada e fui até ela. Lembrei do dia em que vi a luz que saia dessa janela.

Realmente havia alguém aqui, que naquele momento acendeu a vela e logo em seguida apagou-a. Porém esse alguém não mora aqui, pois não há nada nesse lugar que indique que haja alguém morando.

Comecei a remexer meus bolsos a procura de um fósforo para acender a vela, quando ouvi alguém se aproximando da casa pelos fundos, do lado de fora. Gelei de medo e procurei um lugar para me esconder. Peguei duas pedras de entulho e me coloquei no canto mais escuro. Ouvi os passos se aproximando da janela e vi a silhueta de dois homens, um deles de chapéu. Passaram direto e pararam mais a frente, possivelmente diante da porta. Ficaram alguns instantes em silêncio e inesperadamente, um deles me chamou pelo nome.

- Nicolas Valentine? Ora, vamos, não tenha medo, sei que está ai.

Não entendia mais nada naquele momento. – Como ele sabe meu nome? – pensei – Quem são essas pessoas? O que estava acontecendo?

Sai do recinto e fui para a sala de entrada. Os dois homens estavam parados diante da porta. O de chapéu era alto, usava um sobretudo cinza escuro e calças de mesma cor. O outro usava uma roupa social preta um pouco gasta, porém limpa, uma bengala e tinha um espesso bigode negro. Ambos me encaravam sorridentes.

- Como sabem o meu nome? – perguntei.

- Ouvimos você falar o seu nome antes de entrar na casa. – respondeu o homem de chapéu.

- Vocês estavam escondidos atrás da casa?

- Não. Estávamos lá em baixo, na casa de campo.

- Como então ouviu o meu nome?

- Venha! – respondeu – Vou te mostrar!

O homem alto passou na minha frente e entrou no quarto que eu estava escondido. Em seguida, fez um sinal para o outro estalando os dedos para lhe entregar um fósforo, que já acendeu usando a sola do sapato e em seguida o usou para incendiar o pavio da vela que iluminou o local gradativamente.

- Observe! – disse ele apontando para a parede que dá para os fundos da casa – Olhe embaixo e verá um buraco cilíndrico.

Agora que a vela iluminava o ambiente, e ele me mostrou, foi possível notar esse pequeno buraco que saia da parede bem rente ao chão.

- Um cano. – respondi

- Sim. Esse cano se estende por toda a extensão do gramado em linha reta até a casa de campo, mais especificamente até o escritório do Sr. Smith Valais. O som que estava ouvindo vinha lá do escritório. É um tubo sonoro que permite se ouvir o que acontece em cada lado das extremidades do cano. Descobri esse cano por acaso. Nem o Sr. Valais sabia de existência dele, até sua conversa ser ouvida daqui, o que lhe custou prejuízos quando descobriram a sua senha do cofre.

- Quer dizer que o som vinha lá dos fundos, na casa de campo, e não daqui?

- Sim, exatamente. Era eu tocando violino, na tentativa de relaxar para completar o caso que eu e o meu amigo estamos investigando.

- Estão investigando para saber quem roubou o cofre? – perguntei

- Sim. Fomos contratados pelo Sr. Valais, pois alguém invadiu a sua residência e roubou o dinheiro do seu cofre. Como somente ele e seu filho sabiam a senha, alguém além deles soube qual é a senha. Mas como descobriram se eles nem sequer anotaram em um papel? Provavelmente quando o pai falou a senha para o filho, pois ele trocou recentemente.

- Interessante! – respondi. – Você é então um detetive?

- Sim. Sou Sherlock Holmes e esse aqui é meu amigo Dr. Watson.

- Muito prazer. Eu sou Nicolas Valentine.

- Sim, já sabemos. Enquanto eu tocava meu violino, ouvi o som dos seus passos no degrau da escada e em seguida o seu nome que você mesmo disse.

- Realmente, eu anunciei minha chegada para ver se alguém respondia, pois a música parou de repente.

- Sim, parei de tocar e vim aqui verificar. Podiam ser alguns dos suspeitos. Por sorte era você, o homem que sempre caminha.

- Andou me observando então? – perguntei

- Sim. Graças a você, descobrimos a existência desse tubo sonoro.

- Graças a mim?- perguntei espantado

- Exatamente. Você era o suspeito número um, o que me levou a observá-lo por dias, até perceber que quarenta minutos antes de você, aparecia outro homem, que também seguia adiante. Até que um dia, ele subiu ate essa casa e ficou aqui dentro por aproximadamente 20 minutos. Assim que ele se foi, eu e o meu amigo viemos aqui e descobrimos o cano. Ele trabalha para o Sr. Valais. É o jardineiro. Limpando o jardim, ele descobriu o cano e percebeu que ele terminava para dentro do escritório. Só restava ele descobrir a outra ponta.

- Meu Deus! – exclamei – Nunca imaginei que um dia eu seria suspeito de algum crime. Era você que acendeu a vela aquela noite?

- Sim. Acendi por alguns instantes para comprovar a minha teoria de que o cano terminava aqui. Agora só precisamos de provas mais concretas para pegar o jardineiro.

- Desejo então uma boa sorte para os senhores. Fico grato em saber que fui útil em algo. – respondi afetuosamente.

- Eu e o meu amigo Watson aqui achamos que você pode ser muito útil nesse caso. Você pode nos ajudar a pegar o jardineiro em flagrante. O que acha?

- Eu? Mas de que forma eu posso ajudar nisso?

- Depois que o cofre foi roubado, a polícia foi chamada para investigar. Não obtiveram êxito, até que o o Sr. Valais, por recomendação do Inspetor John do vilarejo, para qual já prestei um serviço simples de consultoria, me indicou para assumir o caso. O jardineiro já esta sabendo que a policia está investigando e que até agora não descobriu nada. Eu não deixei ele saber que estou trabalhando nisso, mas ele já me viu na casa do Sr. Valais. Ele sequer suspeita que descobrimos o seu segredo. Ele veio aqui aquele dia provavelmente para escutar alguma coisa e virá hoje à noite novamente, eu creio.

- É verdade. – respondi

- O seu papel é bem simples. Como é um desconhecido, você vai esperá-lo aqui e dizer que descobriu tudo e que vai entregá-lo a polícia. Provavelmente ele vai tentar te comprar ou te ameaçar de alguma forma. Mas nós estaremos por perto e iremos intervir assim que for necessário. O que acha? Aceita ajudar?

Sherlock Holmes me pegou de surpresa. Admito que não esperava isso. Mas a minha curiosidade sempre foi maior e adoraria saber como isso iria terminar, afinal, tive um pouco de participação nisso tudo.

- Aceito ajudar. – disse

- Ótimo ótimo. Venha. Vamos até a casa do Sr. Valais. O Inspetor John está lá também. Vou contar para eles o meu plano.

Fechamos a casa e saímos em direção aos fundos. A uns duzentos metros de distancia, vê-se a casa do Sr. Valais. No caminho até lá, várias árvores de carvalho estão espalhadas de forma aleatória.

- Observe aqui – disse Sherlock Holmes apontando para o chão -, olha como é possível notar uma parte do cano do lado dessa raiz do carvalho. Nós vamos ficar por aqui quando você estiver se encontrando com o jardineiro – seu dedo apontava para o topo da árvore da esquerda logo que saíamos da casa -. Com o cair da noite, ele não vai notar a nossa presença.

Ao chegarmos na casa grande, conheci o Sr. Valais e o Inspetor John da policia do vilarejo. Em seguida, Sherlock Holmes passou toda a informação necessária para os dois senhores e me apresentou como voluntário para ajudar na investigação.

- Obrigado por me ajudar Sr. Nicolas! – exclamou pomposamente o Sr. Valais, um homem gordo, de bochechas rosadas e uma grande careca reluzente – Serei eternamente grato por sua ajuda.

- E quanto a sua segurança, não se preocupe – disse o inspetor -. Nós estaremos por perto e prontos para intervir assim que necessário.

Despedi de todos e me pus a caminho de volta a casa solitária, pois a qualquer momento do cair da noite, o jardineiro estaria chegando por lá. Sherlock Holmes me deu então as últimas instruções.

- Lembre-se. O homem sempre vem pelos fundos, e provavelmente ele irá entrar na casa antes para ver se escuta algo. A sua função é fazer com que confesse de alguma forma que ele sabia da existência desse tubo sonoro. Só isso já é o suficiente para que ligarmos ele ao roubo no cofre. Prefira ficar atrás da casa e não na frente. Só apareça assim que ele surgir.

- Sim, vou tentar fazer isso. – respondi

Segui então meu caminho por entre os carvalhos silenciosos e comecei a bolar um plano para fazer o jardineiro confessar. Poderia abordar ele de imediato e ir direto ao assunto ou dizer que subi ali para apreciar a vista. Chegando aos fundos da pequena casa, fiquei aguardando sentado em uma pedra o tempo passar. As primeiras estrelas começaram a surgir no céu e os últimos tons vermelhos do pôr do sol sumiram no horizonte.

Não sei por quanto tempo fiquei ali sentado no escuro, mas creio que depois de 40 minutos, uma leve brisa começou a soprar, gelando o ar e me obrigando a aquecer as mãos dentro dos bolsos do sobretudo. Levantei e me desloquei para frente da casa para observar a estrada. Nenhuma viva alma passava por ela. Comecei a pensar que o jardineiro não viria aqui hoje. Voltei então para os fundos e sentei novamente na pedra, e adormeci.

Não sei por quanto tempo dormi, mas quando acordei, notei uma silhueta escura a mais ou menos 4 metros de mim. Era o jardineiro. Ele fumava um charuto tranquilamente, e obviamente observava a casa de campo. Então, ele subitamente se virou, jogou o charuto na relva e veio caminhando na minha direção. Prendi a respiração até ele passar a centímetros de mim, porém sem notar a minha presença. Ele foi para frente da casinha, subiu as escadas, abriu a porta e entrou. Ouvi ele então fechar a porta, pegar a cadeira e arrastá-la para o quarto onde ele podia ouvir o som que vinha lá da casa de campo. Um silêncio tomou conta de noite. Obviamente ele estava lá dentro esperando ouvir alguma coisa que vinha lá de baixo.

Uma mão tocou meu ombro e eu me gelei completamente. Era ele, o jardineiro. Pensei em sair correndo, mas lembrei da ajuda que estava prestando ao detetive.

- Quem é você? – disse segurando um facão apontado para o meu pescoço, bem atrás de mim.

- Sei o que você fez. – respondi duramente.

- Sabe o que eu fiz? Como assim?

- Sei que você roubou o cofre daquela casa lá – disse apontando – e quero uma parte do dinheiro senão eu te entrego para polícia.

O homem ficou em silêncio por alguns instantes e então falou.

- Não sei do que está falando.

- Sabe sim, sei que ouviu a senha por essa casa através de uma abertura na parede.

Quando eu disse isso o homem apertou mais ainda a ponta do facão contra a parte de trás do meu pescoço.

- Como ousa me incriminar assim, você nem me conhece.

- Então você sabe do que esta falando não é?

Ouve outra hesitação por parte do jardineiro, que puxou um revolver do bolso e apontou para minha cabeça.

Nesse momento, houve um estalo forte de um tiro que passou raspando minha orelha e fez cair a arma do homem no chão. Logo em seguida várias luzes de lampião se acenderam em volta de casa, onde vários policiais estavam, e o detetive bem ao meu lado com a arma ainda soltando fumaça, a apontava para o jardineiro que tinha seus olhos arregalados.

- Obrigado Sr. Valentine, você fez bem o seu papel. A hesitação dele, e a atitude de sacar a arma foram providenciais para o que faltava.

Recebi então uma bela gorjeta do Sr. Valais, que me levou ao vilarejo onde eu estava indo visitar minha mãe.

Foi assim que terminou a minha caminhada naquele dia, onde ajudei um nobre e um detetive a prender um ladrão.

Bunicrin
Enviado por Bunicrin em 01/05/2017
Reeditado em 02/05/2017
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