CENA DE CRIME

O maldito rádio já havia cantado a pedra a cerca de dois minutos quando Rafael chegou até a frente da casa. Foi a primeira viatura a aparecer e os curiosos começavam a aglomeração de frente ao portão surrado de madeira, aberto, pendendo para um dos lados. No quintal da casa, três homens cabisbaixos, com aquela expressão típica de favelado quando vê a farda da polícia militar.

Rafael e Luiz saltaram do carro empunhando suas armas, batendo com força a porta e emitindo aquele barulho insuportável de ferro contra ferro. Deu para ouvir o murmurinho dos vizinhos dizendo: “ele matou a família toda”. Luiz havia entrado para a corporação há menos de um ano e torcia para que a cena do crime não fosse das mais violentas, já Rafael estava acostumado com aquilo, pois dez anos na homicídios da baixada fluminense criara uma casca em seu coração e tudo que poderia vir a frente não lhe causava sequer estranheza.

A porta da casa estava entreaberta e o cheiro de morte ia ficando cada vez mais forte a medida em que seus coturnos raspavam a terra batida do chão do quintal. Rafael seguiu em frente ouvindo um dos homens dizer que poderia guardar a pistola no coldre porque dentro da casa não havia mais nenhuma alma viva. O policial ignorou o pedido, aumentando a cautela para adentrar o recinto.

Luiz rezava um Pai Nosso mentalmente e suas pernas já não eram tão firmes quando parou ao lado do caixonete da porta aguardando o parceiro abrir passagem devagar. A vontade de mijar começou e o policial precisou esquecer um pouco toda a tensão para voltar a se concentrar no trabalho.

A porta se abriu com um ranger macabro deixando a luz do sol invadir o primeiro cômodo mostrando que aquele dia seria bem diferente dos outros. — Barra Limpa Luiz. — Disse baixinho o mais experiente, já pressentindo que o problema não eram os vivos, mas sim, como estariam os mortos.

No que parecia ser uma sala de estar, as paredes caiadas eram descoradas por marcas vermelhas de sangue coagulado. Em Alguns lugares dava para ver que dedos manchavam as quinas e vãos. Ali deve ter começado toda a diversão do marido bêbado e drogado. Um martelo jazia no chão ainda com um tufo de cabelo lambuzado em uma gosma escarlate que parecia um pedaço de pele ou cérebro, preso no ferro. O corpo da mulher apareceu após os policiais iniciarem a caminhada envolta da mesa de centro. Ela estava inerte, deitada de lado com uma grande poça próximo do que sobrou da sua cabeça. Era uma esfera achatada pelas marteladas com a massa amarelada expulsa pelos orifícios formados no vão dos ossos quebrados, no sofá alguns respingos avermelhados. Ela provavelmente tentou fugir pois suas pernas foram quebradas em uma fratura exposta bem no osso da canela com aquela ponta afiada branca rasgando a pele. — Pobre mulher. — falou baixinho Rafael enquanto Luiz tentava conter o vômito indo e voltando até sua garganta pronto para sair em uma lufada quente e amarga.

A esquerda ficava mais um cômodo. Este exibia uma baixa luz bruxuleante, como uma vela acesa. Rafael abriu a porta com o cabo da pistola e o que viu lá dentro mudou por completo seu conceito sobre frieza.

Uma criança jazia bem ao lado do colchão que deveria servir de cama. Seu pescoço havia sido cortado e a faca de cabo preto enterrada no peito. Os fios de cabelos castanhos estavam manchados de vermelho, caídos em seu rosto cheios de hematomas. Os olhos eram agora duas bolas roxas mostrando apenas traços horizontais negros e o lábio superior fora arrancado, provavelmente por mordidas. A menina estava nua e em seu corpo diversos cortes, alguns tão profundos que mostravam o branco do osso. Não era preciso ser nenhum especialista para perceber que a pobre vítima havia sido estuprada, tamanho era o estrago em seu sexo. Próximo ao corpo da criança, uma calcinha jogada no chão, enrolada, com a impressão da pepa pig nadando em um mar vermelho.

Luiz não aguentou e caiu em prantos, soluçando copiosamente, recolocando a pistola no coldre. Rafael não o indagou, pois sabia que aquela casa era um inferno dentro da cidade. Procurou aproximar-se do parceiro apertando seu ombro com a mão. Ao virar-se percebeu que a luz bruxuleante a qual parecia vir de uma vela, na verdade era emitida pela lâmpada do aquário bem no canto do quarto. Foi lá que a cena de trágica passou a ser dramática.

Um bebê perecia de ponta a cabeça dentro do aquário. Ele foi afogado brutalmente e seus cabelos dançavam no ritmo da água enquanto os peixes iniciavam um banquete beliscando seus olhos abertos. Rafael curvou-se para trás tapando os olhos com a palma da mão, por mais experiente que fosse aquilo já era demais. O barulho do motor que soltava as bolhas de ar encheu o ambiente como uma pessoa de boca fechada emitindo um grunhido “mmmmmmm”.

Rafael notou que estava sozinho naquele quarto e por isso caminhou até a sala onde Luiz fazia companhia ao corpo da mulher.

— Duas crianças! Por que duas crianças?... — Ele tremia agarrando a farda do amigo e sacodindo como se esperasse uma resposta.

— Não sei, Luiz. Mas só posso te dizer que não é primeira e nem a última vez que isso vai acontecer. Escolhemos esta carreira e temos que nos acostumar. — Fez uma pausa e engoliu seco. — Temos que nos acostumar com esse tipo de coisa. Agora o filho da puta que fez isso está foragido e, independente do motivo, ele precisa pagar pelo que fez. Mas não pela justiça comum. Esta vai lhe dar no máximo trinta anos preso, isso após uns dois ou três julgamentos. Depois disso ele vai comer e beber às nossas custas e voltar para a rua em alguns poucos anos.

Luiz chorava, seus olhos estavam vermelhos com uma mistura de raiva e dor. — Como um ser humano poderia ter feito isso?

Voltaram para a viatura aguardando o legista e a defesa civil chegarem para retirar os corpos da casa. Luiz, ainda em estado de choque, pensou na justiça e nos direitos humanos que tanto defendia. — Pura balela! — Um cretino desses não merece ser chamado de humano. Deveria ter o mesmo fim daquelas pessoas inocentes.

Rafael sentiu a vibração do telefone e se afastou para atender. Após alguns poucos minutos voltou até Luiz com uma nova notícia.

— Minhas fontes aqui na favela me disseram que acabaram de pegar o cara que fez isso. Eles estão o mantendo vivo. O que você quer que eu diga para eles?

— Fala para deixarem o infeliz vivo até eu chegar. — Luiz falou entre os dentes. — Deixa que eu dirijo, precisamos passar em um lugar antes.

— O que você vai fazer, Luiz? — Rafael estendeu a chave da viatura para o parceiro.

— Só preciso comprar um martelo...

Paulo Costa Lima
Enviado por Paulo Costa Lima em 10/11/2016
Reeditado em 10/11/2016
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