O PESDELO

Caía a tarde e o trem deslizava serenamente sobre os trilhos.

Julia, a mãe amorosa, abraçava com carinho o filho em seus braços macios, ouvindo o som modorrento das rodas que corriam, facilitando o embalo do frágil ser entregue a nostalgia do sono.

Logo os primeiros sinais da cidade surgiram, como vaga-lumes as luzes piscavam rapidamente ficando para traz.

O tempo passou velozmente desfazendo a noite, um novo dia veio surgindo quando o comboio se aproximava da estação.

A chegada estava perto, porém, uma curva difícil e complicada tinha que ser vencida, logo a seguir, vinha o local da primeira parada; neste momento, João o maquinista, usando toda sua experiência dava início a manobra com muito cuidado.

O ranger dos freios, antecedeu os solavancos que interromperam bruscamente a velocidade da locomotiva.

Na cabine de passageiros, que ficava anexa à sala do condutor, Julia, perdendo o equilibrio oscilou de um lado para o outro, indo espalhafatosamente ao chão. E assim, o ambiente, anteriormente calmo e sossegado, foi súbitamente invadido por gritos de furor e raiva, oriundos da mãe que tentava levantar-se protegendo com os braços o filho que acordara chorando de medo e dor.

- João, seu inútil, onde aprendeu pilotar desta forma esta gerigonça?

Gritava a mulher histericamente!

-Olha o que você fez!

-Já não é a primeira vez que isto acontece, mas desta vez, isto não vai ficar assim, seu desmiolado!

-Não podia ter freado de maneira mais suave?

-Você não perde por esperar!

-Vou relatar tudo ao seu chefe quando chegarmos ao final da viagem.

Enquanto isto, João ria interiormente, um riso sutil, irônico, ao ouvir a mulher gritar daquele jeito.

Respondendo de forma zombeteira disse:

- Não estou nem aí para as tuas reclamações.

- Você não sabe?

- O chefe é meu amigo!

Enquanto falava, desviou o olhar dos trilhos a sua frente, voltando a atenção para a sala de passageiros de onde vinham os impropérios.

Gritante desconcentração levou-o a não perceber que entrava nos limites da cidade; e assim não cumpriu as regras de segurança que determinavam: alertar com a buzina peculiar da locomotiva, 200 metros antes da sua chegada a qualquer passagem de transeuntes, entroncamentos, onde aparatos tracionados movidos por força animal ou motora, pudessem estar na iminência de cruzar os trilhos do trem.

De repente a sua voz silenciou!

Foi quando o desastre aconteceu!

Um caminhão surgiu desgovernado, e batendo lateralmente na sala do condutor, arrancou o veículo dos seus trilhos, lançando-o ribanceira abaixo em direção a uma ponte de altas estruturas, e de fortes pilares de sustentação. O impacto foi terrível! Um estrondo de proporções gigantescas ouviu-se a quilômetros de distância e no local a terra toda tremeu. A locomotiva foi escorregando, e por incrível que pareça sem virar, chocou-se contra um dos pilares em meio a poeira que levantou. E assim foi se ajeitando, a parte dianteira a uns trinta metros de altura oscilava, e o restante dos vagões, em baixo, quase atolados na terra paravam. De longe era possível ver que toda estrutura do conjunto balançava.

Em baixo, no viaduto que dava entrada para o cruzamento do rio, condutores e pedestres procuravam um meio de fugir daquela catástrofe que abateu-se sobre todos que por ali passavam.

Pois, como se podia ver, aquela não era somente uma construção de passagem, mas uma ponte ligada a um viaduto que se estendia do sul para o norte dentro do perímetro da cidade. Desde as primeiras horas do dia, grande era a movimentação naquele lugar. Carros, caminhões, vai e vem de pessoas, crianças indo para a escola que ali perto funcionava.

Acudindo gente de todo lado, neste momento a cidade parou. Os carros pararam. Centenas de olhos voltaram-se para aquela terrível, e perigosa situação. Todos sentiram que uma força desconhecida os abraçava, fazendo com que ficassem petrificados por uma energia estranha embebida de terror. Havia medo na ponte! Um medo aterrorizante.

No alto, os vagões balançavam como faz o papagaio solto pelos meninos.

Enquanto isto, uma senhorinha gritava:

-Meu Deus! Vai cair sobre a ponte!

-Aqueles vagões vão cair!

Ouviu-se gritos e correrias desabaladas.

Dois pedaços da estrutura acabavam de desprender-se, desabando bem ao lado de um veículo, cujo condutor procurava de forma atabalhoada e a todo custo sair dali.

Enquanto alguém ligava para a emergência e corpo de bombeiros pedindo ajuda; o maquinista recuperava os sentidos que houvera perdido ao bater a cabeça contra uma pilastra de ferro. Procurando orientar-se e apalpando-se para ver se não tinha nenhum osso quebrado; levantou-se, e buscando fôlego procurou a porta de saída, pois lembrara-se que a mulher e seu filhinho estavam no compartimento de passageiros do outro lado do corredor.

Ao passo que, Julia recobrando os sentidos olhava em volta procurando ver o filho querido; não conseguindo por ter momentaneamente perdido a visão, sentia morrer dentro de si a esperança de poder abraça-lo novamente, e, em meio às lágrimas repetia embargada.

-Meu filho!

-Onde está o meu filho?

-Onde está o meu filhinho?

E chorando descontroladamente gritava.

-Eu quero meu filho!

E num misto de tristeza, dor, ódio, vociferava!

-João seu miserável, se você ainda estiver vivo, pode acreditar, será por pouco tempo.

-Vou te fazer em pedacinhos seu verme maldito, desqualificado, imprudente, irresponsável.

Porém, do outro lado a medida que se refazia, João ia percebendo o que havia acontecido, e novamente capaz de pensar com nitidez, tomou pé da situação.

Ouvindo os gritos e lamentos que vinha da sala contígua, lembrou-se de Julia. Prestando atenção ao que ela dizia, percebeu que procurava seu filhinho. Levantando com dificuldade, e passando pela porta agora aberta, ouviu uns grunhidos fracos que vinham do lado direito de uma poltrona virada. Aproximando-se com dificuldade, e olhando atentamente descobriu que não era outra coisa, senão o filho da mãe aflita. Tomando-o em seus braços, dirigiu-se para onde a mulher chorava tateando no escuro. Aproximando-se até ao ponto de seus corpos se chocarem falou-lhe:

-Julia, sou eu, o João!. Acalme-se!

Ela culpando-o pelo desastre e achando que seu rebento tivesse morrido, cheia de ódio e revolta gritou-lhe dizendo:

- Áh! É você, assassino!

Traspassada de ira, levantou o braço com a mão fechada procurando acertar-lhe o rosto com um murro. Contudo, não conseguiu seu intento, pois sendo ele mais forte conteve-a desviando o seu ataque, e evitando ser grosseiro, procurava não machucá-la.

Em meio a isto, o menino percebendo a presença da mãe, chorou um pranto sentido, que ao ouvi-lo, a genitora desmanchou-se em lágrimas, e, agarrando-se ao maquinista, buscava tomar dos seus braços o filho amado.

Ao senti-lo em suas mãos, apalpando-o com carinho, bradou repetidas vezes:

-Meu filho!

-Achei meu filho!

-Meu Filho amado!

Calando de repente, como se tivesse lembrado de algo muito importante, perguntou?

-João, você está aí?

-Não estou te vendo!

- O que aconteceu?

-Por quê não consigo ver?

-O que houve comigo!?

-Ai meu Deus, será que fiquei cega!

-Não, não pode ser! Não consigo enxergar!

-Sim, eu estou cega!

-Aí, meu Deus!

-João, onde está você?

E João num esforço sub-humano procurava articular as palavras para dizer que estava ali, mas antes que pudesse responder, acordou sobresaltado com as batidas do relógio que marcavam quatro horas.

E sentando-se na borda da cama, acendendo o abajur, percebeu que os acontecimentos vividos naquela noite, não eram reais, e que tudo não passara de um sonho.

Mais relaxado, abraçou Julia e seu filhinho, falando aliviado!

Ainda bem que foi só '‘um pesadelo‘‘!

E olhando em volta, certificando-se que realmente estava em casa, virou-se para o lado, e voltou a dormir.