A última noite
_Eu juro! Esse é o meu maior segredo!
Enquanto uma mulher jovem gritava essas palavras como quem grita "me ajude, por favor" centenas de agulhas perfuravam suas coxas numa espécie de máquina de tortura.
_Está mentindo! - Dizia um velho com olhos de corvo. Ele não piscava enquanto via sua presa entrar em desespero.
Tudo era barulhento e irracional naquele galpão enegrecido pelas cinzas de um dia qualquer, pois todo dia é dia de dizer adeus a alguma coisa. Dessa vez o que queimava e ardia era a vontade de acordar. E acordou!
Assustado como uma criança perdida, Oliver acordava de um pesadelo cujo tema era o mesmo mas jamais se repetia.
_Pelo menos era uma tortura leve e durou pouco - dizia ele enquanto se dirigia a cozinha para tomar água.
Oliver morava sozinho num sobrado, tinha 32 anos mas com a sensação de que a adolescência estava chegando. Desde que esses pesadelos o perturbam - há 5 anos - Oliver não sabe o que é ser maduro. Faz terapia 2 vezes na semana com o melhor psicólogo que o dinheiro pode pagar e tomou todo tipo de remédio ligado ao sono. Hoje sua mente dorme quando seus olhos estão abertos e trabalham com a paixão de um alquimista quando estes olhos se fecham. Oliver saiu do emprego, parou de ver qualquer um que soubesse perguntar. Ao menos seus dias eram puro sossego.
O que faz quando acorda? Levanta rapidamente? Pensa na vida? Cuida dos afazeres domésticos e similares? Cuida de si mesmo? Bem, Oliver agradece. Ele não é grato por sua vida; pelo que vê ao seu redor e muito menos pelo que sente; ele agradece por conseguir acordar, por conseguir fugir do velho que não tortura somente quem está naquela máquina. Acordar para Oliver tinha magia.
Passaram-se mais 32 dias. Oliver está diferente. Foram mais 32 tipos de tortura que aquela maldita máquina mostrou ter. Não acaba nunca? Ele mal piscava. Parecia um zumbi em decomposição interior. Se tivesse amigos e família seria como não ter nada pois com certeza o internariam; deixando-o a mercê daquele velho. Oliver estava fitando a parede da sala, sentado no chão, com uma xícara de café que nem mesmo foi provado ao lado; a imagem perfeita para simbolizar a aflição. De repente, entre pensamentos vazios que não pesam na Terra, Oliver decide pensar no seu problema. Seu psicólogo estava cheio de tanta enrolação. Nem ele tinha mais paciência para esperar a confissão do que lhe aflinge. Eles não iam mais se ver; isso estava certo para Oliver, o que não estava era ele continuar a procrastinar. Se seu problema pudesse se materializar, sem dúvida veria aquele velho na sua frente, olharia no fundo de seus olhos e o mataria da forma mais rápida possível para que não demorasse nem um minuto a mais do que tinha de durar. No entanto isso não podia acontecer então Oliver procurou alguém para encarar.
Surge aqui uma nova fase; Oliver estava disposto a esquecer dos pesadelos e viver. Começou a frequentar bares e boates para conhecer mulheres. Ele as tratava com cuidado e atenção, fazia com que se apaixonassem e confessassem na cama seus segredos. Quando elas contavam tinham ar de hipnose e cada vez que isso acontecia as torturas nos pesadelos se tornavam mais leves. Então Oliver não podia parar; era isso que ele devia fazer até os pesadelos não incomodarem mais. Será? Oliver sentia que era metade esperança. Quanto a outra metade, essa estava aflita com os problemas diurnos que agora surgiam. Oliver não sabia mais o que era paz; o sossego de sua mente vazia tinha sido roubado para que coubessem segredos absurdos no lugar. Era insuportável, desgastante, frustrante, arrebatador! O segredo de 29 mulheres que antes pareciam belas e encantadoras e agora se mostravam da pior espécie. 29 malditos segredos em uma mente que tentava ouvir a esperança que agora não passava de um ruído. 29 motivos para desistir da vida. Oliver resolveu ir dormir. Seus pesadelos eram mais bonitos que a realidade.
Ao acordar Oliver não conseguia parar de pensar na última tortura que presenciou dormindo. Tinha sido verdadeiramente cruel. A pessoa confessou mais rápido que qualquer pessoa ao ver que uma barra de aço pontiaguda envolta em um fio cortante ia atravessar seu pescoço. O velho não se satisfez. Ele nem tinha começado a brincar com ela! Ativou o sistema que aquecia a cadeira em 80 graus. A mulher gritou por 3 minutos que jurava que o único segredo era o que tinha dito - algo banal. O velho a olhou com seus olhos de corvo. Aqueles olhos que te deixam de certa forma mais perto da morte. Ao olhar nesses olhos não há luz que ilumine o túnel, não há nenhuma outra verdade além de que você vai morrer. Foram olhos assim que observaram com prazer a barra de ferro entrar e destruir o pescoço da mulher que se contorcia e vivia ardentemente seus últimos segundos de vida. Ardentemente queimava no fogo da memória a vontade de agradecer. Era melhor pensar na tortura sem motivo do que nos segredos que sabia.
Oliver já podia ser comparado a lua de tantas fases! Outra se iniciara. Ele passou a odiar as mulheres, ter desejos assassinos e, para não cometer nenhuma loucura maior decidiu sair com homens. Já fazia 45 dias que a tortura sem sentido se repetia. Toda noite uma mulher contava um segredo banal, todo dia o velho tinha olhos de corvo e todo dia a morte chegava vazia. Ele voltou a achar que não tinha outra saída senão buscar segredos que mereciam ser condenados.
Certa vez, um de seus amantes lhe disse que seu maior segredo era amá-lo. Era demais! Não tinha como suportar. Depois de tudo que ele fez, sendo cúmplice de um velho doente e sanguinário! Não, ele não podia aceitar. Deu um soco no homem para que desmaiasse, o arrastou até o quintal e o enterrou vivo. Em sua mente uma voz dizia "olha quem está ficando parecido comigo!". Era a voz do velho. Maldito velho! Era oficial; Oliver enlouqueceu.
A loucura perturba mas também acalma. Por mais que coisa alguma fizesse sentido, tanto fazia, ele nem se lembrava o que era sentido, o que é sentir. Os homens não se sentiam mais atraídos por ele porque têm medo do que não podem compreender. Assim, Oliver voltou para a solidão. "Melhor assim" dizia vez ou outra ao longo do dia vagando pelo sobrado. À noite homens confessavam todo tipo de segredos; desde os banais até os mais assombrosos. De dia era um lunático que não sentia e não se importava e à noite um espectador indefeso que sofre mais que o protagonista da série de horror.
Essa noite Oliver era o protagonista. Ele estava na máquina de tortura confessando "Eu sempre gostei disso. Aprendi a apreciar cada grito, cada olhar de desespero. Toda essa gente pretensiosa e maldita merece cada agulha, cada corte na pele, cada gota de sangue derramado. Eu sempre quis ser você". O velho some com cara de incompreensão, Oliver acorda. Essa noite Oliver soube mais do que precisava saber. Os olhos de corvo estavam na sacada. Um corpo sem alma caminhou até lá, subiu no telhado e, de costas, se jogou. A queda foi fatal mas, enquanto caía, o corvo voava e olhava para ele com olhos que diziam "essa foi a última noite".