O deus de vagas
De segunda a sábado senta no meio fio da calçada pintada de branca há quase meia década. Por volta do meio dia e meio, quando o intenso movimento da avenida é acentuado pela fome dos passantes, pelo desejo intenso de chegar aos restaurantes comercias, passam pessoas, e sentado, curvado evita encarar os clientes, observa pares de pernas de calças de sarja, jeans, algumas canelas peladas, peludas ou lisas. A sombra da marquise do antigo edifício é sagrada, presente todos os dias no mesmo horário, para ele, a sombra já fora santa, mãe, irmã, por último a reduziu à amiga.
Os comerciantes o conhecem por José, José daqui, dali de cá, mas o nome verdadeiro é Jackson de Ribeiro, por quê o chamam assim, só o diabo sabe. Das dezoito vagas da avenida, oito são dele, quatro da esquerda e quatro da direita. Chega ao ponto por volta das sete e meia, trinta minutos de abrir as lojas, está ali desempenhando a função de guardião dos carros que procuram aquela canto da cidade para resolverem os problemas cotidianos, documentos, IPVA, identidade, renegociação de dívidas, renovação da habilitação, cada qual que para, desce insatisfeito, José sorri, na prece das seis quando a mãe já saíra pro trabalho e com o irmão de dezesseis anos pronto perto de levantar, antes de pegar o 360 e rodar por todos os ângulos por cerca de uma hora, pede, implora, roga, para manter a crença de que as caras feias são das dificuldades que carregam por aquela avenida movimentada do centro, ei senhor, vou cuidar para o senhor, depois me dá uma ajuda, na maioria das vezes recebe um aceno em troca da proteção, quando voltam, abrem a porta dos autos, geralmente cheirosos, procuram a contragosto por moedas, sem achá-las, abrem a carteira, dois reais serve?
Meio dia e meia é quando o movimento intensifica e pararão para comer, levarão quarenta minutos, pode sentar na sombra amiga, abrir a marmita e nas garfadas envergonhadas, encher o estômago de arroz e feijão, essa semana tem ovo. Agradece como pode, em meio as pernas passantes, alerta, um olho aqui, outro nos carros, a alma é cega, agradece num íntimo que conhece bem pouco. O do carro branco já voltou? Deixa o pote de plástico encardido no chão, corre para o trocado. O concorrente, um vira-lata amarronzado corre lamber o arroz mal temperado, cheira e sai inconformado com a comida sem gosto. José vê, os dois reais são mais importantes, limpa a mão na camiseta, torce para que venha gorda a gratificação, perdeu o almoço por ela. A senhora maquiada e de rosto redondo, o ignora, sobe no veículo alto, bate à porta, dá seta, nem espera o de trás e sai. Paciência, na próxima virá a recompensa. Em seguida, vê o vermelho dando seta para entrar, ajuda na manobra, sai do carro, é jovem, está feliz, este deve ter vindo no cartório ajeitar o casório. Posso? Pode sim, é rápido, pode sim. Entra no restaurante três carros acima.
A vida de José é marcada por riscas invisíveis no asfalto geralmente quente, a medida de viver é baseada em adequar um dos bens tão caros aos clientes naquele espaço da via e a função de existir é ocupar regularmente as quatro vagas, vai, consegue sim, vem mais para cá, agora gira tudo para lá, pode vir, vem de vagar, mais uma vez para lá, agora volta, viu? Conseguiu! Posso dar uma olhada?
Desta vez quem estava no outro canto da cidade era Eduardo. Jovem, atlético, dono do mundo, ganhara recentemente o carro do pai, sem nenhuma razão meritocrata, sem data especial, o dono da farmácia da rua de José, três carros abaixo, Seu Fernando dera ao filho o possante zerinho. Eduardo era frequentador das ruas, discordava com quase tudo e todos, criado a dipirona, aspirina e creme de barbear antes da época, precisava passar no pai, pegar alguns documentos e em seguida concluir a documentação do seguro. Rodava mais de um mês sem assegurar os cinquenta mil reais. Feliz da vida, o jovem de sorriso largo, recém completado dezoito anos, passeara com a mãe no Shopping, com a avó na floricultura e levara as três ficantes em baladas diferentes, se gabava por tudo, e neste espírito galhardo descobre o quanto é abençoado e protegido, na segunda carona, no estacionamento do shopping lotado, fica menos dois minutos rodando, puff, Deus o abençoa e a vaga tão desejada por centenas, se abre bem a sua frente. Vibra, vibra! Soca o volante e fala para mãe “sabia, sabia, o Deus do estacionamento sempre me abençoa”. A Vovó Rosa queria chamar o taxista de sempre, não meu filho, deu os tapinhas naquele rosto simpático e sorriso enorme, vou com o Jorge, ele me deixa em frente, pego as flores, enquanto dá uma volta e me pega depois, é complicado arrumar uma vaga por lá. Vó, vem, te levo, arrumo uma vaga fácil fácil, insistiu, a senhora de cabeça branca aceita radiante, o neto tão prestativo! Dito e feito, a placa da floricultura desponta e em seguida, o caminhão de descarga deixa a vaga livre, vazia, pronta para ser ocupado por Eduardo, sabia! Sabia! Vó, sou abençoado, Deus do estacionamento me ajuda! Vovó a princípio sorri, depois moraliza no tom católico que fora educada, filho, não diga estas coisas, é blasfêmia, só temos Deus, nossa Senhora e os Santos, nada desta coisa de deus de vagas. O enorme sorriso do neto realça os olhos verdes opacos da avó. Nem precisa dizer que nas baladas, aconteceu o mesmo, enquanto os amigos pagando os seguranças e as vagas, ele simplesmente piscava, e o lugar estava livre para ele. Um mês circulando, feliz, o trânsito não o incomoda, sempre há uma vaga para o filho do Deus do estacionamento.
José vê o dono do carro entrar no restaurante, o cão rejeitar a comida sem sabor e o quarto carro, do outro lado da rua sair sem pagar. Irritado, pronto para xingar, nem ele é de ferro, vê, do outro lado da calçada movimentada, o irmão que chegava com de mochila nas costas e camiseta do terceirão:
- Ei rapaz! O que faz aqui?
- Fala mano... – abraçam-se discretamente. Esqueceu? Hoje é teu aniversário, vim te dar o teu presente. Não se anima muito, sabe que a grana é curta – a moça de sainha passa, Maicon olha as coxas da donzela – nossa cara! Se soubesse que teu trabalho tinha destas coisas...
- Diga Maincon, que presente é este?
- Então mano, vim ficar no teu lugar. Matei aula, vou cuidar do ponto e vai ficar com o dia livre, o que acha? Feliz aniversário!
- Nossa cara! Que legal da tua parte, vem dá outro abraço. Mas tá ligado que o esquema é tenso, aqui tem que ter paciência. Não acho uma boa ideia, e ainda ficar sem aula! Desistiu da faculdade, é?
- Cala boca! – sorri carinhosamente. Desisti de nada não, quero só dar um presente para o cara que é meu irmão. Vai dá um role no shopping, sair deste calor, pegar uma mina, tomar um banho, ver sessão da tarde, bater uma. Irmão, é teu aniversário... vai lá, xô, cuido daqui, fica tranquilo, não vou quebrar nada e teu chefe nem vai ratear.
- Certeza?
- Certeza.
José acerta alguns detalhes, antes de ir embora, encostam perto da banca e Maicon troca a camiseta, quer ficar gatinho. Coloca o boné de aba, duas correntonas no pescoço e pede para o irmão levar a mochila. Mano do céu! Pode deixar que vou ser o senhor do pedaço, o Deus das vagas! Último abraço. José vira a esquina, poderia dar cincão do lanche que a mãe me deu para ele, leva a mão no bolso da calça larga, vixi! Esquece a carteira na mochila, não faz mal, ganhará para semana toda do irmão. Ei moça, posso olhar? Já tô olhando! Olhando bem! Ela gosta.
O do carro vermelho deixa o restaurante, dá risadas a vontade.
- Ei, cadê o cara que tava aqui? – pergunta para Maicon.
- Ele é meu irmão, foi curtir os vinte sete anos dele. Tá de boa, tô no lugar dele.
- É aniversário do cara? Toma aí, cinquentão. Leva para ele.
Maicon reconhece a nota amarela, fica louco de alegria. Ajuda o benfeitor a sair do pequeno espeço e encontrar o fluxo da rua. Perto de sair, outro dá sinal de que entrará, é Eduardo que veio encontrar o pai. Maicon ajuda, cara ruim de volante! Posso olhar aí?
- Olhar o quê? A rua é pública, acha que tenho que ficar sustentado vagabundo fanqueiro? Se liga moleque e vai arrumar emprego! Antes de nascer, meu pai tinha o prédio dele aqui.
Maicon fica sem reação, baixa a cabeça e Eduardo pega o envelope de documentos no banco de trás. Desgraçado, ele vai voltar! Vai ter que me tratar bem! Riquinho do caramba! Sem noção, hoje ele aprende a respeitar os outros.
Meia hora custa a passar. Maicon se dá por satisfeito com o cinquenta reais e de baixo da marquise, à sombra amiga de José, espreita Eduardo voltar. Cego, carros entram e saem das vagas ociosas, motoristas felizes por não ver nenhum pedinte de vagas. Eduardo sai da farmácia, desarma o alarme e Maicon vai de encontro. Antes do irmão de José chegar, a feição de Eduardo se transfigura, ódio brotam da face ex-sorridente. Desgraçado! Grita. Riscou a porta. Filho da puta! Vê Maicon chegando na pinta de delinquente, rapidamente Eduardo entra, dá partida, engata e acelera, Maicon que estava na frente é atropelado, jogado para o centro da rua movimenta, bate a cabeça no capô de uma enorme caminhonete que para brutamente. Eduardo segue, abandonando o corpo sem vida no chão.
José depois de uma hora chega em casa, resolve pôr a camiseta do irmão para lavar, afinal, amanhã terá aula, será um advogado, um senhor das leis. Vê a carteira do mano e o cincão! Volta, tem dias que não dá nem para o ônibus. Mais uma hora, quando chega, o irmão não estava lá, a polícia tinha ido embora, tomado o depoimento dos comerciantes, um bandidinho veio aqui, intimou o coitado do José que foi embora, José sim é bom, um delinquente, disse a dona da casa de cosméticos, ficou assediando todo tempo as moças que vinham aqui. Sem documento é recolhido, levado com indigente. José olha, a sombra ainda está lá, chora, dará adeus as vagas.