Novo Professor
O professor calvo, magro, com olhos ladeados por uma olheira quase cinze, de dedos finos e sujos de giz amarelo, transmite o conhecimento ao arrastar o bastão poroso pela placa verde quadriculada, cuja maioria dos que leram sua letra arredondada denomina de quadro negro. O braço levantado arde na altura do ombro, paciente, escreve pequenas sentenças utilizando palavras primitivas, a lição sobre interjeição. Troca a cor do giz, hora de levá-los ao conceito gramatical.
- Crianças, por favor, vamos à explicação...
O alvoroço circunda as seis filas de carteiras. No canto, perto das vidraças embaçadas, o gordo sarcástico zomba do magrinho pálido com deficiência intelectual, a rizada do primeiro é acompanhada com a inclinação da cadeira e com olhos eclipsados, quanto a defesa do outro é um sorriso fraco. Os dois mais bonitinhos da turma, correm das meninas na segunda fila, elas loucas, com os dentes amostras, querem estapeá-los, se tiverem oportunidade, morde os moleques que entendem do fruto do Éden.
Também dois, os mais tímidos, menino e menina, sentam perto da mesa do professor, os únicos que copiam a lição. No fundo, o mais alto da turma. Possui a mais alta voz, o timbre mais grosso e rouco, grita de um extremo, a fim de ser ouvido pelo colega da ponta. Os demais, beirando onze anos, pouco mais ou pouco menos, cerca de trinta, conversam freneticamente, alguns pintam o caderno de arte, muitos deixam as cadeiras.
- Sétimo ano, quero explicar o conteúdo que cairá na prova – o chamado sai como uma buzina fraca, fanha no início, frouxa no fim. Comprime os dedos, com posição de soco, se apoia na lousa. Contempla o mar de efervescentes, recorda do antiácido que tomou antes de sair de casa; hesita, pensa, reflete, desiste do grito.
Poucos o notam, um outro gordinho, só que bonito e de olhos beirando ao verde, importa-se à sua maneira, aos berros, cala a boa! O professor que falar! O senhor de meia idade, beirando o tom grisalho, retribui a gentiliza, expandido os lábios finos, criam-se rugas na face, gesticulando com a cabeça e com as mãos, solicita ao garoto, que apesar de ajudar, precisa que pare, gritos só conquistam outros gritos.
- Jorge, senta! Gabriela, abre o caderno e começa a copiar. Vitor, já mandei guardar o caderno de arte. Samuel, pare de tentar conversar com o Diego. Lucas, pensei que fosse diferente, que gostasse de estudar – a voz tenta ser firme.
Ao dar nomes aos bois e descrever as ações, vão se aclamando, porém o insuficiente para iniciar a explicação. Poucos passos, rente a sua mesa organizada, senta. Procura dar o exemplo de autocontrole, esboça satisfação ao perceber que o volume diminui, acredita que a postura ereta, o olhar calmo e o respeito que tem por eles, terminará por conquistar a atenção que precisa.
No entanto, os diabinhos, se aproveitando do descanso, entendem o sentar como uma desistência de lutar pela aula. Irrompe o gracejo, e os que ainda se mantinham sóbrios e sentados, entram na onda. Gargalhas, correria, papel voando, discussão, cantoria. O professor baixa a cabeça, recorrerá ao grito, mas é apenas a segunda aula! Preciso de energia para as da noite, serão doze até lá. Controla o ímpeto do grito com técnicas respiratórias, oxigenar o cérebro induz a pensamentos mais coerentes. Inútil, cresce o nervoso. Faz uma oração, pede a Deus sabedoria, nada lhe ocorre. Suplica aos santos, especificamente a São Francisco, um milagre, que as crianças sejam solidárias umas com as outras, em vão. Libera a mente das súplicas, reconhece que ele é o dono da situação.
- Crianças! Crianças! Por favor, tenho que explicar à aula...
- Professor – o menino tímido o interrompe – copei tudo – lança o caderno na mesa grudada a sua – me dá um carimbo?
O professor vê a grafia torta, a falta de paragrafação e das vírgulas, escrito a lápis! Evita corrigir o erro, pode afastá-lo do processo de aprendizado. Abre o enorme estojo encardido, pega o carimbo, com ares triunfantes, como um cavaleiro que batiza outro com a espada, carimba o caderno de Matheus, o menino de covinhas e olho menor que o outro.
- Com esse, são doze, eu coleciono!
O colega de trás, mais baixo, mais magro, mais moreno, de rosto fino e óculos de armação grossa, vê a cena, incentivado pelo carimbo, começa a copiar. Novamente o mestre se anima, a força do selo irá se espalhar. Bobagem, só João se influência.
A algazarra parece ter chegado ao seu apogeu, descontrolada, finalmente atinge em cheio o pedagogo. De supetão, dá um tapa na mesa, levanta, decide encarar a situação, fulmina o gordo que inclina a cadeira. O rosto do professor assusta, metade da turma para em contemplação para testemunhar o que vem a seguir. Em pé, lábios cerrados e a longa testa franzida, o cenho taciturno, juntamente com os sulcos profundos, torna o espectro assustador. A outra metade se enterra, os pequenos pescoços se afundam no corpo. O gordo inclina a cadeira, desafia a alma diabólica do professor, que parece... parece... ser um novo professor.
O embate está posto, o duela pronto a ser assistido, a plateia temorosa, no vai e vem das cabeças, à espera do desfecho, alguns quase notam que da intimação gelada do novo professor, da pupila dilatada sai um fio fino, perto da invisibilidade, um ramo elétrico, um feixe de luz contorcido semelhante a uma corta que flutua, sobrevoa pelo ar vagorosamente, passa pelas fileiras e encontra um dos pés de apoio da cadeira inclinada. Feito cobra, o fio de raio luminoso, se entrelaça, monta a armadilha e dá o bote! Puxa o pé, a inclinação está desfeita o gordo estatelado no chão. Algo ainda mais estranho sucede, a turma não sorri, não voltam ao alvoroço, um silêncio fúnebre pesa as pequenas e inocentes almas. Marcela, a loirinha chorosa da turma e tímida que senta ao lado do obcecado por carimbo, honra o apelido e põe-se a chorar.
Samuel sente uma pontada no estômago, a ideia da dor ser originária do novo professor, faz com que a voz grossa e rouca grite:
- O professor tem poderes!
Sem explicar, a lição de interjeição é aprendida e um tremendo OHHHHH! é ouvido. Marcela soluça, Samuel sente dores, o gordo parece estar desmaiado, os demais tremem. Antes do novo professor falar, a porta da sala bate com toda força, interrompendo a única saída. Vitor levanta para abri-la, o professor aponta em sua direção, Vitor suspeita ver entre os dedos uma varinha meio ocre...
- Não!!!!
Vitor sequer se move.
- O professor tem poder!!! - grita Samuel, que agora se vê em apuros, é o próximo alvo. O novo professor aponta para ele, numa frase confusa “Calesse tum”, é impelido a fechar a boca. Com os antebraços, comprime o abdômen, mas... precisa avisar os outros, expandir sua constatação:
- O professor... tem... super – sem terminar, a voz vai afinando, aguda e sem potência desfalece, o corpo alto encontra a cadeira seca.
- Crianças – o ar do novo professor é majestoso e cruel ao mesmo tempo– sabem qual é minha interjeição favorita? – enquanto abre os braços as cabecinhas gesticulam em negativa, no olhos dele parece correr um rio vermelho com afluentes, as olheiras se foram, o gordo se levanta e vê uma capa por de trás do homem. Crianças! – a voz beira o grito, no entanto era mais grandiosa, sem precisar de volume, atravessa as mentas em formação. Respondam! Qual é minha interjeição favorita? Vamos! Digam!
Apenas tremores.
Minha interjeição favorita é a da alegria – no tom rouco, o que roubara de Samuel, com a dissimulação, quase que insana e delinquente que arrancara do que caiu, e ainda, com a curvatura torta, feita letra de Matheus, conclui o ensinamento – a da alegria: Ebaa! Ha! Ha! Ha! Ha!