Um Mundo de Possibilidades
Eu preciso acordar cedo amanhã. Tenho uma entrevista de emprego numa empresa em que um colega de faculdade faz estágio, e foi ele mesmo quem me indicou. Sei que basta eu agir corretamente na hora da entrevista que fatalmente o emprego será meu. Mas porque tinha que ser tão cedo?
Está marcado para às nove e quinze da manhã, eu chequei quatro vezes. E ultimamente eu, como muitos outros jovens, tenho ido dormir cada vez mais tarde. Esses tempos estava num ciclo vicioso de ir dormir as quatro da manhã e levantar só as duas da tarde. Consegui reverter para dormir as duas, mas preciso ir dormir bem mais cedo hoje para acordar com disposição pra me vestir apropriadamente, tomar banho, e passar uma imagem eficiente de responsabilidade. Não dizem que é a primeira impressão a que fica?
Mas que merda, é tão difícil, eu não consigo largar esse computador, não consigo desligar essa TV, não consigo apagar a luz e ir dormir. Além do mais eu não estou com sono.
Eu não consigo, não consigo...
*
- Imprensa! Deem passagem, imprensa! - gritava Romualdo, um jornalista de um portal da internet de noticias policiais e desgraçadas no geral. - Uau! - exclamou ele quando finalmente conseguiu ver a cena. - Vou ter que passar um bom desfocador no photopaint pra esconder esses detalhes chocantes!
Na frente dele, um rapaz de uns dezenove anos jazia morto no chão. A parte esquerda de seu corpo tinha sido parcialmente esmagada, o que incluía parte das pernas, braços e da cabeça.
A cena era grotesca, e consequentemente atraiu diversos passantes e funcionários de comércios locais em volta. Muitos tiravam fotos com seus celulares, filmavam, e comentavam entre si sobre o que havia ocorrido, e quem tinha visto ou ouvido o quê.
Era claramente um caso de atropelamento, mas o carro saiu quase intacto. Romualdo pensou que devia ser isso que o motorista esperava ao comprar um carro que custa mais de cem mil reais. E o motorista evidentemente saiu ileso. Aproveitando para pegar informações quentinhas, Romualdo se dispôs a entrevistar pessoas em volta, perguntando o que tinham visto, se é que viram alguma coisa.
- Eu vi tudo homem! - disse uma mulher usando um avental um pouco sujo de um líquido amarelo. Romualdo a associou a uma barraquinha de caldo-de-cana bastante próximo ao local do acidente.
- O que você viu? - ele questionou.
- O menino atravessou a rua correndo, e o carro não conseguiu frear e passou por cima do moleque. - disse ela, em primeira mão.
- Você tem certeza?
- Absoluta. - ela garantiu.
- Ele devia tá atrasado pra algum compromisso, moço. - falou outra mulher que estava no aglomerado de gente.
- É mesmo? E porque a senhorita acha isso?
- Porque eu tava do lado dele, esperando pra atravessar a rua, e notei quando ele olhou pro relógio de pulso antes de decidir passa a rua correndo.
- Hum, interessante. - disse Romualdo, tomando notas. Depois pegou os nomes das testemunhas, tirou umas fotos do cadáver e esperou a chegada da polícia para completar a matéria. Enquanto eles não chegavam, Romualdo pensava no nome que daria a matéria. Quem sabe algo do gênero "Rapaz é atropelado ao atravessar rua correndo".
*
Eu preciso acordar cedo amanhã, para uma entrevista de estágio. Vou ter que me despedir da gatinha com quem to conversando no facebook pra ir dormir mais cedo e levantar com disposição suficiente. Sei que é difícil meu amor, mas você aguenta até amanhã, quando voltaremos a nos falar. Além do mais, preciso do emprego pra ter dinheiro pra levar essa gata pra passear, ela já deu uns toques discretos que curte coisa cara, e eu ando mais pobre que marré-deci.
Um emprego cairia muito bem agora. Bem, vamos lá digitar, tchau gata, tenho que sai mais cedo hoje, até amanhã.
Agora são exatamente dez e quarenta e cinco da noite. Minha entrevista é as nove e quinze da manhã, sei disso porque chequei quatro vezes. É duro, mas eu preciso fechar esse notebook, desligar essa Tv, apagar essa luz e por fim dar um chá de sono em mim mesmo. E é isso que eu farei...
*
Merda! Eu sabia, sabia! Não devia ter ficado atá tão tarde mexendo naquela droga de notebook e vendo aquela droga de TV! Já são onze da manhã, perdi a entrevista! Droga, que azar do caramba! Mas não posso culpar o azar, a culpa é minha... se eu tivesse ido dormir mais cedo e acordasse no horário, eu estaria agora mesmo comemorando minha vitória, mas ao invés disso estou aqui derrotado. Sem emprego e sem dinheiro. Preciso urgentemente rever meus hábitos. Infelizmente, a entrevista já era... meu colega disse que a dona da empresa, a mesma que faria a entrevista comigo, é chatíssima com esse lance de pontualidade.
Agora já era! Me danei!
*
"Já são nove e dezesseis", pensava Camila, a dona da empresa que esperava o rapaz para uma entrevista de estágio. "A cada minuto atrasado, este rapaz perderá um ponto comigo".
Nove e vinte e um da manhã, horário de Brasília. Camila sai de sua sala e se encaminha com seus saltos barulhentos que lembravam bastante o som de soldados marchando até a mesa de Paulinho, o estagiário.
- É Paulo, esse cara que tu indicou não vem não.
- Poxa, foi mal ai Camila. - disse Paulo, o amigo. - Ele parecia animadão com essa oportunidade. Eu avisei que era só ele fazer tudo direito que o emprego era dele... Estou chateado com ele agora.
*
Onze e duas da manhã, horário de Brasília.
Paulo sai correndo de sua cadeira e bate com veemência na porta de Camila, sua chefe.
- Entra. - diz ela, friamente. - O que é? Porque essa agitação? Aconteceu alguma coisa com um cliente?
Paulo respirava ofegantemente, mal conseguindo falar.
- Respira. - disse Camila.
Ele encheu os pulmões.
- Tá... tá.... tá no site... tá no site...
- Se acalme rapaz. Que site, e o que tem nele?
- Meu amigo... - Paulo disse, e levou as mãos ao peito, seu coração batia acelerado. - Ele morreu, atropelado! As nove e quatorze da manhã, há três quadras de distância daqui!
- O quê? - a chefe de Paulo estava chocada. - Então é por isso que não apareceu... Sente-se Paulo, eu vou buscar um copo de água pra você.
Ela foi, e voltou com o copo.
- Como foi isso? - ela perguntou.
- Pelo relato das testemunhas, ele parecia apressado pra um compromisso... e atravessou a rua correndo! - uma lágrima escorreu vinda de seu olho direito. - Eu entendi tudo... ele queria... chegar a tempo... pra entrevista.
Paulo desatou a chorar, e Camila teve trabalho para consolá-lo.
*
O telefone de Paulo toca, eram onze e duas da manhã. Do outro lado da linha, seu amigo que não aparecera pra entrevista.
- Pô cara, que vacilo! - disse Paulo.
- Eu sei, eu sei. - disse o amigo. - Eu bem que queria ter ido dormir cedo, mas não consegui Paulo. Cara, você não sabe como to me sentindo culpado agora... Desculpa se pegou mal pra você aí, ter indicado um cara que não consegue aparecer na hora certa. Não consegue nem levantar da cama na hora certa.
- Pois é, eu fiquei com cara de tacho aqui, mano. Fiz a maior propaganda de você, era só você ter vindo no horário cara, que o emprego era teu. Vacilo.
- Vacilei, mas vou usar isso de motivação pra mudar meus péssimos hábitos. Falou cara, meu estomago tá aqui roncando, vo tomar um café da manhã.
- Falou. - e terminou a ligação.
*
Que bom, estou me sentindo super bem pra ir à entrevista. Fui dormir mais cedo ontem, e levantei disposto quando o alarme tocou pontualmente às sete da manhã, tomei banho, passei perfume, coloquei minha melhor roupa social e finalmente deixarei de ser um vagabundo para ser um homem trabalhador. Até passei gel no cabelo, depois de penteá-lo. Geralmente uso bonés e não preciso pentear o cabelo nem passar gel para acomodar o boné neles.
Se minha mãe tivesse me visto antes de sair, certamente teria comentado que virei até gente. Nem acredito que consegui fazer uma coisa certa na vida. Agora é só eu ficar calmo durante a entrevista que amanhã levantarei cedo de novo, mas dessa vez pra iniciar minha rotina na empresa.
Já peguei dois ônibus e estou a mais ou menos três quadras de distância. São nove e sete e tudo está dando certo pra mim. Estou muito feliz, finalmente terei meu próprio dinheiro. Vou poder levar a Giulia pra sair e dar presentes pra ela. Sairei na frente da concorrência dos caras que querem pegar ela também.
Meu celular acabou de apitar! Olhei no visor, é minha mãe perguntando se eu fui na entrevista. Ela sai bem mais cedo pra ir pro trabalho por isso não me viu. Vou respondê-la, ainda tenho oito minutos até chegar lá e já estou bem próximo.
"Sim, mãe, estou lindo e confiante que conseguirei essa vaga", escrevi. Meu celular apitou de novo! É Giulia, me desejando boa sorte. Sorte é pra quem não dá conta de si, e eu dou, não preciso de sorte. Mas claro que não vou responder isso pra ela. Vou agradecê-la pela preocupação.
Já digitei, puxa, com isso se passaram uns minutos preciosos. Devia ter deixado pra responder as duas depois, afinal, o emprego ainda não é meu, pois ainda não cheguei lá.
São onze e doze. Tenho três minutos pra correr até a empresa.
Não posso esperar todos aqueles carros que estão vindo passarem pra mim finalmente ir, vai demorar muito. Com certeza vai dar tempo de passar essa rua.