Cinzas

Um fundo preto ao redor de uma distinta luz branca, a dor latejante no inferior da cabeça e os sons agudos vindos como em uma trombeta que se aproxima lentamente.

Essas foram minhas primeiras lembranças. Como uma folha que se desprende e caí do topo de uma árvore, balançando com o vento numa gloriosa melodia sem se dar conta de que está indo em direção ao chão. Assim como o baque de um vaso que ao cair pela janela deu-se conta de seu fim tarde demais, entregando-se ao insensível peso da gravidade. Poderia dizer que foram fielmente essas as sensações, mas não foram. Foi somente algo parecido. Meu despertar foi mais lento, mais grave, mais doloroso... Pois assim que me dei conta do meu estado a consciência foi voltando, não se esvaindo.

Ouvia algo como um sopro, ou um giz riscando o negro do quadro. Mas não havia quadro. Nem giz. E o sopro nada se parecia humano. Talvez houvesse outras criaturas vivendo aqui, a quais meus olhos sensíveis não conseguem captar. Talvez fossem os gritos dos Deuses iniciando uma nova era. Ou outra guerra. Talvez! Mas o que meu cérebro medíocre formulou foram as seguintes palavras:

"O barulho do vento quebrando no vidro."

Caso a vida seja mesmo para ser algo mais entediante, então era somente isso o que acontecia. O vento batendo no vidro de alguma janela em algum lugar perto do qual meu corpo se encontrava. Mas o que dizer daquele meu estado? Mãos e pés amarrados, cabelo molhado cobrindo um lado de meu rosto - aquele cujo detinha-se amigável com o chão duro e áspero pouco abaixo de meu nariz -, e a cabeça a latejar como mil elefantes dançando sobre ela numa espécie de encanto. A luz branca foi dilatando-se no interior do meu cérebro, roubando o espaço ocupado por aquela inexplicável vastidão de preto, e a de mais nada.

O chão era horrivelmente duro, constatara meu corpo. A luz ambiente, cinza. Uma tremenda falta de cores. Ou quem sabe eu estava impossibilitada de vê-las em meu atual estado, sabe-se lá qual fosse. Outra pontada na cabeça fez com que um pequeno murmúrio escapasse de meus lábios, fazendo um som tão agudo que só piorou a dor de cabeça. Entretanto, agora tive uma visão mais clara: eu estava em algum cômodo pequeno e quase completamente vazio, não fosse pela banheira branca ao meu redor e aquela torneira insuportável. Um. Dois. Três. Quatro... Incontáveis pingos saindo diretamente daquela torneira enferrujada. Malditos pingos pretos! Pretos?!

A situação não poderia ficar pior, não fosse pela minha cabeça medíocre a qual começou a se preocupar com a seguinte pergunta:

"Seria possível, e se for, qual a probabilidade de elefantes imagináveis na forma de miniaturas invisíveis estarem em cima de minha cabeça?" Nada supera a capacidade medíocre do cérebro humano.

Contudo, vendo aquele pequeno corpo (o meu próprio) ali encolhido e amarrado em uma banheira imunda, os pingos pretos, o cabelo molhado de sangue, surpreendi-me a puxar um ultimo fio de memória e voltar ao dia que vi um elefante pela primeira vez. Aquele grande animal cinza. Cinza, como a luz. Cinza, como meus olhos.

Agora eu, a Dona Morte, vibrava de excitação a espera do que estava por vir. Visualizei lá de me lugar - logo acima do corpo da menina - tudo o que aconteceu depois.

Os homens chegando. O machado fiel companheiro deles. A menina que os olhou esbugalhada e, por fim, sorriu. Então veio o baque. O crânio rachado dividindo a parte de cima da cabeça em duas. A excitação nos olhos do assassino. E por ultimo pude notar: silenciosa aquela alma deixando seu sopro de vida para trás. A alma que estava tão cinza.

Então vi meus olhos: eram cinzas.

E cinza foi a definição daquela morte!

Laís S A
Enviado por Laís S A em 19/02/2015
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