O Segredo Confesso
O quarto estava vazio e silencioso. Não completamente vazio, porque eu estava lá, mas estava escondido, então se duas pessoas entrassem com o objetivo de conversar sobre algo que ninguém mais poderia escutar, não veria mais ninguém naquele quarto e diria “está vazio, podemos conversar aqui”. Como eu disse, não estava completamente vazio. Mas estava completamente silencioso, porque eu é que não ia ficar fazendo barulho pra ser descoberto. Não havia nem ruídos provindos de minha respiração. Respiro ainda? Bom, isso não importa. O que importa é que a porta se abriu, rangeu – por isso eu soube que ela abriu, porque de onde eu estava, nada podia ser visto, somente ouvido – e as vozes começaram a conversar. Era uma voz de homem e outra de mulher.
- Está vazio, podemos conversar aqui.
Pela sonoridade da voz feminina, eu pude ter uma leve noção de quem era. Seu nome era Lívia. Eu não a conhecia muito bem, mas sabia que era esse seu nome, pois há poucos minutos, quando eu não estava escondido no quarto, e sim confraternizando na festa que acontecia no andar de baixo, alguém apontou e disse: “Veja, a Lívia chegou”. Essa Lívia se aproximou, cumprimentou todo mundo e agora eu conseguia reconhecer sua voz dentro daquele quarto, do lado de fora de onde eu estava.
- Tem certeza que não tem ninguém aqui? Eu vi o Roberto subindo as escadas faz pouco tempo. Ele deve estar aqui pelo segundo andar.
- Vá checar o corredor.
Um momento de silêncio, um novo ranger da porta velha e novamente a voz do homem:
- Bom, o corredor está vazio. Vamos ficar por aqui mesmo, mas vamos falar baixo.
Eu sempre fui muito curioso. Sempre que via alguém agindo de forma estranha, como que guardando algum segredo, não conseguia prestar atenção em outra coisa, onde quer que estivesse, a não ser na pessoa em questão. E quando via alguém dividindo um segredo pessoal com outro, nossa, eu enlouquecia. Nada mais no mundo me importava, a não ser a preciosa informação que estava sendo confiada secretamente ao outro. Eu tentava ouvir. Quem sabe eu não poderia acabar descobrindo algo sensacional, como um crime que o culpado acabou de confessar em segredo para alguém de sua confiança?
Mas isso nunca aconteceu. De todos os segredos que consegui ouvir na vida, nenhum se referia a algum crime confesso. Eram sempre coisas triviais, que não me diziam respeito nenhum. E agora ali estava eu, escondido no mesmo quarto que um casal que se preparava para conversar com cautela sobre algum assunto secreto, mas eu juro que dessa vez não foi minha culpa minha; eu ia escutar o tal assunto secreto, mas não foi proposital. Não era por esse motivo que eu estava escondido. Mas simplesmente aconteceu.
- Você trouxe o que eu te pedi? – perguntou a voz masculina.
- Trouxe. Tá aqui, dentro da minha bolsa.
Pude ouvir o zíper da bolsa sendo aberto e algum instrumento sendo manuseado com muito cuidado por ambos. Mas por enquanto, eu só tentava reconhecer a voz daquele homem. Não me era totalmente desconhecida, mas de todos os convidados daquela festa, não me lembro de nenhum com aquela voz. Quem era esse homem?
- Onde você estava? Por que demorou? – perguntou o homem.
- Eu tive uns problemas, desculpa. Eu juro que queria ter chegado aqui mais cedo. A festa começou faz muito tempo?
- Os primeiros convidados chegaram faz umas três horas. Vamos logo com isso porque daqui a pouco a velha vão perceber que eu sumi.
- Tá, calma. Alguém tá desconfiando de alguma coisa?
- É claro que não. Todo mundo confia em mim. Começando por aquela velha da Ernestina.
Ernestina era a anfitriã, a dona da casa que resolvera dar aquela festa para comemorar seu aniversário de sessenta e dois anos. Era uma graça de pessoa, uma senhora sempre muito carismática e bondosa. Espantou-me ouvir aquele homem misterioso de referir à Ernestina com um ar tão pejorativo. Isso só me fez duvidar anda mais do caráter daquele assunto misterioso. O que eles estavam se preparando pra fazer? O que a Dona Ernestina tinha a ver com isso? O que é que eles tinham combinado de trazer e que Lívia trouxe escondido na bolsa? Muitas possibilidades me apareciam, mas nenhuma era agradável de imaginar.
- Eu sei que todo mundo confia em você. Por isso te escolhi pra ser meu cúmplice. Eu preferia ter escolhido o Roberto, que é mais inteligente e experiente nisso, mas todo mundo sabe que ele já cometeu alguns crimes. Ele não é nada confiável.
Roberto era um grande homem. Tão grande, que todo mundo fingia não saber desses tais crimes que ele já cometera no passado. Havia boatos de que Roberto não havia saído totalmente dessa “vida errada”, e que de vez em quando ele fazia uns bicos como matador de aluguel. Mas todos gostavam muito dele e preferiam fingir que não, que hoje ele era alguém totalmente redimido que só ganhava dinheiro trabalhado honestamente como todos nós.
Se as pessoas que estavam lá embaixo agora, na festa, me ouvissem dizer isso, ririam de mim. Tudo bem que “honestamente” não é o adjetivo mais apropriado para aquilo que estamos acostumados a fazer, afinal sonegação, corrupção, falsificação de documentos, tudo isso que todos nós faziam às vezes não é algo necessariamente honesto, mas em compensação, nunca matamos ninguém a sangue frio como Roberto já fizera.
Eu confiava no Roberto, apesar de todos os boatos que rondavam sua misteriosa figura. Ele era bom comigo. Era sempre muito cordial, muito agradável… E ele confiava em mim. Hoje mesmo, nessa festa, há cerca de mais ou menos meia hora, ele disse no meu ouvido “vamos lá pra cima que eu tenho uma coisa pra te contar”, e claro, eu fui.
Entramos no quarto da Dona Ernestina, que estava completamente vazio e silencioso, e então ele me contou seu segredo, que era… era… Curiosamente, eu esqueci qual foi segredo. Estou com alguns problemas de memória, admito, faz só vinte e cinco minutos que ele me contou o segredo e eu já esqueci. Mas tudo bem, depois eu pergunto pra ele de novo. O que importa é que estou aqui, escondido no quarto, a um passo de ouvir um segredo alheio.
- Na verdade, Lívia, tenho que te contar uma coisa. Uma coisa muito grave que aconteceu hoje e que eu prometi não te contar, mas como temos essa confiança mútua extrema, acho que não seria justo eu não te deixar a parte de tudo que fiz pro nosso plano dar certo.
- Como assim? Alfredo, o que você fez?
Alfredo! Eu sabia que aquela voz não me era totalmente desconhecida! O rapaz era o Alfredo! E nem havia me passado pela cabeça! Mas em uma coisa eu acertei: a voz masculina não era de nenhum dos convidados da festa. O Alfredo era o mordomo da Dona Ernestina, que estava hoje ajudando a servir os petiscos e as bebidas.
Um dos maiores clichês das histórias universais é a revelação do mordomo como culpado. Já li incontáveis livros e assisti inúmeros filmes que o mordomo, no fim, era o grande vilão, que por inveja, ganância ou vingança, maquinava terríveis planos contra seus patrões. Mas sempre me pareceu um clichê muito fora da realidade, pois em contraste com as infinitas obras de mordomos culpados, eu nunca tinha presenciado nenhum mordomo culpado na vida real. Agora, havia um bem na minha frente. O mordomo e Lívia iam fazer alguma coisa e mais uma vez o culpado seria o mordomo.
Apesar disso, aquela revelação não me surpreendia, porque… Olha, eu não quero me gabar, mas desde que eu conheci Ernestina, eu sempre tive um pé atrás com esse mordomo. Lembra quando eu falei que gostava de analisar os movimentos de pessoas que me pareciam suspeitas? Alfredo sempre me pareceu suspeito e eu sempre desconfiei que houvesse algo por trás dele. Agora eu sabia que havia mesmo. Matei dois coelhos com uma cajada só: estava ouvindo um crime confesso e descobri a verdadeira face de Alfredo. Duas coisas que sempre me despertaram curiosidade agora se revelavam a olho nu pra mim.
Mas por enquanto eu ainda não podia fazer nada, pois estava escondido, somente ouvindo. No momento certo, eu podia sair dali e contar pra todo mundo o que Alfredo e Lívia estavam tramando.
- Semana passada, quando eu e você estávamos conversando sobre isso, Roberto ouviu.
- Como é?
- É isso mesmo. Roberto ouviu nossa conversa e faz uns dois meses que ele sabe que a gente tá planejando matar todos os convidados dessa festa.
Pra mim, aquilo foi um baque terrível! Então era esse o plano. Era esse o crime que eles se confessavam secretamente bem na minha frente! Eles planejavam matar todos os convidados da festa. Inclusive eu!
Assassinato era uma das probabilidades que levantei quando tentei adivinhar o segredo dos dois. Mas eu juro que pra mim estava realmente longe de ser verdade! Eu podia estar imaginando, eu podia estar fantasiando, mas não. Alfredo e Lívia realmente iam cometer um crime naquela noite. E eu, escondido, era o único que sabia disso. Ah, Roberto também sabia. Por que ele não me contou? Ele confiava em mim! Por que não me disse? Ele podia ter me dito: “Alfredo e Lívia vão matar todos os convidados da festa de sexta. Não compareça, senão você vai ser morto também!” Ele era meu amigo, confiava em mim, podia ter me contado. Mas não me contou! Ou será que me contou? Será que foi esse o segredo que ele me contou agora há pouco? Não consigo me lembrar! Se eu ao menos me recordasse o que ele me disse, poderia saber se tinha alguma relação com esse plano maligno do mordomo traíra e daquela tal Lívia, que também nunca me enganou totalmente. Eu precisava fazer alguma coisa. Não podia deixar aquilo acontecer.
- E aí, Alfredo? Roberto descobriu. Tá. E aí, vocês falaram sobre isso? O que aconteceu? Vamos, logo, não enrola, me conta!
- Roberto já cometeu muitos crimes na vida, então ele não tem absolutamente moral nenhuma pra criticar nosso plano. Nem pra nos delatar. Sabe por quê? Bom… sabe aqueles boatos que rolam por aí, que Roberto até hoje aceita alguns trabalhos como matador de aluguel, que mata pessoas por dinheiro?
- Sei sim.
- São verdadeiros. Ernestina tem provas disso. Ela as guarda aí, dentro desse criado-mudo atrás de você.
- Aqui?
- Não abra agora. Não abra. Deixe-os aí. Eu contei pro Roberto que Ernestina tem provas de assassinatos que ele cometeu. Ela só não entrega à polícia porque tem um apreço muito grande por Roberto e sabe que ele nunca faria nada contra ela. Eles se conhecem há muitos anos e se adoram, você sabe. Então ela deixa as provas intocadas. Mas ele sabe que eu não teria esse mesmo carinho por ele. A qualquer momento eu posso entregar as provas pras autoridades e ele vai se ferrar.
- E você fez isso?
- Não. Porque ele sabe o que a gente vai fazer hoje. Então propus essa situação. Ele não atrapalha nosso plano e nós não entregamos as provas pra polícia. E deu certo. Ele não atrapalhou. Você o viu lá embaixo, antes de subirmos?
- Não.
- Ele já se foi. Não quer estar aqui pra presenciar o assassinato da sua amada Dona Ernestina e todos os seus convidados. Ele não vai nos atrapalhar. Pelo contrário. Ele até nos ajudou.
- Ajudou? Como assim?
- Você lembra daquele moço que também vive nessas festas da Ernestina, o Francisco?
Tomei um susto. A cada nova revelação, minha vontade era de aparecer na frente deles e matá-los sem piedade! Envolveram Roberto na história e agora Francisco. O que o Francisco tinha a ver com essa história?
- Sempre ouvi falar dele, mas só o conheci hoje. – explicou Lívia. – O que tem ele?
- Eu o conheço bem, está sempre por aqui. E tenho certeza que ele sempre teve por mim certa desconfiança. Várias vezes peguei esse rapaz olhando pra mim discretamente, mas com muita atenção, como que me analisando, tentando descobrir alguma coisa. Eu é que não queria que ele fosse uma ameaça pro nosso plano, então pedi a ajuda de Roberto.
Houve alguns segundos de silêncio. Tentei ouvir alguma coisa. Será que descobriram que eu estava lá? Será que perceberam que havia mais alguém ouvindo tudo?
- Abra o guarda-roupa. – pediu Alfredo.
Lívia abriu o guarda-roupa, e sem mais nada pra me apoiar, caí pra fora. O chão parecia ainda mais duro e gelado. Era psicológico, eu sei, as coisas sempre parecem piores quando estamos frente a frente com a morte. E agora eu estava de olhos fechados, estatelado no chão, na frente de um casal armado que queria me matar. Era meu fim.
- Esse foi o fim de Francisco. – disse Alfredo.
Eles se calaram. Mas não senti movimentação nenhuma em volta. Tinha certeza que eles estavam de pé, em volta de mim, me olhando. Mas por algum motivo, não atiraram em mim.
- Roberto fez um bom trabalho.
- Está na hora. Vamos.
Então os dois saíram e fecharam a porta. E eu sentia um líquido escorrendo pelo chão e chegando perto do meu rosto. Então me lembrei qual foi o segredo que Roberto me contou naquele mesmo quarto, alguns minutos antes de me matar e esconder meu corpo no guarda-roupa. Ele disse: “Francisco, eu gosto muito de você. Mas sei que você adora ficar tentando descobrir o segredo dos outros. E eu, como seu amigo, estou aqui pra te ensinar que infelizmente, nem todo segredo deve ser escutado.” E ali estava eu. Descobri qual foi o grande segredo de crime confesso que quis ouvir durante toda minha vida e nunca consegui. Só consegui ouvi-lo depois da minha morte, pelos ouvidos do meu cadáver, que agora me impedia de fazer alguma coisa.