O Guerreiro Negro

George Luiz - O Guerreiro Negro

Márcia entrou em casa satisfeita. Nem todos os dias lhe proporcionavam um bom negócio. O telefonema de Álvaro acontecera no momento certo. Tinha passado os últimos dois meses procurando por uma peça como essa. Claro que chegara perto de encontra-la por duas ou três vezes.Mas seu instinto de arquiteta e decoradora dificilmente se enganava. E além disso, o seu cliente era uma pessoa difícil. Dispunha de dinheiro mais do que o suficiente para exigir o que desejava. O preço era quase secundário para ele.

- Você vai jantar conosco, querida?

- Acho que não, mamãe. A Judith vai me ligar daqui a pouco. Quero ir ao vernissage desse pintor uruguaio. Dizem que vai ser uma das melhores individuais da temporada.

- E não vai comer nada antes de sair?

- Vou a cozinha preparar um misto quente. Mas antes quero tomar uma ducha bem relaxante. O dia foi movimentado.

- Alguma novidade?

- Só uma, bem importante. Consegui a escultura para a decoração do living do doutor Hildegardo,.Depois a mostro a você.

- Uma peça muito cara ?

- Ah, sim. Me rendeu uma bela comissão! Foi uma sorte encontrar essa peça. Já enviei a foto dela por e mail para o meu cliente e ele adorou. Pediu que eu a entregasse ainda hoje, pessoalmente. Mas só vou fazer isso amanhã, assim crio mais suspense...

A água morna da ducha escorria agradavelmente pelo corpo de Márcia. Ela se ensaboava usando uma bucha macia e pensava em seu namorado, o Johnny. O safado tinha prometido ir com ela ao vernissage, mas tirara o corpo fora. Ligara para ela à tarde, dizendo que estava meio gripado. Ela não se comovera. Sabia que ele não gostava de cocktails nem galerias de arte. Para Johnny, quanto menos gente em volta deles, melhor. Não era anti-social, mas gostava mesmo era de privacidade com ela, privacidade que geralmente terminava num amorzinho bem gostoso no apartamento dele ou num motel. Enquanto tomava seu banho, lembrava-se de quando o conhecera. Tinha sido recomendada a ele por um amigo cujo escritório ela projetara. Era uma tarde amena de maio. Sua primeira impressão sobre o rapaz não foi muito favorável. Um cara mimado, típico da zona Sul do Rio. Era bem educado, isso não era possível negar. Mas o jeito preguiçoso de falar, a voz levemente rouca, as roupas com aquele ar de só um pouquinho usadas, a ausência de gravata... Johnny parecia tudo, menos um executivo de uma multinacional importante. Com o desenrolar da conversa, foi percebendo sua inteligência aguda, ágil, e seu senso prático. E a empatia... O convite dele para jantarem juntos pareceu tão natural. Felizmente tinha sabido controlar seu desejo de se tornar íntima dele naquela primeira saída juntos. Era incrível, ela lembrava, como tinha estado perto de agarrá-lo, beijá-lo, sentir um contato físico bem intenso naquela mesma noite. Uma semana depois estavam namorando.

O celular de Márcia soou sobre a pia. Ela estendeu um braço para fora do box , esticou o pescoço delicado para não molhar o aparelho e atendeu.

- Oi, Judith !

- Então ? Pronta para sair?

- Me dá meia horinha. Estou terminando meu banho. Vou me vestir e comer um sanduíche. Vamos num carro só ?

- Claro ! Assim vamos pondo nosso papo em dia. Aí embaixo em meia hora então ?

- Combinado, tchau!

A Galeria Desarts estava recebendo um público numeroso, porém seleto, aquela noite. Márcia reconheceu visualmente o artista uruguaio. Falante, quase agressivo em sua postura, ele impressionava pela corpulência. Lembrava bastante Albert Besnard que ela vira em foto num livro de arte.

Franco, o proprietário da galeria, cumprimentou-a efusivamente. Márcia era muito bem sucedida como decoradora embora tão jovem ainda e com freqüência lhe proporcionava boas vendas.

- Então ? Que lhe parece o meu artista uruguaio ?

- Muito bom.Meio frio no cromatismo, para o meu gosto. Vou olhar a mostra com cuidado. Assim de relance, gostei do quadro grande de dominante tonal verde escura.

- Ótimo ! Se tiver alguma coisa de interesse para algum cliente seu me diga.

- Obrigada, Franco.

- Está gostando da exposição, Judith ?

- Acho que sim, Franco.

- Acha ?

- Ah...você sabe que eu preciso olhar muito um quadro para saber se gosto realmente dele. De qualquer forma, parece que vai vender bem.

- Espero que sim. O mercado de artes carioca anda meio devagar. E esse excesso de leilões o prejudica bastante.

- Já vi duas bolinhas vermelhas.

- Aquisições feitas antes da inauguração. Vamos ver esta noite e nos próxi-mos dias.

- Boa sorte ! Você é um marchand sério, merece.

- Obrigado, querida !

- Márcia voltou a sua casa relativamente cedo. Embora morassem num apartamento, e mesmo sendo ele bem espaçoso, seu cachorro era do tipo grande, um labrador. Muito bem educado, Peter era incapaz de sujar o apartamento.

Fazia suas “coisas” na rua, onde era levado três ou quatro vezes por dia. Como era bem manso, Márcia nunca tivera reclamações de vizinhos. Até as crianças gostavam daquele cachorrão meio desajeitado. Mas aquela noite, sua dona achou-o curiosamente inquieto. Farejava repetidamente o quarto dela e acabava sempre se sentando em frente à estante, olhando para a prateleira onde Márcia tinha acomodado a escultura.

- Ora, Peter... Não sabia que você gostava de esculturas africanas.

Peter abanou-lhe a cauda, mas pareceu rosnar baixinho para a figura nua do guerreiro negro.

- Ah, que é isso, Peter? Que eu saiba você nunca foi racista...Vamos, vamos , deite em seu tapete e durma.

O dia amanheceu ensolarado. Márcia chegou a seu escritório e ligou para o doutor Hildegardo. Combinou passar na casa dele em uma hora.

- Entre, entre, Márcia! Estava ansioso por sua chegada. Me mostre logo a escultura que vai valorizar meu living...

- Aqui está, doutor Hildegardo. Acho que é a peça que queríamos.

- Realmente ! É esplêndida ! Já tinha imaginado pela foto. Mas assim com seu volume, suas três dimensões. É perfeita !

- Foi uma sorte conseguí-la. Já estava meio desanimada quando o Álvaro me ligou ontem de manhã.

- Que belo trabalho em madeira. Como é expressiva! A madeira é ébano, não?

- Isso mesmo. O Álvaro me forneceu alguns dados. Tudo indica que tenha si-do esculpida no final do século dezoito. Há fotos de outras no mesmo estilo no livro African Tribal Images.

- E soube alguma coisa sobre sua procedência ? Antigos proprietários ?

- Disse-me o Álvaro que a adquiriu no espólio de uma mansão em Chicago.

- Fascinante ! Tem alguma coisa gravada aqui na base.

- Ah, essa inscrição. O Álvaro forneceu-me a tradução. Aqui está.

“Sou o guerreiro negro que combate à noite. Evita provocar minha ira, ou encontrarás a morte na ponta de minha lança impiedosa”.

- Fantástico ! O guerreiro negro que combate à noite. Estou encantado!

- Penso que vamos precisar ilumina-la de uma forma especial.

- E o que minha famosa arquiteta sugere ?

- Pensei em usarmos uma daquelas lâmpadas pequenas, mas poderosas, embutida no teto e cujo foco atinge tão somente a peça. Com as luzes meio apagadas no resto do living, o efeito vai ser surpreendente.

- Idéia aprovadíssima, minha cara ! Você providencia tudo ?

- Claro que sim.

- Então faça isso logo. Quero oferecer um pequeno cocktail para inaugurar a escultura. Só para os meus amigos mais íntimos que conhecem arte. Vão ficar deslumbrados com o meu guerreiro negro !

O doutor Hildegardo custou a dormir essa noite. Pelas onze e meia, ouviu, de seu quarto, alguns ruídos diferentes no living. E a seguir um miado estridente de Lola, sua gata siamesa. Levantou-se rapidamente e foi até à sala. A escultura estava tombada no tapete e Lola olhava-a com o pelo arrepiado, acuada, num canto do living.

- Francamente, Lola ! Que travessura boba ! Ainda bem que o ébano é uma madeira bem sólida. Por que você derrubou o meu guerreiro ?

Como em resposta, Lola correu em disparada para a cozinha do apartamento e não retornou à sala, mesmo sendo chamada pelo seu dono.

- Esses gatos siameses! ,pensou o doutor Hildegardo,essa aí derruba minha escultura e depois fica com medo da própria malfeitoria...

O resto da noite transcorreu tranqüilo. Quando o dono da casa chegou ao living pela manhã, encontrou Sueli, a arrumadeira espanando a escultura.

- Cuidado com meu guerreiro negro, Sueli. É a minha mais nova paixão.

- É lindo, doutor, mas sabe o que a Maria me disse?

- O quê? Vou lá na cozinha perguntar a ela o que achou da escultura.

- Acho que o senhor não vai gostar muito do que ela achou desse guerreiro.

- É mesmo ? Vou lá saber agora.

Maria era mesmo uma figura perfeita para uma cozinheira tradicional. Era tão negra quanto a nova escultura de seu patrão. Mas, diferente da magreza musculosa do guerreiro, seu físico lembrava o da famosa babá de “E o Vento levou...”.

- Bom dia, Maria ! Então não gostou da minha escultura?

- Bom dia, doutor. Não é que eu tenha achado ela feia. Ao contrário. Achei a escultura muito bonita.

- Mas...

- Ah, não sei não, doutor, os olhos dele me lembram os de um exu que eu já vi num terreiro de Umbanda lá em Ramos.

- Um exu ?

- Isso mesmo, doutor.

- E o que faz esse exu lá no terreiro que você freqüenta ?

- Não faz coisas boas não, doutor Hildegardo. É bem perverso. Só apronta coisas ruins...

- Essa é boa ! E você acha que o meu guerreiro vai aprontar alguma aqui em casa?

- Credo, doutor ! Ele não vai aprontar nada, que Oxalá nos proteja !

- Fique tranqüila. O máximo que pode acontecer é a Lola implicar com ele novamente. Ela o derrubou da estante esta noite.

- A Lola? Os gatos são sensitivos, doutor.

- Gatos são sensitivos e eu estou faminto. Quero um ovo quente e duas torradas ,por favor. Com geléia de morango. E,claro, um suco de laranja.

Márcia chegou-se mais a Johnny na cama. Esse outono estava custando a trazer uma temperatura mais fria para o Sudeste. Mas, que importava se fizesse frio? O calor do corpo de seu namorado era uma delícia com qualquer temperatura...

- E aí ? Seu cliente abichalhado amou a escultura, não é?

- Que coisa irritante, Johnny, você chamar uma pessoa que não conhece bem de homossexual.

- Tudo bem...defenda seu cliente. Afinal, ele é uma de suas principais fontes de rendimentos.

- E, em troca do que ele me paga, projeto, executo, ambientes requintados para a casa dele.

- Só que você não vai acabar indo para a cama com ele como vai comigo...

- Está me desafiando ? Sou bem capaz de ir, só para mostrar a você o meu poder de sedução.

- Bom, uma coisa é certa. Eu não vou a esse cocktail para a inauguração dessa escultura africana ou sei lá o quê.

- Ah, vai sim ! Dessa você não escapa.

- E se ele se apaixonar por mim ?

- Não seja ridículo, meu amor. De você eu dou conta sem qualquer ajuda...

O cocktail aconteceu numa sexta-feira. Maria, a cozinheira, caprichou nos salgadinhos. À meia-noite, um salmão a la crème iria ser servido. Roldão, um garçom que trabalhava como freelancer, fora contratado para ajudar Sueli a servir os comes e bebes.

De uma coisa Johnny não poderia acusar o doutor Hildegardo : de sovina . As bebidas foram servidas com prodigalidade e eram da melhor qualidade.

- Venha, meu amor, olhar a escultura de perto.

- Humm...esse guerreiro lembra um pouco o Pelé.

- Bobo ! Você não fala uma coisa a sério sobre arte .

- Pode ser. Mas uma coisa eu observei. Ele tem uma expressão meio sinistra nesses olhos de madeira e na boca também. Uma espécie de rictus cruel.

- Ora, ora, em breve vamos ter um novo crítico de arte...

- Com mais dois uísques, isso é bem possível...

- Falando em crítico de arte, um dos mais importantes acaba de chegar.

- Nosso anfitrião deve estar ansioso pela opinião dele...

Norberto Garcia era, realmente, um dos críticos de arte mais considerados do país. Ele colocou seus óculos com um movimento meio afetado e aproximou-se da escultura. Examinou-as cuidadosamente. O doutor Hildegardo aproximou-se.

- Então, meu caro Norberto ? Fiz uma boa aquisição?

- Meu amigo, você adquiriu uma peça importante. Parabéns !

- Obrigado ! Mesmo não tendo sido eu quem a descobriu, estou muito feliz !

- Não importa quem a descobriu e sim sua sensibilidade que lhe fez comprá-la . Das esculturas dessa tribo africana que tenho visto, ela é certamente uma das melhores. Início do século dezenove, provavelmente.

- Minha informação é de que ela procede do final do século dezoito.

- Então não errei por muito...

- Mas que erro...Provavelmente o antiquário quis valorizá-la mais dizendo que é dos anos setecentos. Você não costuma se enganar.

- E na verdade, isso pouco importa. O que interessa é o seu indiscutível valor estético.

- Meu amigo, você acaba de me fazer ganhar a noite !

Quando os últimos convidados partiram, Hildegardo preparou-se para ir deitar. Tinha sido uma pequena festa emocionante. Ainda ecoavam em seus ouvidos os elogios que tinha ouvido em relação à nova peça de sua coleção de arte. Já tinha dispensado os empregados. O sono começava a invadi-lo. Apagara todas as luzes do living, exceto a que incidia diretamente sobre a escultura. Seu olhar foi atraído por um curioso brilho amarelado que parecia vir dos olhos do guerreiro negro. Aproximou-se fascinado da escultura.

De súbito, sentiu um medo inexplicável. Mas a atração do pequeno facho de luz quase dourada impeliu-o para mais perto ainda dela. E então, diante de um Hildegardo paralisado pelo terror, o guerreiro pareceu erguer sua lança negra.

Os meios ligados às artes, os amigos e parentes mais chegados, gente de sociedade, muitos lamentaram a morte de Hildegardo Pontes, vítima de um enfarte fulminante. O médico encarregado da necropsia não teve qualquer dúvida em sua conclusão sobre a causa mortis. No apartamento agora desprovido de seu dono, Sueli , como de hábito, passava seu pano de pó nos móveis e objetos do living. Os herdeiros do colecionador iriam lá aquela tarde para vistoriar o apartamento. Ao passar pela rara escultura, não percebeu qualquer diferença nela.

Só Maria, antes de abandonar definitivamente a casa onde trabalhara durante tantos anos, não teve qualquer hesitação ao concluir que o guerreiro negro fizera mais uma vítima.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 23/04/2007
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