O HOMEM DO CACHECOL CINZA
O HOMEM DO CACHECOL CINZA
Frequentador assíduo daquele bar instalo-me na mesma mesa de onde posso observar o movimento: distraio-me vendo os grupos alegres que ali se reúnem para festejar; admiro a beleza das moças vaidosas, desfilando modernidades; enterneço-me com os velhos casais que degustam um bom vinho... Reconheço solitários, que, assim como eu, ali vão buscar algumas horas de devaneio diante de um copo.
A música de fundo selecionada com bom gosto não dificulta os diálogos ou perturba o enlevo dos pares enamorados.
Bem mais tarde, sendo apresentada música ao vivo, o ambiente se descontrai, vozes se elevam, animados dançarinos volteiam pelo salão.
Numa dessas noites um drama ali se desenrolou, tornando-me o seu mais vivo expectador.
Seus protagonistas não chegaram juntos: chegou primeiro o homem, que logo atraiu minha atenção. Beirava os quarenta anos; possuía tez pálida, olhos e cabelos escuros. Era alto, esguio, distinto e desenvolto. Vestia sobre o terno bem talhado, um elegante sobretudo, e trazia no pescoço, um cachecol de seda cinza.
Recepcionado pelo maitre que lhe ofereceu uma das mesas de localização privilegiada, recusou a oferta, escolhendo uma das mesas próximas à minha, que facilitava a visão detalhada do exterior do bar.
Tomando a carta de vinhos, examinou-a, fez o pedido. (Observando a expressão do garçom que o atendia, deduzi que escolhera o melhor vinho que a casa oferecia). Ao ser-lhe servida a bebida, degustou-a com requinte, saboreando-a vagarosamente, sustentando a taça com leveza. Era um legítimo apreciador.
Solicitou a presença do maitre, mantendo com ele uma conversa de alguns minutos; disso resultou algum acordo, pois, ao retirar-se o maitre levava um CD que ele lhe havia dado. O homem continuou a saborear o vinho, pensativamente, consultando algumas vezes as horas no seu relógio de pulso.
Um pouco mais tarde a seu pedido foi-lhe apresentada a conta da despesa; retirados os pertences da mesa, ele permaneceu sentado, como se esperasse alguém, pois seus olhos não se afastavam do frontispício envidraçado do bar que deixava ver, com clareza, a rua defronte, onde fluía o tráfego. Desinteressado do que se passava à sua volta, atento, ele vigiava a rua e seu vai-e-vem. Parecia exercer um perfeito domínio sobre suas emoções, mas observando-o atentamente, presumi que a calma era apenas aparente; no seu intimo toda a serenidade se exaurira. Num momento identifiquei-me com aquele homem; julgando compreendê-lo, pois também eu, outrora, sofrera a tortura de esperar... Há tempos eu fixara os olhos naquelas portas envidraçadas, perseguido por sentimentos arrebatadores. Minha infrutífera espera terminara, e se ali eu me achava, era tão somente para saborear meus drinques, apreciando o alívio que me trouxera o esquecimento.
Percebi quando o homem colocou-se expectante. Um automóvel detivera-se à porta, dele descera uma mulher, entregando-o ao manobrista. Pude observa-la claramente quando passou sob as luzes fortes da entrada. Teria talvez, trinta anos. Seu rosto atraente, quase sem maquiagem, mostrava uma boca sensual, uns olhos claros, enormes. Os longos cabelos trazia-os frouxamente atados sobre a nuca; o pescoço delicado sobressaia-se muito alvo no decote do vestido elegante. Trazia nas mãos um agasalho leve e uma carteira própria para a noite.
De onde estava o homem observou sua chegada. Dirigiu-se para onde ela se detivera: e aquele foi um encontro totalmente invulgar. Não trocaram cumprimentos ou quaisquer palavras. Por instantes fitaram-se fixamente. Então ele a tomou, gentilmente, pelo braço, conduzindo-a à mesa, e se sentaram, calados e tensos. Imaginei que entre eles já se haviam esgotado todas as palavras e que sua ligação estava limitada àquele frágil fio de silêncio que não tardaria a romper-se com efeitos devastadores.
O garçom reaproximou-se trazendo outras taças, uma nova garrafa de vinho e os serviu. Nesse exato momento a música de fundo interrompeu-se; ouvindo-se então uma melodia clássica, interpretada por violoncelos e violinos que reconheci como sendo a “MEDITAÇÃO DE THAIS”, de Jules Massenet. Aos primeiros acordes a mulher estremeceu vivamente, baixou os olhos e estreitou as mãos trêmulas no regaço.
O homem circunvagou o olhar pelo salão, como se pela primeira vez o visse; e um vago sorriso perpassou-lhe o rosto.
Fitaram-se outra vez: ela com uma expressão incerta, temerosa; ele encarando-a, firme, desafiador. Mantendo esse olhar, ergueu a taça com o vinho fazendo um gesto como se brindasse; sorveu o líquido por inteiro. Ela levou sua taça aos lábios; mas nela apenas os tocou, sem provar da bebida. Senti e iminência de um clímax naquelas manifestações silenciosas. E o acorde dos violinos como tema de fundo, acompanhou o desenrolar do último ato.
Ele se ergueu, com dois passos se acercou da mulher, e, inclinando-se, pronunciou junto ao seu ouvido algumas palavras que causaram nela um efeito surpreendente: seus olhos arregalaram-se numa expressão de pânico, sua boca entreabriu-se como para emitir um grito; num repelão tentou afastar a cadeira e levantar-se. Ele, que permanecia junto dela, estendeu uma das mãos e pousando-a sobre seu ombro, forçou-a a manter-se sentada. Ela se aquietou vencida, estranhamente submetida ao seu domínio. Apenas seus olhos, onde o terror se estampava, continuaram a fita-lo, fixos, apavorados. Inclinado sobre ela ainda a subjuga-la, ele levou a mão direita ao bolso do sobretudo. Ao retira-la trazia algo que de pronto não reconheci, mas julguei ser um revolver. Não era uma arma comum. Sendo pequena ela a tinha oculta entre seus fortes dedos e a palma de sua mão. Mas, instantaneamente, num gesto firme, ele a empunhou exibindo-a a meus olhos, inteira, faiscante. Ato contínuo acionou o gatilho.
O estampido soou breve, seco, enquanto repercutiam os últimos e lamentosos acordes dos violinos.
O corpo atingido pelo tiro girou sobre si mesmo, dobrou-se sobre os joelhos e tombou grotescamente, com os braços abertos.
No salão permearam-se momentos de silêncio, exclamações de espanto, gritos de terror. Interrogava-se a meia voz, que estranhos motivos haviam desencadeado tão funesto acontecimento.
Cerram-se as portas, acenderam-se todas as luzes, enquanto se aguardava a chegada das autoridades.
A mulher continuou ainda sentada, lívida, impassível, com os membros agitados por repetidos tremores. Seus olhos atônitos pareciam congelados fitando o corpo do homem estirado a seus pés, em cujo pescoço o cachecol de seda cinza lentamente tingia-se de sangue.