Revelações de um amanhacer

I

Já era a terceira vez, em menos de dois meses, que eu acordava no meio da noite com o mesmo sonho. Suada, com a respiração rápida e as pupilas desesperadas para reconhecer o ambiente no meio de toda a escuridão em que se encontrava o meu quarto. Eu não sabia que horas eram, mas sabia que era cedo demais – ou tarde, depende do ponto de vista – para acordar. Mesmo com medo de fechar os olhos e voltar a sonhar, os fechei. Dormi.

Acordei com o despertador tocando Because of you, da Kelly Clarkson, o que me fez pensar que alguém, logo cedo, está sentindo dor de cotovelo ou brigou com o namorado. Como todas as manhãs, desde que me entendo por gente, levantei da cama, prendi o meu cabelo em um rabo de cavalo mais para lá do que pra cá e, ainda esfregando os olhos para afastar o que ainda me restava do sono, caminhei até a cozinha, pensando que seria mais um dia normal, com pessoas normais e acontecimentos normais. Como eu estava enganada... Para chegar à cozinha, eu tinha que me deslocar pela casa inteira, já que o meu quarto ficava na extremidade sul e a cozinha no norte. Eu passava pelo quarto onde dormiam os meus pais, o banheiro, o antigo quarto do meu irmão, o escritório do meu pai e a sala para que, em seguida, virasse à esquerda, que é onde fica minha cozinha. Entretanto, o meu percurso não foi como o de todos os dias. Ao passar pela porta do escritório do meu pai, percebi que a luz estava piscando, e a porta semiaberta. Demorei a entender, e foi então que meu coração começou a bater forte o suficiente para que eu me perguntasse se quem estivesse lá dentro o estaria ouvindo palpitar. Prendendo a respiração, empurrei a porta o suficiente para que pudesse espiar para dentro do cômodo, mas não era o suficiente. Escancarei-a. Lá dentro estava tudo normal, como sempre esteve desde que meus pais faleceram no acidente de carro e eu simplesmente me isolei daquele cômodo da casa, exceto pela luminária na escrivaninha, que insistia em piscar como se estivesse em curto. Andei até ela e a desliguei na tomada. Ainda assustada, olhei em volta como quem procura por uma resposta escrita no ar, mas não havia nada, então me contentei em fingir que nada daquilo havia acontecido e voltei à minha mesmice. Pelo menos era isso que eu queria.

II

O brilho do sol da manhã tomava conta de toda cozinha, já que meus pais decidiram fazer o teto de vidro, para que economizássemos o máximo de energia possível, uma vez que eles acreditavam no consumo sustentável. Eu não vou dizer que é uma má ideia ter isso em nossas casas, mas até hoje não sei como fecham essas malditas persianas elétricas que instalaram para quando o sol estivesse forte demais e o calor ficasse muito intenso. Mas essa manhã o sol estava diferente, na verdade, tudo estava diferente.

Preparei o meu café com as mesmas três colheres de pó e, assim que ficou pronto, o coloquei na minha xícara da Betty Boop e fui em direção a sala, parando apenas no balcão que faz a divisa entre a cozinha e a sala de estar, para pegar um pote de biscoitos de chocolate que meu pai sempre trazia para mim depois do serviço.

Já na sala, liguei a TV no canal 8, onde passa o noticiário matinal, mas, por alguma razão, o canal estava fora do ar. Mudei para o canal 9, o canal de vendas, e também nada de imagem. Fiquei fazendo isso por uns três minutos, era como se todas as emissoras do país tivessem falido, ou alguma coisa havia acontecido com minha antena. Pus minha xícara em cima da mesa de centro e voltei na cozinha para verificar – a antena ficava próxima da parte de vidro, e dava para se ter uma boa visão se subisse em cima do balcão –, mas estava tudo normal. Nenhuma pipa agarrada, ou um gato brincando no telhado. Nada.

Voltei para sala, desliguei a TV e andei até a porta para ir à varanda pegar o jornal. Pelo menos era isso que eu pretendia fazer. Assim que cheguei à porta e girei a chave para abrir a maçaneta, notei que a chave simplesmente se recusava a girar. Mesmo sem ter girado, tentei abrir a porta, mas sem sucesso. Tentei novamente girar a chave, mas era como se alguém tivesse posto super cola dentro da fechadura. Ela simplesmente não girava.

Voltei para o sofá. Sentei e tomei um gole do meu café, e outra coisa estranha aconteceu, eu não conseguia sentir o gosto e nem a sensação do líquido quente encostando em meus lábios. Olhei surpresa para a xícara, a encostei novamente nos lábios, mas sem sensações. Sem gosto.

Levantei do sofá e fui correndo para o banheiro. Liguei a luz que fica no espelho, molhei meu rosto e, por um segundo, tive a impressão de ver o rosto da minha mãe olhando para mim, chamando por mim – Querida? –. Abri os olhos ainda com o rosto ensopado, olhando em volta, mas estava na cara que ou eu estava ficando louca, ou eu ainda estava com sono demais para já estar acordada. Sequei meu rosto, desliguei a luz e voltei para o corredor seguindo em direção ao meu quarto.

Novamente tive que passar pelo escritório do meu pai, e novamente a luminária estava piscando, coisa que achei estranho já que eu tinha certeza que havia desligado na tomada. Eu já não estava com medo. Entrei no cômodo e, assim que ia puxar a tomada, percebi que não precisava. Ela estava desligada. Fiquei me perguntando como era possível uma luminária ficar acesa sem energia, e foi quando senti algo esfregar o meu braço. Era como se alguém estivesse tentando me consolar de algo e, novamente ouvi “querida?”. Olhei em volta, completamente confusa e com medo. Não com medo de algo sobrenatural, mas com medo de mim mesma. Voltei para meu quarto correndo, deixando tudo para trás. A luminária maluca, a sensação de carinho no braço e minha mãe chamando por mim.

Tranquei a porta e me joguei embaixo das cobertas, como uma criança faz para evitar os demônios que habitam debaixo de nossas camas. Fechei os olhos, me concentrei para que o sono viesse, e rápido. Não funcionou. Comecei a respirar rápido, eu queria que tudo aquilo parasse, queria tomar o meu café e assistir ao noticiário como sempre fiz. Tentei novamente. Fechei meus olhos e, dessa vez, eu vi algo. Eu estava em algum lugar, e o rosto dos meus pais pairavam sorrindo para mim. Eu queria saber o que era aquilo e, principalmente, como estava acontecendo. Abri os olhos novamente e levantei da cama. Voltei ao escritório do meu pai, abrindo todas as persianas que eu havia fechado já há muito tempo. O sol fluiu por todo o cômodo, mas não foi o suficiente para fazer a luminária parar de piscar.

Decidi sentar à escrivaninha, coisa que nunca fiz, mas a cadeira do meu pai parecia como um trono, grande e confortável – pelo menos eu creio que um trono seja assim –. Fiquei um tempo olhando para ela, ainda me perguntando como ela estava fazendo aquilo. Foi quando vi um bilhete em cor amarelo berrante posto bem na direção onde a luz acendia e apagava. Olhei para ele por, no mínimo um dez segundos antes de pegá-lo, me perguntando se isso era algo sensato a se fazer. Antes mesmo que eu pudesse ler, novamente ouvi a voz da minha mãe vindo de bem próximo a mim. Olhei para o bilhete. “Acordar”. Fiquei me perguntando o que significava aquilo, fiquei me perguntando por que meu pai teria colocado um bilhete para ele mesmo dizendo para acordar. De repente eu me senti cansada demais para tentar raciocinar e voltei para meu quarto, deixando tudo aberto e ligado.

III

Me enfiei novamente debaixo das cobertas, fechei meus olhos e novamente os vi pairando sobre mim, mas desta vez havia outra pessoa que eu não conhecia, mas que a voz não me era estranha, eu o conhecia sem conhecer. Fechei os olhos e dormi. Acordei novamente depois de, ao que me pareceu, ter sido horas de sono. Eu estava em qualquer lugar, menos no quarto em que fechei os olhos. Tentei gritar, mas havia alguma coisa em minha boca. Comecei a me debater na cama e foi quando uma mulher entrou, e, de repente, uma onda de sono me possuiu. Fechei os olhos. Dormi.

Quando acordei, eu ainda estava naquele lugar e, novamente, o rosto dos meus pais pairavam sobre mim marcados por lágrimas. Fiquei olhando, esperando que a qualquer momento eu acordasse com a respiração rápida e com o corpo suado como sempre acordava toda vez que sonhava com isso. Não acordei. Aquele homem cuja aparência eu não conhecia, mas a voz não me era estranha, entrou no que me pareceu, depois de muito olhar em volta, o quarto de um hospital.

-Ela acordou agora?

-Sim, Agora. –minha mãe estava em prantos, mas com o mesmo sorriso que me dava toda vez que a entregava uma rosa com uma carta no dia das mães –.

Eu ainda estava confusa e com medo de falar, mas eu queria falar. Quando tomei coragem, o médico convidou o meu pai para ir a algum lugar, e ele foi, logo depois de me deixar um beijo na testa. Fiquei olhando para minha mãe, querendo saber o que estava acontecendo. Antes mesmo que eu pudesse perguntar, ela disse:

-Estávamos com tanto medo, Dyanna – eu fiquei me perguntando quem era Dyanna, até perceber que estávamos a sós no quarto, e com certeza ela não se chamava Dyanna, uma vez que o nome da minha mãe era Martha –. Você está em coma desde o acidente, e isso já faz três meses.

Eu ainda não conseguia falar nada. Eu estava confusa demais para dizer qualquer coisa, e acho que mamãe percebeu, porque ela decidiu contar tudo o que havia acontecido. O modo como nosso carro capotou e como eu fui projetada para fora do carro. O modo como eu fiquei toda ferida e ela e papai se perguntando por que eu, ao invés deles. Logo depois meu pai chegou ao quarto com o médico, me explicando, novamente, como tudo aconteceu. Mas do jeito que só um médico consegue fazer.

Já fazia três dias desde que eu acordei no hospital depois do acidente. Eu estava deitada na minha cama olhando para o teto como fazia todos os dias após acordar. Mas desde que acordei no hospital, eu passei a me perguntar se eu realmente estava acordada, ou se isso era apenas mais um sonho.

Yago Castro
Enviado por Yago Castro em 01/10/2013
Código do texto: T4506092
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