Piano Autêntico

É uma pena vê-lo saindo por aquela porta, enquanto fico aqui sentado escorado no sofá. É realmente muito triste ver algo de valor imensurável para minha família sendo jogado fora assim. Herança da minha avó, esse antigo piano negro guarda muitas histórias e segredos, e realmente a sua aparência exterior, apesar de tantos anos de uso, ainda é impecável. Mas mesmo sendo um extraordinário piano, é como se você sentisse que ele não possui mais aquela "magia" sabe? É como se um objeto tivesse vida própria, como um cão ou um gato apegado ao seu dono. E assim que minha vó faleceu a alguns anos deixando o seu piano para trás, parece que o som emitido pelas longas e delicadas teclas desse instrumento não saem mais de uma forma harmônica, aliás, soam mais como uma sinfonia melódica e depressiva, por mais alegre que seja a música tocada. O ruído produzido pelo piano é de pura e incompreensível agonia.

Eu admito que tentei fazer alguns meses de ensaio, mas não deram muito certo. Os meus dedos não são compridos e a minha memória é curta demais para conseguir aprender uma melodia sequer, acredito que eu não leve muito jeito para ser músico. Porém mesmo sem possuir este dom musical, eu tive muita força de vontade nesse meio período de prática, eu senti uma necessidade enorme de honrar a minha querida vó.

Porque na minha infância ao posar na casa do meu avô nos longos invernos que desabrochavam sempre em junho, eu notava que ela amava muito mais aquele piano do que ao seu próprio marido, e eu a via sempre agarrada ao instrumento. Ela tocava e tocava, sem errar sequer uma nota, e depois dizia milhares de palavras que eu não entendia direito naquela época (talvez eu não entenda até hoje), e então ela desenhava vários círculos avermelhados no teclado com pequenas estrelas dentro deles. Ela realmente gostava de enfeitar aquele piano.

Para dizer a verdade, eu não me sinto bem com ele aqui dentro desde o primeiro dia que ele apareceu na minha casa (por falta de herdeiros da minha progenitora). Não por me sentir inferior por não possuir o “talento” suficiente para tocá-lo, mas sim por questões que até hoje não foram de fato resolvidas entre mim e o piano. Eu realmente estranhei ao recebê-lo em minha porta quando notei que a sua coloração havia mudado. Estava tingido de vermelho tinto. Eu me pergunto por que vovó pintaria o seu tão amado piano negro de vermelho? A fim de mantê-lo como antigamente, paguei uma repintura.

Porém eu ainda tive que aguentar os seus inacabáveis rangidos. E diferente do que você deve estar imaginando, eu não me refiro aos rangidos de quando aperto em suas teclas com força, mas sim dos barulhos constantes que o piano faz quando estou tentando dormir no segundo andar. É um som realmente perturbador, uma total falta de respeito. E por mais que eu tente arrumar suas cordas, ou chamar afinadores de piano, ainda existem milhares de problemas com o ele.

Como quando ele começa a tocar sozinho aquela mesma canção maldita de ninar que só vovó sabia que eu odiava, ou quando ele começa a ranger as suas rodas enferrujadas na tentativa de sair do lugar, ou até mesmo quando a sua tampa, sem motivos aparentes, caiu sobre a cabeça de um dos homens que fazia a manutenção, quase o decapitando.

Pensando bem o que deixou o som desse piano horrível não foram minhas falhas tentativas de tocá-lo, muito menos a morte de minha avó. O que o deixou totalmente mórbido foi à reprodução sonora da sua enorme autenticidade. Autenticidade essa que me causa arrepios... Pensando bem, talvez minha avó nunca tenha abandonado este piano no fim das contas... Agora na verdade me sinto aliviado ao ver aquele piano saindo pela porta da minha casa.