Taça de Cristal 3 - (Na estrada) - Capítulo 1

Na Estrada

São 10:350h, fecho a portaria do casario.

Deixo para trás uma história, olho a fachada daquela construção antiga, porém bem conservada. A fachada é de tijolinhos aparentes, a janela do térreo sempre fechada com cortina e uma jardineira bem cuidada, ao lado oposto da entrada, outra janela onde vive um jovem blueseiro que enveredava noites com a guitarra Gibson tirando chorosas melodias. No andar de cima, um bem sucedido arquiteto que separara recentemente da mulher com quem fez palco em diversas brigas, e, por fim, a janela de onde vim. Não havia cortina, moldura, descascada, vidro trincado - nunca havia reparado... mas minha parede era azul; agora é um cinza desbotado! O reflexo do sol das 11 cega-me, olho e vejo Jéssica.

-Jéssica!!!

Jéssica, é uma garota amável, com longos cabelos negros, pele alva e olhos que parecem o horizonte. Não somente pela cor azul, mas por parecer uma imensidão profunda e, muitas vezes vazia, opaca. Ela integrava o grupo de médicos sem fronteiras e numa destas incursões, Jéssica, ainda nova, perdeu a perna direita. Muito do seu brilho foi-se neste dia. Até mais do que ver a tragédia que afligira as crianças no Congo... Histórias que ela me contava com brilho no olhar, a despeito de tanto sofrimento. Taí uma pessoa que nascera para ajudar. Eu amava ouvi-la!

-Ei. Jéssica!

-Kein! Exclamou, virando-se. KEEEIN!!!!

-Screeeeeeeech!!!

O chão fugui-me aos pés; veio-me o apagão, em seguida o chão estava no alto, a árvore girava de cabeça para baixo, vi de relance uma Jéssica atordoada, e a sensação indescritível da falta de gravidade; você ser lançado ao espaço sabendo que em uma fração de segundos você irá parar, flutuar e, em instantes, toda a força que te levou ao alto te trará ao chão. O momento exato em que você deixa de subir e começa a descer. Neste exato momento vem o gelo no corpo, a dormência em cada célula desligando seus sentidos de dor, antevendo o impacto que está por vir.

-Kein! Exclamou, virando-se. KEIN!!!! Ai, MEU DEUS!!!!!

Me chamo Kevin. O apelido Kein surgiu quando meu irmãozinho começou a falar meu nome; acho que ele nunca me chamou de Kevin mesmo estando hoje com 27 anos. Há dois anos me mudei para este endereço. Vim quando redescobri Jéssica, amor da minha infância. Hoje eu estava pronto para mudar a minha história, mal sabia...

O chão se aproximou obliquamente ao meu rosto. O resto de mim ricocheteou membro sobre membro. O som oco do baque ecoou nas minhas víceras, Foi uma mistura de sons que ouvi por dentro do meu corpo...Senti o sabor quente do asfalto... uma pausa e um cheiro inconfundível de sangue se coagulando. Estava lá eu, inerte. Em algum lugar soube que bolhas de sabão estouram porque a “pele” não aguenta a pressão interna. Não sei porque isso me veio à mente.

(continua)

Marcelo I Catunda
Enviado por Marcelo I Catunda em 26/06/2013
Reeditado em 26/06/2013
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