O suicida

"A morte que é sempre minha, de forma essencial e insubstituível, converte-se num acontecimento público, que vem ao encontro do impessoal" - Heidegger.

Chamo-me Jonh Guilty Spencer, mas podem me chamar de Guilty, ou J.G, como meus companheiros. Peço licença e alguns minutos de suas vidas para que eu possa discorrer sobre a minha história de amor e sei muito bem que as mulheres adoram histórias assim. Aviso, porém que a paixão pode levar-nos a lugares inusitados, loucos e absurdos. Mas o que seria de nós sem o Absurdo, não é mesmo? Aviso-vos também, que prestem muita atenção no momento em que vossas mentes engendrarem sua própria noção de minha vida. Que conscientemente se desvinculem das regras, e não se deixem seduzir pela inclinação religiosa que acomete a tantas mentes quando encontram uma parte de si mesmas.

Era 26 de fevereiro de 1991, um dia claro e quente como todos no Iraque, estava na Segunda Brigada de Ferro, em uma missão incubida de conquistar a cidade iraquiana de Al Busayyah. A estratégia, a propósito era simples: limpar a cidade dos malfeitores iraquianos e tomar suas armas (principalmente tanques e carros blindados), tal manobra me agradava bastante, pois sempre achei que fui feito para a guerra: as explosões; os tiros e o elemento artístico mais excitante destas raras cenas, os corpos estraçalhados. Bastava todos estes elementos se juntarem para que eu me entorpecesse, sentisse a vida gritar, para que enchesse os pulmões como se fosse a última vez e regozijasse olhando para o céu em uma forma singela de agradecimento.

Havia algo, confesso que me angustiava,não ao ponto de me tirar o sono, porém sabia que era isso que mais queria nessa vida: tornar-me parte do pelotão da infantaria. Curiosamente, sempre recebi o treinamento para ser piloto de tanque. Antes que me esqueça, dirijo um modelo clássico de tanque, um M15A Gun Motor Carriage, modelo inglês criado na decáda de 40, munido com quatro canhões cromados, ligas metalicas para sustentar as engrenagens das rodas anti-derrapantes e uma blindagem especialmente adicionada, dando um toque de sofisticação e agressividade à máquina. É impressionante a engenharia por dentro de um tanque como este, melhor sensação não há de haver. Tudo sob medida.

Muita gente vê, de fato, as batalhas como algo horrível, impensado. A morte não deveria ser sentida como quando se perde os caninos, sabe? Acho pura bobagem tal vulnerabilidade. Pensar dessa maneira é o mesmo que ir contra a natureza do homem: da destruição para absorvição, do vício pelo castigo, da semente pela flor, não cabe a pessoas que pensam no tempo de forma linear, mesmo porque o tempo não pode ser visto igualmente. A visão ciclíca do mundo é de absoluta pretensão, e a linear, pouco proveitosa.

Poucos sabem, mas em uma boa guerra a morte não é o mais terrível, o que torna uma batalha sem sentido é a falta de prazer fálico em relação às próprias armas, a ausência de desejo pelas partes de ferro e de metal que envolvem os projéteis feitos com tanta precisão a fim de seguir seu destino em uma rota de colisão. Por isso, não se deve abandonar o armamento de qualquer forma: são nada mais, nada menos que prolongamentos dos nossos corpos, e valem, hão de convir, bem mais que nossas vidas.

Cá estou nessa tarde seca de ar empueirado em um grande deserto, lembro-me de estar ansioso, estava louco para começar a pressionar o botão vermelhinho do manche do tanque. Ah! Esse botão realmente me dava prazer, sentia como se estivesse dentro de um jogo, com regras simples: apertar o botão nos locais e momentos certos. Era tão fácil, a princípio gostava muito, no entanto sabia que poderia fazer bem mais, afinal de contas pudera eu estar no meio do fogo cruzado, sentir o cheiro do suor e do medo, ver a lágrima cair e o sorriso brilhar como se fosse o primeiro e derradeiro dia. Não me importava se a minha mulher se chamava Any ou se minha filha estava tirando notas boas para ir para Yalle. Estava onde queria...

- Ei, JG? Não fique aí parado pensando na vida seu palerma. Vamos, me ajude a recolher estes corpos homem!

- Entendido cadete Monroe! Dê-me só mais alguns minutos.

E lá fui eu carregar um monte de corpos e o que lhes restou, muitos deles amigos e conhecidos meus, mesmo porque os defuntos do pilotão inimigo não eram problema nosso, ficavam ao chão seguindo o propósito nobre de adubar as plantas e alimentar os abutres.

Enquanto carregava o que sobrou do corpo de Steve Campbell, aproximadamente 23 anos, um braço a menos, olhos castanhos, pouco ou nenhum costume de utilizar desodorantes e uma mania estranha de cantar músicas pela metade, perturbava-me uma vontade insandecida de perguntá-lo o que sentiu ao ter o coração vasado do corpo e um dos membros cortado. Muitos cientistas, escritores, filósofos se debruçaram e se perguntam como a vida pode ser mais bem vivida, daí tentam encontrar a cura para as doenças físicas, mentais e espirituais do homem, porém nenhum deles se perguntou se a vida merece ser vivida. Essa é a pergunta crucial, sem a qual nenhuma das demais faria sentido.

Provavelmente ao voltar para meu país daqui a alguns meses esses cadáveres serão lembrados como heróis e os vivos procurarão outro tipo de ocupação tediante para as suas vidas, agora perturbadas eternamente pelas imagens horrendas as quais presenciaram.

- Certo seus cães. Faremos uma pausa para o almoço, todos em fila já! Vamos! Vamos! Gritava pateticamente com um inglês engraçado o capitão Boby Faustine, descendente de franceses.

- Sim, senhor! Agora mesmo, senhor! Respondíamos como um coral desafinado, mas em um ritmo impressionante.

A comida era um verdadeiro lixo, ficava estocada em containers sujos por dias chegando a estragar bem rápido, imaginava enquanto mastigava aquela carne seca e imunda com gosto de barata se a carcassa de meus queridos amigos derrubados em batalha não estaria muito mais saborosa. Ora, loucura seria deixá-los para serem comidos pelos animais da região. Por que diabos nós seres humanos também não mereceríamos nos alimentar de maneira digna?

Confesso-vos amigos, que em circunstâncias tão desesperadas como tais, nossas mentes começam a delirar. São momentos em que não há um caminho certo, ou errado, não se sabe nem mesmo se há uma linha na estrada a seguir. Onde estaria então a linha do caminho? O caminho não tem linha, não tem pigmento, nem som, tem apenas uma semente, que pode se estragar pela cicuta, ou pode se amar como uma puta.

Ah! Como eram sortudos aqueles malditos amigos que tinha. A sociedade, sobretudo as instituições religiosas sempre julgam mal os suicidas, enquanto os soldados, aqueles que vendem sua alma em troca da patética memória patriota e morrem como porcos no campo de batalha, a eles, somente a glória e boatos positivos a seu respeito, todos esquecem suas atrocidades.

Depois da ração, tratei de voltar correndo para meu tanque, que estava do lado de um T-55, um verdadeiro dragão refrigerado, construído por geniais sanguinários soviéticos. Ah! E pensar que essa belezinha tem um poder de fogo capaz de explodir bairros e residências inteiras com poucos e certeiros disparos. É no mínimo, mágico observar as letras verdes no radar, o botão vermelho do disparo e as escotilhas que quando puxadas liberam quatro submetralhadoras. Feitas sob medida.

Pensando melhor, fui eu mesmo que escolhi naquele momento, ao entrar para as Forças Armadas me alistar e receber o treinamento nos tanques, eu cri que era o mais saudável e uma oportunidade única para pessoas com gostos artísticos tão exóticos quanto os meus. Sei bem que falando desta forma, a guerra parece apenas isso, uma atuação de quinta. Não para mim.

Vejam que engraçado meus amigos, mal havia acabado a União Soviéticae e eis os tanques dos vermelhos, agora pilotados por nós, Yankees. A nação falida vendeu-nos os Tanques a um preço "camarada", bem como para novos países envenenados de raiva como a Argélia e Angola, (pequenos países africanos que nascem para lutar e lutam para perder) é fabuloso como povos tão pobres podem lutar tanto e principalmente perder tanto: nas batalhas e nas negociações de armas. Pobres demônios.

Depois de um tempo no exército a morte não significa muita coisa. Ainda há aquele medo da dor, e isso é inalterável. Felizmente inalterável. Sem o medo que espécie de emoção o fato de estar vivo teria? O ser humano necessita sentir as mais diversas sensações, o amor, o ódio, a esperança, o rancor e o medo para poder se conhecer e se reconhecer. Porém, fatos como a morte, nestes trâmites, apenas fazem parte do espetáculo. Não há comoção. Não há lágrimas. Não há saudade.

Essa é a descrição superficial do ambiente monótono e moribundo que se constituía à minha frente: eu caminhava pisando os cadáveres, tão calmos, antes cheios de angústia, dívidas, frustrações, relacionamentos conturbados, nenhuma chance de fazer as coisas serem diferentes. Agora era diferente. Nada, ou ninguém poderia atormentá-los. Uma inveja diabólica e interessante me fazia cócegas. As pessoas na verdade correm para a morte com medo dela durante sua vida toda e quando alguém corre direto sem qualquer temor para o destino que o espera, simplesmente o acusam de covardia, levantam hípoteses sobre algum erro do suicida: insucesso pessoal, profissional ou familiar. Mas, não era conveniente pensarem isso de um maldito matador do Estado.

A morte está em tudo, assim como seu absurdo poder de construção. Quando se está em busca do conhecimento, quando se esgota as energias em algum objetivo frívolo, na pregação de domingo, no sexo selvagem com pitadas de amor sincero, na adrenalina imposta para um pequeno, mas não casual assalto, na procura pela solução de um cálculo, na composição de uma música que obtenha as próprias qualidades viscerais, numa infinidade de situações que se aplica certa quantidade de vida, ao mesmo tempo se paga o preço por estar acelerando a própria sentença. Sentença justa se pensarmos bem. Um veredito universal, porém uma prisão que somente quem sentiu tal experiência pode explicar. A morte é feita sob medida.

Para aqueles que procuram a morte através de consertos e reformas. Feita para você que acredita através de uma base sólida poder erguer o mundo, destruir aviões ou ascender fogueiras. Para você, experiente no campo de batalha, que tem a sensibilidade e visão sem medo de começar pela carne podre e de pagar para ver, ou até mesmo para vocês que copiam de um gênio suas sábias palavras e suas ideias pouco aproveitadas. Afinal de contas é como já dizia o sábio artista "artistas bons copiam, grandes artistas roubam".

A propósito, lembro-me muito bem duma história contada semana passada por um velho amigo pertencente a esta mesma brigada, Arnold era seu nome, se não me engano. Ele me contou enquanto comíamos a velha ração de lebre, que há um tempo em muitas cidades da União Soviética, a fome era tão alucinante, que todos pareciam zumbis desesperados, é que ao passarem dias sem comida, perderam completamente a razão. Nesse estado, dizia-me ele, o estômago e os muscúlos começam a entrar em um processo de autoflagelação, é o último aritifício do corpo, momento no qual se percebe que a morte dos outros é mais bem vinda do que a sua, que comer o tutano do fêmur de alguém é a última esperança do homem.

Desta forma sóvieticos saborearam uma fome tão avassaladora que seu comportamento se tornara similar a de malditos canibais: homens devorando crianças, gangs dividindo democraticamente quentinhas feitas de pernas e glúteos de infelizes desinformados.

Meus queridos nem os parentes eram poupados. Arnold me contou com um sorriso no canto da boca que uma mulher foi flagrada pelas autoridades comendo a carne do seu marido e dividindo com a sua cria. Perguntaram a ela, estupefatos:

- O que faz mulher? Está louca?

- Não sejam tolos! Estou comendo o meu marido com meus filhos. Ele é o nosso sangue e ninguém tem o direito de levá-lo. Precisamos dele para nos alimentar.

Nesse instante, aquelas informações se apoderaram de minha mente, como uma bala perdida encontra o corpo de alguém perdido. Pude reafirmar a mim mesmo que o desejo de viver nasce na verdade dos sustos e do perigo.

Isso acontece o tempo inteiro, até mesmo com você leitor que se deleita nesta narrativa. Pergunte-se quanto tempo você já dedicou a essa história. No entanto, acho que você não dá a mínima, não é mesmo? "Quem se importa? Quem se importa com os tais revolucionários torturados e humilhados em cárceres? Quem se importa com a fome do caipira do Arizona, ou com as vítimas de incêndios repentinos? Quem se importa com os políticos depravados?"

As pessoas assassinam umas as outras por pregarem que 'os maiores devem devorar os menores', ou mesmo para saber quem é mais, ou menos revolucionário. Daí, a razão pela qual se muda de uma vertente política como de religião: através da dor. Indiretamente, óbvio. Óbvio, porque a história já provou que os mais convictos politicamente, foram torturados, humilhados em cárceres fisica e espiritualmente até desfalecerem, enquanto que outros cederam a concepções opostas por causa da morte de entes queridos.

Arnold foi derrubado dias depois com duas balas na cabeça. Eu sei. Acham que estou com inveja, não é verdade? Felizmente tenho quatro balas sauvestres em minha espingarda e estou pronto para saber qual é a sensação da morte. Do frio cano duplo em minha garganta e das balas perfurando meu cérebro. Tentador. Porém, não estaria fazendo nada original. Muitos se matam dessa forma e pelos motivos mais clichês. Meus queridos a morte está em tudo: nas bombas, nas balas, nos contos e nas estórias de fadas, está em você também. Sim, você leitor. Mesmo sabendo que parte de sua vida estava em jogo ao ler minha história, prosseguiu e doou sua alma sem restrições, libertando o suicida que há dentro de você. Minhas mais sinceras congratulações. Temos todos, porém um só segundo de vida, o resto é licença poética, imaginação, desejo. Se você ainda está vivo... Viva como se já estivesse morto.

- Sentido, soldado!

- Sotaque engraçado, não é?

FIM

Tonny Araujo e Luis Fernando
Enviado por Tonny Araujo em 10/05/2013
Reeditado em 13/05/2013
Código do texto: T4283094
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