o golpe perfeito - primeira parte
Prólogo
Para ela aquela noite era especialmente saborosa a chuva chegava em boa hora, vinha para apagar todos os vestígios, mas para a maioria das pessoas aquela não passava apenas de mais uma noite escura de inverno, onde a lua cintilavam tímida em contraste ao céu nebuloso, tinha um brilho fosco e solitário levemente azulado como um par de olhos que também percorria a noite. Ao longe podia se ouvir o som da tempestade que estava a caminho, um relâmpago distante clareou a noite e mostrou os contornos nebulosos dos prédios mais altos, o vento uivava alto, enfurecido, como se tivesse raiva do mundo. Não demoraria muito para o tempo estar turbulento demais para que os aviões pudessem levantar vôo.
Dentro de um prédio robusto de enormes janelas uma multidão caminhava apresada, milhares de malas eram arrastadas pelo saguão de mármore branco, famílias se despediam, homens de negócios falavam apresados ao telefone enquanto carregavam suas maletas pretas, crianças corriam de um lado para outro, mulheres uniformizadas distribuíam sorrisos forçados, cada um seguia com sua vida, preocupados com os seus próprios problemas, ocupados demais, presos em seus próprios mundos. No meio daquele transito de chegada e embarque de pessoas ninguém notou a garota ruiva que entrou pela porta do aeroporto, trazendo no ombro uma pequena mochila. Apenas mais uma, em uma multidão de pessoas praticamente iguais.
A garota de passos firmes demais, e olhos azul gelo, atravessou o lugar sem muita presa, mas mesmo assim com um andar mais rápido que dos demais. Não teve dificuldade em se misturar, logo após alguns passos ela já tinha sumido no meio de uma avalanche de pessoas sem ser notada. Poucos a olharam nos olhos, e ninguém guardou o seu rosto na memória, um ou outro prestou atenção o suficiente para invejar seus passos decididos, de quem sabe de onde veio e, principalmente, para onde vai, mas fora isso foi como ela nunca tivesse estado ali. Passou pela multidão como um vulto na noite, e como estava acostumada a fazer se tornou só mais uma pessoa sem rosto naquele mar de corpos iguais, ate as câmeras de segurança pareciam não lhe notar. Sumiu tão rapidamente quanto surgiu, em minutos passou pelo detector de metais, e desaparecendo dentro de um avião. Deixando para trás uma tempestade que não deixaria nenhum outro avião decolar naquela noite e um pequeno saco plástico perdido em uma lata de lixo no centro da cidade, dentro as cinzas do que um dia foi um documento de identidade, contendo a foto de uma garota de pele levemente pálida e longos cabelos ruivos, e um nome que jamais existira.
No rosto antes sem expressão brotou um pequeno sorriso à medida que o avião levantava vôo e ultrapassava as pesadas nuvens que já haviam coberto a lua.
Ela havia vencido...
...de novo.
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No espelho se refletia um rosto um pouco pálido demais, de olhos castanhos demasiadamente grandes, e boca suavemente desenhada com batom rosa claro, os cabelos castanhos puxados em um coque no alto da cabeça, sem que nenhum fio escapasse. Um rosto perfeito, perfeito demais, quase como o de uma boneca de porcelana.
Enquanto olhava o imponente prédio de mármore branco á minha frente sentia uma sensação já conhecida tomar conta do meu corpo, um calafrio repentino me subiu pela espinha, mesmo naquela tarde de verão em que os termômetros beiravam os 40 graus. O mundo deveria ser feito de coisas assim, de primeiras vezes, de incertezas. Nada melhor que a sensação do incerto, do inusitado.
Tive o intuito de cocar um pé atrás de ir embora. Na rua ao lado passou um ônibus com grandes letras brilhosas, escrito “aeroporto”. Podia o ter parado, mas me detive, estava ali, não tinha porque voltar atrás. Dei uma ultima olhada a minha volta, era um bom lugar para se passar despercebido, a rua era larga com grandes canteiros de flores e sorveterias com mesas na calçada, cachorros passando com seus donos, algumas pessoas estavam sentadas nos branco da praça. Imaginei como deveria ser aquele lugar a noite, sem muito movimento, conclui.
Fiquei parada por um bom tempo olhando o imponente prédio a minha frente. Um medo quase impercepitivel palpitava em algum lugar do meu corpo, já não me sentia tão confiante como ontem. Na minha cabeça passavam muitas coisas, as vezes me impressiono com a quantidade de informação que pode passar pela minha mente em tão pouco tempo. Fiz uma coisa que fiz poucas vezes na vida, refleti. Imaginei todas as falhas do meu plano, em como isso tudo podia dar drasticamente errado. Pensando bem, meu plano “perfeito” poderia não ser tão perfeito assim. Talvez realmente não estivesse pronta para fazer aquilo, erra algo muito grande, se der errado...
Sacudi de leve a cabeça para espantar esses pensamentos. É por isso que eu nunca reflito muito sobre as minhas desisões, quando se passa muito tempo pensando nos defeitos, perde-se a coragem. O melhor e desidir, focar em um alvo e simplesmente agir, sem se dar tempo de ter medo.
Com esse ultimo pensamento criei coragem para atravessar a rua, passei pelos seguranças que não me dedicaram muita atenção, e subi os poucos degraus de escadas. Entrei em um grande salão, alto e vazio demais para o meu gosto, me senti desprotegida, uma ultima duvida se remexeu na minha cabeça, já estava no meio do caminho então continuei. Parei em frente a uma das recepcionistas e esbocei um dos meus sorrisos mais meigos, um desperdício de esforços, mas nunca se sabe quando ela me poderia ser util.
-Bom dia, eu tenho um horário para... hãã – não sabia direito como dizer.
-Você é a menina do bale?
-Isso ai. – respondi.
-segundo andar, sala quatro. – disse ela olhando no computador a sua frente.
-Obrigada.
Subi pelas escadas, porque... ora, porque eu sempre eu sempre subo pelas escadas, talvez seja porque ninguém mais faz isso, é um bom jeito de chegar em um lugar sem que ninguém lhe veja, os elevadores estão sempre abarrotados de pessoas preguiçosas indo de um andar a outro, depois não sabem porque a população esta gorda, ninguém se meche para nada. E também lá de cima dava para observar tudo o que acontecia na parte de baixo, inclusive um grupo de garotas conversando animadamente enquanto ia em direção a saída, uma delas que vinha calada um pouco atrás das outras, olhou para cima, pousou os olhos diretamente em mim, sustentei o olhar por um momento, e voltei a subir.
Na sala quatro, duas pessoas esperavam por mim. Logo que entrei fui analisada de cima a baixo, para minha sorte naquela manha tinha tomado o cuidado de vestir um pelo par de sandálias, roupas de boa marca, e prendido muito bem o cabelo.
-Erika. Imagino. – disse uma das mulheres, a me ver entrar.
Era alta, de cabelos negros muito bem cortados na altura do ombro. Vestia um vestido marrom, que lhe batia nos joelhos e um conjunto de colares um pouco grande demais para seu pescoço fino.
Dei uma rápida analisada de canto de olho a minha volta, era um lugar pequeno, em comparação ao resto do prédio, mas também sem muitos moveis, apenas algumas poltronas de couro vermelho, um aparelho de som era a peça mais moderna na sala que tinha um ar levemente antigo. espelhos que forravam as paredes e permitiam que eu me vise de vários ângulos diferentes.
-Exatamente. Eu vim para o teste...
-sim, sim – disse ela me interrompendo. – sabemos.
A mulher era ríspida, beirava os 60. Descobri na hora que teria que fazer algo mais do que esboçar um sorriso para conquistar sua confiança.
-Coloque as sapatilhas, tem exatamente 10 minutos para nos impressionar. – disse indo se sentar.
Fiz o que mandou, coloque as sapatilhas e fui para o meio a sala, ciente que observavam cada passo que eu dava. Posicionei-me, esperei a música para poder começar. Pareceu demorar uma eternidade, tudo dependia de eu conseguir impressionar aquelas duas mulheres que me observavam com olhos de falcão, aquele era o primeiro passo, de que defendia todo o resto, se falhasse ali todo o tempo que perdi em planejamento seria em vão, os treinos, as noites em claros que passei apenas planejando, desde que decidi fazer aquilo, as horas de dedicação... Tudo bem, não tinha sido TANTO tempo assim, mesmo assim uma semana de planejamento é muita coisa. A simples palavra planejamento já é muita coisa para mim.
Quando a musica começou esqueci qualquer duvida e simplesmente dancei. Quem diria que um dia aquelas aulas de bale me seriam úteis. Senti-me de novo com sete anos, na primeira vez que subi em um placo para uma apresentação de bale, a diferença é que dessa vez ninguém precisou me forçar a dançar, mas isso não fazia com que eu odiasse menos aquilo.
Parei em sincronia com a musica, a sala ficou em silencio por um tempo.
Quase ouvia meu coração pulsar, adrenalina pura corria em minhas veias, mas fiz de tudo para que não notassem isso.
-Bom. – foi apenas o que ela falou. – mas creio que não o suficiente.
O coração pulou dentro do peito. “DROGA” pensei comigo mesma. Mas mantive meu rosto o mais sereno possível.
-Somos a melhor escola de artes do pais, não aceitamos de nossas alunas nada menos que a perfeição, isso que nos faz estar entre os melhores do mundo.
- Sei disso, por isso estou aqui. – disse.
Ela abriu a boca para continuar, mas a outra mulher que ainda não tinha falado até agora, se levantou. Era mais velha, cabelos brancos, o rostos esboçava a marca do tempo, mas a postura era impecável, vestia um vestido preto muito elegante, nas suas orelhas brilhavam dois pontos de diamante – com toda a certeza legítimos.
-A menina tem boa postura, passos firmes, delicados. talvez seja um pouco apresada nos gestos, mas dança bem. Creio que esteja a altura de nossa escola. – falou de modo muito sereno.
A outra pareceu não se agradar, no entanto não disse nada contra.
-A aula é amanha as seis da tarde, não se atrase criança. – disse ela me analisando com cuidado.
-isso significa que eu passei no teste? – perguntei só para me certificar.
Ela apenas assentiu com a cabeça.
-Obrigada. – esbocei o meu sorriso mais feliz.
-Já pode ir. – falou a outra.
Sai da sala certa de que estava um passo mais perto do meu objetivo.