Amor quase perfeito- Conto II- Série Psicopatas

Giselle 
 Sato

 

 

Minha primeira vez com Joel foi inesquecível, nunca havia sido fotografada, muito menos sabia o que eram jogos amorosos, nada de nada. Conheci este homem no mercadinho onde sou caixa e começamos a almoçar juntos, um dia fomos ao cinema e depois a uma festinha. Algum tempo depois estabelecemos uma rotina natural onde passamos a fazer praticamete tudo juntos, só nos separávamos quando ele precisava viajar a serviço. Não eram longas ausências, no máximo duas semanas durante o mês, e quando Joel voltava era sempre uma festa. Ele era doce e gentil, sempre trazia presentinhos quase sempre lingerie preta de renda e sapatos de salto alto.

 

Recostada na poltrona, viajo no tempo e relembro os detalhes. Era uma tarde de inverno e chovia bastante, fomos para o estúdio onde ele fotograda. Eu estava meio acanhada mas ele pediu que eu ficasse parada, fazia muito frio e o aquecedor parecia zombar da minha quase nudez enquanto eu tentava manter a pose . Acho que fechei os olhos por um momento, sono ou enfado. Acordei com a ardência do tapa forte que ganhei na bunda empinada:

 

- Dor e prazer sempre fazem parte do jogo. Regra um. Segundo Joel, eu deveria ter dado mais atenção a esta dica tão importante.

Forçei um sorriso e ele fez a primeira foto, com todo cuidado usou um pincel e retocou meu batom cor de rubi. Depois puxou a micro calcinha até que ela ficou toda enfiada no vão das minhas nádegas.

Outro flash pipocou, o clarão incomodou e esfreguei os olhos. No minuto seguinte minhas mãos foram unidas por uma encharpe de seda vermelha, que ele transpassou na minha cintura e deu um nó apertado. 

 

Mentalmente refaço a cena: a cama com lençóis de cetim preto em contraste com meu corpo muito branco, ele soltando os longos cabelos de um negro quase azulado, que ele ama de paixão...cada movimento seguia uma espécie de roteiro, porque em seguida  ele se inclinou e aspirou meu pescoço, sentindo o perfume:

- Linda. - Ele sussurrou e orgulhosa tive certeza de estar muito, muito sexy.

Ouvi alguns cliques e depois apenas o silencio, quando decidi reclamar da temperatura gelada, ele forçou meu rosto contra seu pau e iniciei um boquete sem a menor pressa. Joel no entanto tinha pressa e forçou meu pescoço para trás, sem poder usar as mãos, fiquei à mercê de seus desejos pelo tempo que ele quis. Em seguida dedos começaram a explorar delicadamente minha calcinha molhada , pedi pra ele me soltar mas não adiantou, nunca havia feito sexo daquela forma e confesso que no começo foi interessante, mas depois comecei a ficar nervosa.

Ele tinha total controle de toda situação o que me impedia de fazer um carinho, tomar a iniciativa ou virar o jogo. Infelizmente ele não aguentou muito tempo e gozou rápido demais para meu desgosto. Escondi a decepção porque estava quase lá quando a festa acabou sem mais nem menos, Joel não ficou preocupado em saber se eu havia gostado ou não.

 

O intervalo por assim dizer foi bom pra ele que desmontou, correu apressado pelo quarto pegando mil coisas e  todo o tempo permaneci com os pulsos atados. 
Em minutos Joel acrescentou rosas na cama, taças, um sapato verniz preto de salto agulha em um dos criados mudos e mudou minha pose. Fez com que eu me equilibrava em cima de uma imensa almofada branca, pernas abertas, o rosto escondido pelos cabelos, mais uma vez a bunda era o foco principal  das fotos. Senti que ele ofegava e fotografava, murmurando o tempo todo o quanto eu estava linda e gostosa, foi quando ouvi a leve batida na porta e gelei. Joel calmamente colocou uma venda e disse que não queria que eu visse nada. Seria mais excitante daquela forma.

Havia mais alguém no studio e o pano  me impedia de identificar, já havia sido alertada sobre esta participação mas não sobre o dia, ele adorava uma surpresa e não se cansava de repetir que  minhas expressões naturais eram fascinantes.
Caretas de horror, porque eu já havia passado por coisas que nunca imaginei na vida desde que me apaixonei por aquele homem cheio de fetiches, e sentia que a cada dia ficava mais e mais envolvida:


-Carol, um amigo  vai participar de umas fotos e depois vamos parar para voces se conhecerem. Mas queria fazer  assim... no anonimato. Tudo bem? Amor?- Ele falou no meu ouvido e beijou meu rosto. Eu apenas assenti com a cabeça concordando e logo senti as mãos do estranho apalpando meu corpo.

 

Uma mão suada passeou devagar por todo meu corpo, em seguida começou a esfregar o rosto com força e deu várias lambidas nas minhas costas. Então recomeçou traçando um caminho com a boca e descendo até o quadril onde pousou a cabeça e ficou abraçado enquando Joel fotografava feito um louco.
O estranho começou a gemer e se afastou um pouco, sem seguida um jato morno nas pernas confirmou que ele havia gozado. Estava começando a ficar dormente quando me desamarraram e tirei a venda. Fiquei furiosa quando dei de cara com um rapaz que não simpatizo nem um pouco, eles abriram um vinho e me ofereceram uma taça.

Recusei, preferi tomar um banho e vestir um roupão mas Joel não deixou, disse que ainda não havia acabado e apalpou meus seios. Ele queria que fizéssemos sexo a três, várias vezes havia sugerido isto e eu fingia que era uma brincadeira.

O problema é que eu não gostava do Valdo, o tal amigo e  fui bem clara.  Aquela suruba  não iria acontecer. Estava indisposta e ponto final, não quis saber de argumento e fui até grosseira quando Joel tentou me abraçar. O tempo fechou, aborrecido ele  mandou o amigo e eu sairmos porque precisava trabalhar nas fotos.

Regra dois: Contrariar Joel sempre gerava consequencias.

 

A tarde estava quente e abafada e Valdo, sugeriu uma cerveja para relaxar o clima. Ia recusar mas estava tão irritada que acabei concordando e fomos para um barzinho. Pedimos a primeira, a segunda e la pela quinta rodada, Valdomiro começou a falar demais

Gosto de você Carol, acho que não merece um cara doido feito o Joel. Vai acabar mal esta história se você nãoabrir os olhos e sair fora a tempo.- Ele estava vermelho e com os olhos inchados, parecia meio chapado também.

- Não entendi, está me cantando e falando mal do seu amigo que te deu própria namorada?- ri debochada e tomei mais um gole da gelada.

- Estou te avisando, porque sou ex cunhado deste maluco e minha irmã até hoje não me sai da cabeça. Sabe que ela se matou né? Caiu ou foi jogada da varanda do décimo andar e nem abrir o caixão a gente pôde. Ficou irreconhecível. Culpa daquele safado, ela era uma escrava dele, que fazia tudo que ele mandava. Também fazia estas coisas aí, saía com os amigos dele, tirava fotos, ele é um degenerado.

Credo! Você é irmão da falecida? E vem participar das safadezas do Joel e ainda fala mal dele?

- Ué...ele me paga cinquentinha e eu tô na pior. Mas gosto de você faz tempo, somos vizinhos sabe? Moramos na mesma rua e eu fico te vendo passar, todo dia naquele uniforme do merdado, de branquinho e com a calcinha marcando … bato uma na sua inteção e tudo. Todo dia … todo dia.

- Olha aqui, você é doente, não sei porque aceitei parar aqui mas vou deixar trinta reais e sair fora agora. Não tem nada a ver o que tá sugerindo, deve ser recalque e inveja do Joel.

- Até hoje ninguém sabe porque Mariana fez aquilo, porque ela era uma menina feliz e estava grávida de sete meses. Na policia eles disseram que mulher de barriga não faz estas coisas, e minha irmã era muito católica... ela não iria pular. Minha mãe dizia que foi ele, ela acusou o Joel até o dia em que morreu, mas não tínhamos provas e somos pobres. Não tivemos um bom advogado. Você sabe o que ele ficou fazendo enquando a gente chorava, sabe o que eu descobri? Seu namorado tirou um monte de fotos dela morta, no pátio do prédio, no necrotério, uma porção daquele monte de carne e sangue e do bebê também. Ele é maluco.Tô te avisando menina. Mariana era tão linda, boa, inteligente e cuidava de mim. Era tudo pra mim. Tudo. Ninguém me tira das ideias que ele mandou ela pular, foi ele!

- Chega cara, maluco é você porque isto não existe. Doido!- Corri dali e fui para casa depressa, precisava de um banho bem quente porque estava me sentindo um trapo.

 

Eu havia ouvido falar no caso, uma coisa horrível que nunca associei ao Joel e nem ele tocou no assunto. Diziam que ouviram uma espécie de som de bebê chorando, um lamento na hora do baque mas isto virou lenda e muita gente quis sair daquele lugar porque pegou fama de assombrado. E Joel atualmente vivia em uma casa linda em outro bairro bem distante,jamais iria imaginar que ele havia sido o marido daquela moça bonita que estampou as primeiras páginas de todos os jornais locais. Uma tragédia, ela estava limpando as plantas em cima de uma escadinha e caiu. Todos ficaram comovidos porque na foto ela segurava a barriga imensa com carinho e sorria com uma expressão feliz. Depois encontraram vinho, remédio para dormir e uma nota de despedida e ficou claro que havia sido intencional. Não li mais porque não me interessei.

 

Joel ligou assim que cheguei em casa, pediu desculpas e eu fingi aceitar enquanto tirava as roupas e separava ouras limpas. Recusei um encontro mais tarde e depois do banho demorado e um sanduíche fui para a cama. Eram duas da manhã quando o celular tocou, Joel me acordou no meio da madrugada, estava com insônia e queria ficar comigo. Acabei cedendo. Um minuto depois ele batia na porta, estranhei a rapidez e ele mostrou o carro parado na calçada em frente ao prédio:

- E se eu não estivesse em casa? - Ele me olhou de uma forma estranha.

-Você sempre dorme cedo quando está no primeiro turno, esta é a semana da madruga.

Nossa! Você marcou minha escala! - Antes eu ficaria orgulhosa, agora estava um pouco intrigada.

- Estamos juntos há algum tempo, é claro que já sei alguns de seus hábitos.

- Praticamente um ano e sua memória é excelente porque eu preciso sempre olhar a planilha dos turnos.

 

Fomos deitar, Joel tinha o hábito de me abraçar apertado até pegar no sono. Ele dizia que sentia-se calmo ao meu lado e sempre que não conseguia dormir me procurava. Eu nunca me importei, mas naquela noite depois que ele adormeceu percebi que tinha um sono agitado e murmurava coisas, palavras sem nexo em um pesadelo constante. Meu sono pesado havia me impedido de ver o quanto Joel parecia atormentado, aquilo e a historia de Valdo foram suficiente para que eu permacecesse acordada até de manhã.

O dia transcorreu corrido e quando me dei conta já era hora da saída, nunca trocava de roupa porque moro perto do mercado e costumo ir caminhando, para minha surpresa Joel estava me aguardando encostado no muro em frente. Sorrrimos um para o outro e ele atravessou a rua, trocamos um beijinho rápido e tomamos a direção da minha casa:

-Tudo bom? Fez algum trabalho legal hoje? - Perguntei por acaso, sabendo que não havia nada programado,

- Não. Hoje queria fazer uma fotos suas, se estiver disposta estou com uma ideias boas.- Ele sorriu com malícia e eu imaginei logo o que seria.

-Não quero foto com seu amigo, aliás ex cunhado porque ele é doido.

- Ah! Ele contou que fui casado com a pobre irmã dele, uma moça completamente perturbada que me dava o maior trabalho. Viciada, mas só descobri isto quando ela já estava grávida e acabou indo morar lá em casa até a criança nascer.

- Ontem  Valdo estava completamente drogado. Você me expõe deixando este tipo de gente transar comigo.

- Querida, não houve penetração, o coitado só tocou uma punheta e espirrou na sua coxa.

- Mesmo assim não gosto dele. É  um viciado,  vive me espionando desde que mudou pro bairro. As meninas detestam este cara.

-Tudo bem, era pra ser apenas você e eu, Valdo só queria assistir.  Quanto ao trabalho de hoje, se não quiser não precisa fazer, não estou te obrigando a nada, mas desta vez vai rolar um cachê porque é para um sexshop. Se não puder vou chamar uma modelo, e quem deixa de ganhar os duzentos reais é você.

 

Ele sempre tinha um ás na manga, eu vivia na maior pendura e qualquer extra caía do céu portanto era óbvio que iria aceitar. Nem respondi e quando chegamos na porta da minha casa ele me segurou pelo braço, nos beijamos com carinho e ele falou baixinho:

-Soube que você era  a mulher da minha vida assim que te vi , sou completamente apaixonado por você e quero que saiba que você é tudo pra mim. Te amo Carolina.- Joel  tirou do bolso uma aliança de ouro branco larga, com um único brilhante lapidado em formato de coração. Fez uma mesura e colocou no meu dedo. Chorei de emoção, finalmente ele estava assumindo o tal sonhado compromisso.

 

No meu quarto, a cama já estava arrumada com um cobertor de pelo imitando onça e haviam uns acessórios como consolos de todos os tamanhos, bolinhas, gel e outros vibradores. Ele tinha tanta certeza que eu iria aceitar que deixou tudo pronto, aquilo me deu uma espécie de angústia mas o anel na minha mão parecia me hipnotizar e fiquei calada.
Foi uma tarde de fotos cheia de poses, precisei usar aqueles apetrechos mas meu rosto não apareceria no catálogo, só mesmo o corpo em toda exposição ginecológica. 
Dolorida e cansada, terminamos no meio da madrugada, Joel parou algumas vezes de fotografar de tão excitado com a demonstração dos produtos. Como somos namorados, não me importei mas achei o pagamento pequeno pelo trabalho e reclamei:


-Da próxima vez, peça um pouco mais amor, é muito trabalho  por esta mixaria.

-Porra! Você fica deitada de perna aberta, enfiando estas coisas e eu me matando de fotografar e ainda reclama do cachê?- Ele berrou, pouco se importando com a hora.

-Calma amor, fale baixo senão os vizinhos irão pensar  que estamos brigando.

-Falo como quiser, quer mandar em mim? Quem você pensa que é? Uma puta toda arreganhada ganha cinquentinha por muito mais e a gostosona aí fica falando mal... não te chamo pra mais nada, sua  mal agradecida,. Outra coisa, não sou otário... sei que tem conversado demais com o Valdo. Piranha. Safada, toda mulher é igual, não pense que pode me enganar com esta carinha de santa.

-Que é isso? O que está acontecendo Joel? - Ele me ignorou, enquando arrumava o equipamento e ia colocando na bolsa com cuidado, alterado demais para escutar ou responder. Falei para as paredes, Joel estava fora de si e não queria conversar.

Quando terminou de ajeitar a bolsa,  caminhou para a sala e era claro que iria embora. Joel bateu a porta com força e fiquei sozinha no escuro.  Na pressa ele esqueceu de deixar o dinheiro e eu fiquei me sentindo péssima.

Passaram  duas semanas, ele não ligou nem deu qualquer sinal de vida,   entrei na maior depressão,  emagreci, evitei os amigos e só fiz chorar todas as noites.
Um dia Joel  foi me buscar no trabalho como se nada houvesse acontecido, com a desculpa do pagamento dos duzentos reais, estava calmo e amoroso. Trouxe presentes, disse que havia sido mandado para a África a serviço, não quis me ligar porque queria dar um tempo e pensar na nossa relação.
Totalmente insegura e medrosa, aceitei as explicações e ainda pedi para esquecermos o passado. Ele exultou com minha reação e fez mil promessas, mais uma vez disse que eu era a mulher que ele sempre sonhou. 

Para comemorar combinamos um jantar na casa dele, fiquei feliz com a mudança e comecei a fazer  planos. Joel adorava cozinhar e saiu apressado para fazer comprar e preparar o banquete,  resolvi dar uma caprichada no visual para a noitada.
Como nada é perfeito no meio do caminho para o salão, ao atravessar uma pracinha abandonada tive que encarar Valdo, a última pessoa que esperava encotrar naquele dia especial. Completamente doidão e bêbado,  o rapaz estava largado em um banco quebrado, tentei evitar mas ele me reconheceu e gritou meu nome, todos na rua pararam para olhar:


- Carolzinha , você tá acabadinha, bebê que coisa feia. Ele tá te consumindo gatinha. - E apontou um dedo sujo pra mim.

- Nossa, o limpinho falando...quem ouve pensa até que tem moral para isso. Sai fora Valdo.- E apertei o passo.

- Ei! Ei! Este aí eu conheço, espera aí menina. Por favor.

 

Parei sem nem saber porque, ele tinha alguma coisa que me despertava piedade e provavelmente era culpa daquela tragédia. Uma droga que nunca mais consegui esquecer. Valdo aproximou-se até ficar na minha frente, aquele bafo me deixou  enjoada mas mesmo assim me controlei:

- Fale logo que eu tenho hora no salão. Dois minutos e vou embora.

- Ei, conheço este anel com um coração no meio. É da minha irmã, quer dizer, foi dela.

- Sabe que você não está tão mal assim? Sua visão é excelente pra um pinguço. É só? Então adeus Valdo. E esta aliança é minha, acabei de ganhar do meu namorado.

- É da Mariana, tem um lance escrito, ela mandou fazer um pra mim também.

- Olhe, pare de me atormentar. Este anel é novo e não tem nada gravado nele.

- Tudo bem, desculpe. Ela foi enterrada com ele, eu lembro que minha mãe pediu pro Joel. Este deve ser outro anel, mas é igual ao dela, desculpe Carolina, desculpe. 

- Ótimo, agora saia da minha frente e me deixe em paz.

- Isto mesmo: paz e luz. Eu tenho um sem pedra, mas não uso senão os caras roubam, minha avó guarda pra mim. Lembrei as palavras, paz e luz.. ela dizia que a  paz  era para guardar e  a luz para guiar. 

- Este não tem nada aqui escrito. Porque você não me esquece? Joel não quer que eu fale com você.

- Mas queria que eu transasse com você para ele ficar tirando foto. Ele também fez isso com a Mari, obrigava até a ir em casa de swing com ele. Fazia ela ficar olhando ele com outras, ele é ruim. Um dia ela não quis fazer mais estas coisas, ele então mandou ela embora e ela ficou triste. Ela ficou muito triste...

Deixei Valdo pra trás mas as lágrimas teimavam em escorrer, é claro que aquelas duas palavras estavam lá desde o princípio e Joel havia dito que eram as coisas mais importantes do mundo, por isto ele havia mandado gravar. Mentiras. Mentiras.

E eu usando a aliança da morta, que agora pesava como nunca, mesmo assim não conseguia deixar Joel e seguir minha vida. Ignorando o instinto, intuição ou o que fosse, vesti meu melhor vestido e fui me encontrar com ele.

A casa de Joel,  a  mansão mais escondida no alto de uma colina em um  ponto caríssimo e exclusivo. A decoração tinha  muitas gravuras de artistas famosos e móveis modernos e amplos. Na verdade era um loft giganteco, porque ele odiava divisórias e paredes, mal estacionei ele abriu a porta e me deu um grande abraço:

- Bem vinda amor. Fiz algumas reformas e quero te mostrar tudo, espero que goste.  Aqui eu me sinto muito solto e livre, abri um espacinho e montei um novo estúdio, quero trabalhar em casa. E o quarto principal ganhou um closet imenso, você vai adorar  os espelhos, a poltrona para calçar os sapatos é francesa. Sentiu  o cheirinho? Estou fazendo uma receita italiana para nós, vamos sentar na varanda e assistir a natureza um pouquinho? Um vinho branco gelado? Aceite uma taça. 

- Este lugar é lindo. A vista para o mar, sempre tão fresquinho e tranquilo. Não sei como aguentava  ir para aquele estúdio tão longe, naquele subúrbio no fim do mundo. Tão longe daqui. 

-Talvez porque a casa da minha amada fosse pertinho,  já pensou nisso?- E sorriu, alto e muito magro, elegante e refinado demais para uma mulher que era uma simples caixa de mercado. Ser namorada de Joel era um sonho para mim. Ele tinha dinheiro, posição, era solteiro e estava apaixonado. O que mais uma simples mortal poderia querer?

-Você está linda querida, este vestido ficou perfeito em você. Sempre acreditei que nos locais mais simples estão escondidos os verdadeiros tesouros. Veja seu exemplo, alta, naturalmente esguia, refinada como uma top model e com a boa sorte de ter completado os estudos. Só não fez ainda uma universidade, mas quem sabe um dia... E neste Dior que parece ter sido feito para suas medidas, está perfeita.

- Mais um presente seu, escolhas suas meu amor. - Joel sempre me dava roupas caríssimas e adorava que eu as usasse para ele.
 

Estávamos sentados em confortáveis poltronas quando ele começou a me encarar seriamente, os olhos brilhando e quase maldosos:

- Você não me disse que Valdo andou te perturbando, mas ele andou não é?

- Eu... esqueci. Desculpe, foi tão rápido.

 -Mas eu disse que queria saber tudo, tudo que te aborrecesse ou intimidasse. Ameaças me irritam muito.

- Ele não fez nada, só falou umas besteiras.- Neste momento eu senti que falei demais, mas era tarde para consertar.

- De que tipo? Porque não me disse?

- Ele cismou que a aliança que você me deu era da irmã dele, ele é maluco.

- Não é maluco coisa nenhuma, a aliança foi dela mas agora é sua. Ela está morta e morto não usa jóia. Além do mais, dei tantos presentes para ela, este anel por acaso ela mesma comprou. Não interessa, agora é sua.

 

Eu ia falar mas me faltaram palavras, Joel levantou-se e foi até a sacada. Virou-se então e me olhou mais uma vez como se estivesse me analisando:

- Qual o problema? Você também está usando um vestido dela, e tem usado as roupas dela há tanto tempo sem saber...Por acaso sentiu algum tipo de alergia? Eram coisas boas e novas, porque jogar fora? Além do mais, nunca terá condições de comprar nada igual, são todas de griffe, não seja boba.

- Mas eu jamais pensei... meu Deus. Que coisa mórbida, não quero este anel. - E tirei do dedo como se o anel estivesse queimando, estendi para Joel que nem se mexeu.

- Coloque de volta e pare com esta palhaçada. Vamos jantar e depois decidiremos.

- Eu quero ir embora. Não preciso destas coisas, posso viver sem isto. - falei baixinho.

 

Joel pegou meu braço e me obrigou a levantar, praticamente me arrastou até a mesa e fui jogada na cadeira.Comecei a tremer e ele pegou a panela com a carne e legumes cozidos e despejou na travessa, havia arroz, saladas e outras coisas que não prestei atenção. Ele serviu o prato e ficou esperando que eu fizesse o mesmo:

- Não seja rude, como minha convidada de honra você tem que me acompanhar. E pare de chorar, odeio dramalhão. Arrume esta cara, experimente o assado e prove este vinho.

- Eu não estou com fome.

-Não é um pedido querida, ainda não entendeu? Fiz este jantar com tudo que mais gosto. Só sinta o sabor, seja educada e aprecie meus dons culinários.

 

Ele comeu tranquilamente enquanto remexi os alimentos e quando ele me olhava de cara feia, colocava um bocado na boca e me forçava a engolir. Foram quase duas horas alternando pratos, ele abriu duas garrafas de vinho, sobremesas, digestivo e depois serviu café. Finalmente reuni forças para pedir licença para ir ao banheiro, ele deu de ombros mas tomou minha bolsa onde estava o celular.

Trancada no banheiro pela primeira vez em meses vi meu verdadeiro reflexo no espelho, uma mulher sem viço, magra demais e com imensos olhos saltados. Aterrorizada. Batidas fortes na porta me trouxeram de volta, e saí do pequeno refúgio para a toca do lobo que estava sentado em uma grande poltrona bebericando conhaque e fumando. Tinha olhos de serpente, reparei que Joel tinha aquela forma que as cobras exibem quando querem intimar sua presa. Ele bateu na outra ponta da poltrona indicando meu lugar e foi pra lá que me dirigi, dócil demais para o abate:

- Vou te contar a história toda, porque você merece ouvir a verdade.Não o que o doidão falou, mas os fatos que nem ele nem a família dele conhecem. Sabe, quando conheci Mari, ela era uma menina linda, filha da nossa empregada e tinha só quatorze anos. Nem sabia falar direito, uma florzinha pura, recém-chegada do norte, mas mesmo assim me apaixonei por ela. Independente de posição, cultura, tudo que pudesse impedir, nós nos casamos quando ela completou dezesseis anos. Claro que durante estes dois anos de espera , ela foi uma modelo maravilhosa e fiz verdadeiras obras de arte. Rosto de anjo, corpo de mulher, menina, uma lolita toda delicada. Mas depois de casada, ela perdeu o encanto e se transformou em uma megera ciumenta, mesquinha, me sufocando, espionando, fazendo escândalos por causa das modelos que iam ao meu estúdio, parou de estudar e estagnou. Está acompanhando querida?

- Estou.- Recusei a bebida que ele me ofereceu e cruzei as mãos no colo. Imaginei a menina perdida no meio da loucura de Joel e tive pena.

- Então eu a inscrevi em alguns cursos, ela precisava preencher o tempo senão me enlouqueceria. Mas ela não era muito inteligente, não aprendia nada e tudo era perda de tempo. Mariana vivia minha vida, ficava me seguindo feito um cãozinho, fuçava meu escritório e não me dava paz. Ela achava que minhas amigas virtuais eram amantes, quebrou o computador por ignorância, mal sabia usar o mouse. Se eu convidasse uma amiga para nos visitar ela logo achava que eu tinha interesses pessoais, só me envergonhava. E aquele irmão dela foi o culpado porque ajudava, incentivava, mandava ela me estorquir. Ele também deu a ela as primeiras drogas, os calmantes que ela se viciou. Minha pequena Mari que era alegre e divertida, virou uma sombra amarga e depressiva usando roupas pretas e bebedo demais.

- Ela não procurou um médico? Ninguém ajudou esta mulher?

- Não, ela era teimosa. Fui obrigado a pedir ajuda aos pais dela, paguei para eles tomarem conta dela. Mas dois meses depois ela voltou grávida e com as malas, disse que queria ficar até ter a criança. Prometeu procurar ajuda. Mas era muito fraca, foi melhor assim...ela desistiu antes que fosse tarde demais.

- Ela tirou a própria vida e a do filho.

- Acho que foi a única coisa certa que esta criatura fez, não colocou no mundo uma criança fadada ao fracasso. Eu não queria aquele filho, ela sabia disso muito bem.

- Meu Deus. Por favor, eu só quero seguir minha vidinha de sempre e não vou falar nada pra ninguém. E só quero ir embora... eu não sou como a Mari.

- Não, você é muito melhor que ela, você é uma garota esperta . Podemos ficar aqui algum tempo, depois vamos viajar e fazer alguns trabalhos pelo mundo. Aquele mercado não é lugar para uma mulher tão inteligente, quero que fique comigo meu amor. Gosto de companhia, odeio viver sozinho sem ninguém para conversar.

- Você está me obrigando, isto é rapto.

- Claro que não querida, vamos decidir de outra forma. Lembra quando brigamos e precisei passar um tempo longe? Fiquei com muita raiva de você, tanta que tive medo de te machucar... precisei ir pra longe descarregar esta coisa ruim.

- Mas Joel...

- Cala a boca, olhe aqui o que você fez. Olhe bem o que você me fez fazer.

 

Um pacote de fotos caiu no meu colo, abri e as primeiras me fizeram soltar um grito de horror. Uma moça jovem, bem parecida comigo estava amarrada e amordaçada como nas poses que normalmente ele gostava de fotografar, só que ela estava toda cortada e ensanguentada e a poça que ia se formando ao redor do corpo aumentava a cada sequencia de maus tratos a que ela era submetida. Não houve abuso sexual mas toda sorte de maldade foi cometida, talhos e mais talhos, extensos e superficiais, que devem ter causado muita dor. A última foto mal dava para identificar a mulher do início, não consegui impedir as lágrimas:

- Ela sofreu demais, porque fez isso?

- Não preciso te responder, mas não consigo resistir ao impulso. É mais forte, quase uma necessidade, um vício e esta garota era durona... lutou por quase dois dias.
- Deus! Quantas?
- Muitas.
- Porque eu?
- Gosto de você.
- Até quando?
- Não sei, mas é melhor que seja assim...Por enquanto não tenho vontade de te matar.

 

Seis meses se passaram antes que eu me desse conta, nunca mais retornei ao meu antigo endereço ou emprego. Para todos eu larguei tudo para viver com um ricaço e estou muito bem, mas Joel me assusta tanto que não tenho forças para contrariar suas vontades. Sei que ele matou a primeira esposa, também sei que Valdo não morreu de overdose de crack por acaso horas depois de falar comigo, assim como meus pais pararam de trabalhar na lavoura após a mesada que eu passei a enviar mensalmente.

Joel tem um escritório onde permanece horas trancado, escuto as conversas que ele mantêm com mulheres de outras cidades, ouço quando marcam encontros e fico apavorada. Imagino o que ele deve fazer mas não sei quem são, nem tenho como avisar ninguém sobre seu caráter já que eu mesma não passo de um brinquedo que ele ainda não se cansou. Ele brinca com estas mulheres, caça e elas desaparecem em algum passei de barco em um final de semana qualquer. Elas saem com aquele estranho completo que acabaram de conhecer por fotos e câmera para uma aventura, imaginam que estão conquistando um empresário rico e são apresentadas à um monstro. Pobres infelizes.Ele paga passagens, hospedagem, usa nome falso, eu ouço calada e choro todas as noites. E quando ele manda que eu faça poses, fingindo ser uma espécie de estátua viva é a única forma que ele tem prazer sexual, Joel vive sua fantasia comigo. E só.

 

Nunca existiu trabalho algum como fotógrafo, ele sempre viveu com um percentual que o pai manda de fora do país, são donos de negócios na China ou sei lá aonde.

Um dia encontrei uma foto de Mari ainda mocinha , antes dos salões e tintas ela era morena e tinha um rosto tão parecido com o meu, que podíamos ser irmãs. Algumas vezes ele grita que sou burra, fraca demais, que não sei fazer nada direito e que só a morte pode me salvar. Repetindo o velho papel, fica me ameçando e rindo das minhas inseguranças e me compara com Mari. Não tenho medo da morte, vivo cercada por assobrações e durmo ao lado de uma besta assassina. A casa é pesada, triste e silenciosa, ele cada vez ele está menos interessado em sexo real, prefere as madrugadas em frente ao computador.

Então eu fico olhando o mar lá no horizonte, passo muito tempo na varanda respirando o ar da noite, ouvindo as ondas batendo nas pedras e penso... penso... que talvez ele tenha razão. Talvez um dia eu voe e deixe a gaiola de vidro...talvez eu siga os passos de Mariana. Talvez.

 





Foto: Ricardo Pozzo

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 26/12/2011
Reeditado em 31/12/2011
Código do texto: T3406661
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