Olívia de Bordeaux, Romance, Cap. V
Flora lixava as unhas impacientemente na sala. Esperava por Gustavo Henrique, que saía finalmente do quarto, terminando de ajeitar a gravata.
-Você não ficou de fazer uma viagem ao Brasil?, Flora indagou ao marido.
-É verdade. Mas o tempo passou e acho que eles esqueceram.
-Claro que não, não é Gustavo? Não acho que chegue ao nível do esquecimento a negligência com que são tratados os interesses do país.
-Foi pra oposição agora, é?
-Não! Só que nunca fui burra, nem imbecil.
-Não precisa se zangar, Flora. Estava apenas brincando. Desconfio que você está querendo voltar ao Brasil. Posso saber por quê?
-De novo! Já falei que quero estar no lançamento do livro da poetisa que conhecemos naquela recepção em Brasília. Trata-se da Ondina Miranda. Vi num desses sites informativos, que tratam de assuntos literários, que a autora estará lançando um livro em fins de novembro no Rio de Janeiro. Você tem, portanto, mais de um mês para preparar a viagem.
-Essa Ondina não é aquela chata que ficou te azucrinando durante um bom tempo na recepção que nos ofereceram em Brasília?
-Sim, aquela mulher chata faz o que você não tem a mínima capacidade de fazer.
-Não vou discutir isso. Poesia é coisa pra maluco ou pra quem vive sonhando. De qualquer modo, precisaríamos de no mínimo dois dias, já que não se trata apenas de ir à Brasília.
-E qual o problema? Prefiro muito mais ficar no Copacabana Palace e ir à praia em frente do que ir lá pr’aqueles cantões cheios de poeira só porque a embaixada é em Brasília. Além do mais, você terá mais tempo para cumprir com calma toda a agenda. Poderá inclusive vir com o seu relatório já pronto do Brasil.
-Você já sabe o dia do lançamento?
-Sei que é numa sexta-feira. Não lembro o dia, mas isso é fácil de se obter. Ligo ainda de manhã com a informação completa lá pro seu escritório.
-Será que ela vai reconhecer você, se não estiver com aquela peruca meio alourada que usou lá em Brasília? Aliás, nunca entendi muito bem o porquê dessa mania de disfarce.
-Dois motivos: primeiro porque a gente se sente outra pessoa, com a mudança do visual. Depois porque, sendo você um homem público, nunca se sabe a reação das pessoas que se aproximam da gente.
-Mesmo eu não sendo mais senador?
-E daí? Como saber o que se passa na cabeça das pessoas? Quem é rei, nunca perde a majestade, querido, ironizou Flora. Mas nesse caso – você lembrou bem –, para que ela me reconheça mais facilmente, talvez eu acabe levando mesmo a peruca.
Além dessa mania da mulher, Gustavo Henrique lembrou das preocupações do governo quanto ao incremento de medidas que estimulassem o ingresso de turistas brasileiros em Portugal. Como forma de aplacar os efeitos antipáticos de uma crise recente gerada pelo tratamento discriminatório de que se queixavam os dentistas do Brasil. Chegando a Brasília numa quinta pela manhã, ele teria o resto do dia para tratar desses assuntos na embaixada. Viajariam com calma no dia seguinte para o Rio de Janeiro, onde seria recomendável, face ao que já ouvira de Flora, que tivessem algum tempo disponível para as areias de Copacabana. Isso tornaria rápida a passagem pelo tal lançamento, que certamente se realizaria à noite. Talvez ele nem precisasse sair do carro. Seguiriam depois direto para o aeroporto, onde um vôo noturno os traria de volta a Portugal. Com uma diária de hotel apenas, os custos da viagem seriam reduzidos, o que não assustaria a ninguém no escritório. Havendo até a chance, ao contrário, de serem obtidos comentários elogiosos por parte do Sr. Ministro. Pelo oportunismo da missão, a serviço do país, a custos inexpressivos. Além do mais, era preciso que se fizesse justiça. Flora poucas vezes pedia alguma coisa.
Na segunda-feira da semana anterior à do lançamento, Abel viera trazer os folders relativos ao evento. Max, Tiago e Dentinho chegaram com ele.
-E aí, doutora? Tudo em cima para a noite de autógrafos?, perguntou Dentinho, numa voz fina compatível com o corpo franzino.
-Tudo. Com a ajuda de vocês, da Verônica, dos outros amigos, de todo mundo, é claro.
-Tamo levando um grupo de três, só percussão, pra cantarmos alguns sambas de raiz lá na hora, junto com o cavaco do Dentinho. Nada de hip-hop pra não assustar a galera classe média. Pode ser?, indagou Max.
-Mas claro. Isso só vai abrilhantar a festa.
-Abel, Tiago e eu talvez não possamos estar presentes. Abel deve ir a São Paulo no início da semana que vem, só retornando no sábado. Tiago e eu deveremos estar fechando os detalhes para a gravação de um programa a ser exibido na TV. Mas vamos liberar o Dentinho pra senhora. Certo?
-É uma honra mesmo. Pode acreditar. O Abel sempre fala que o Dentinho é uma fera no cavaco.
-Mas pra nós, com todo o respeito, a festa mesmo vai ser no sábado, lá na quadra, interrompeu Abel. Não vou perder. Chego de São Paulo pela manhã. Na quadra a gente vai cantar tudo o que sabe, e dizer tudo o que não se pode dizer em qualquer lugar. E pode até ser que a comunidade preste alguma homenagem, sei lá...
-Pô, cara, já tá falando demais..., protestou Tiago.
As imagens do Atlântico e do Estuário do Rio Tejo se tornam mais incríveis e belas quando vistas do alto. Tal é a sensação que se tem quando se trafega pela Serra de Cintra, um dos lugares mais famosos de Portugal, 15km a oeste de Lisboa.
Não foi difícil para Flora, apesar de uma certa apreensão por estar sozinha, escolher uma área meio deserta num daqueles bosques para testar, o mais rapidamente possível, a arma do marido. Lembrou-se da expressão de Justine Saint-Clair ao atender seu pedido para que apanhasse na parte de cima do armário embutido, em local especialmente reservado para aquele fim, a caixa de madeira envernizada que o Dr. Gustavo Henrique mantinha ali. Aquela empregada francesa com nome de dama de sociedade, cujas atitudes sóbrias, sérias e extremamente discretas sempre lhe foram intrigantes. Era evidente que Justine não sabia o que havia dentro da caixa. E certamente não lhe interessaria. Interessava-lhe apenas os dois dias na semana, terças e quintas, em que deveria estar à disposição da esposa do ex-senador, para a limpeza completa do imóvel em que ele e a mulher residiam. E no fim da semana receber a alta remuneração a que fazia jus, tendo em vista a sua comprovada competência. Formação quase que estritamente militar. Bem que ela poderia integrar a guarda suíça do Papa, Flora brincou consigo mesma, após constatar que a arma estava em perfeitas condições de uso.
À noite, de volta ao computador, embora sabendo da inutilidade desse procedimento em relação ao que procurava, não teve qualquer mensagem de Helena. E muito menos a continuação do conto de Olivia. Mas isso deveria ter um fim. De uma forma ou de outra.
O avião da companhia aérea portuguesa pousou no Aeroporto Internacional de Brasília por volta de 9h45. Não houve qualquer atraso e o vôo direto realizou-se dentro dos melhores padrões de conforto e segurança. O que em nada teria interferido com o estado emocional de Flora. Uma mulher que parecia de ferro, Gustavo costumava pensar. Ela não tem medo de nada.
Às 10h30 os dois já se achavam perfeitamente instalados no luxuoso hotel reservado pela embaixada portuguesa. Havendo previsão para que a primeira reunião de Gustavo Henrique com autoridades brasileiras acontecesse a partir das 14h. Flora aproveitava-se da ausência do marido, que descera para uma rápida sessão de sauna antes do almoço, para se certificar do conteúdo de sua bagagem. Ela sabia que se tratava de uma preocupação desnecessária, já que a imunidade diplomática impediria qualquer tipo de inspeção. Mas não custava conferir. E viu que tudo estava em seu lugar. Até a peruca alourada, de que, obviamente, não tinha se esquecido.
Um sol como nunca se viu naquela manhã, Olívia pensava. Da varanda de seu apartamento, na linha do horizonte não se via nenhum navio que parecesse parado na imensa porta de entrada do oceano. Os surfistas, que não tinham hora para surfar as grandes ondas, também não tinham chegado ainda. Apenas um brilho diferente do sol, como uma indicação do pleno significado da vida. A gaivota ia estranhamente bem afastada do grupo que liderava, naquela habitual formação triangular. Talvez por se achar especialmente cativada por aquela magnitude incomum do astro-rei. Dois dos três homens que saltaram no ponto de ônibus em frente ao seu condomínio vestiam elegantes ternos escuros, o que também não era comum. Seriam seguranças ou assaltantes? O outro não era Abel, embora estivesse vestido quase que da mesma forma que seu namorado no primeiro dia em que Olívia o recebeu em casa. Duas meninas e suas mochilas coloridas às costas. Podia ser que não tivessem tido aula.
Olívia não se sentia exatamente bem, embora a magnificência do dia a levasse a admitir o contrário. Afinal era o dia do lançamento de seu primeiro livro. Um projeto que acalentara desde os tempos de pré-vestibular.
Já tinha checado a lista de convidados. Parentes próximos, também os mais afastados, amigos mais íntimos, amigos do hospital, da associação médica onde se daria o evento, da favela Quinta Lamúria, de outras comunidades – ela viu que tinha chamado todo mundo. Mas sempre parecia que alguém estaria faltando. Verônica preferira esperar pelo dia seguinte. Alegara que se sentiria mais à vontade, além de não ter com quem deixar Franciszinha.
Abel estivera ausente esta última semana. Compromissos artísticos em São Paulo, que ele ameaçou não cumprir para poder ficar com ela. O que foi terminantemente desaconselhado por Olívia. Ela o estimulou na direção contrária. Ele tinha que ir em frente. Já era um vencedor. Menino bom, meigo, coração aberto. Chegava a ser até inocente para as coisas da vida do asfalto. É claro que em relação à favela sabia tudo. O exato lugar onde tinha que estar, ou onde não deveria ir. O que tinha de falar, ou o que não era preciso dizer.
Os livros, e alguns folders que sobraram, sobre a mesa. Avaliou a falta de entusiasmo em colocá-los no carro, se tivesse que fazê-lo agora. Melhor olhar o mar, o que quase nunca fazia. Por causa talvez dessa vida que só não é vazia porque a preenchemos com um monte de coisas inúteis. Ou fúteis. Nas quais não se incluía Abel. Mas ele só tem 25 anos!
Lá pelas seis deverei estar melhor. E esses livros irão rapidinho pra mala do carro.
Apesar da diferença entre as distâncias, o vôo para o Rio de Janeiro foi bem mais atribulado que o do dia anterior. Marcado por inúmeras trepidações, que se acentuaram com a aproximação do aeroporto. Houve momentos de certa apreensão entre alguns passageiros, com exceção, é claro, de Flora, que permanecia impassível em sua confortável poltrona de Primeira Classe, ao lado da janela, distraindo-se sempre que possível com as imagens da Cidade chamada Maravilhosa. Que teimavam em aparecer, apesar da insistência das nuvens em mantê-las escondidas.
-Se o avião está se tremendo todo desse jeito num dia bonito de sol como parece lá fora, imagina se estivesse nublado e chovendo!, comentou Gustavo.
-Então não teríamos aqui dentro a mesma monotonia que estamos vendo lá fora, foi o comentário lacônico de Flora.
Às 10h30 já estavam devidamente acomodados. Não no Copacabana Palace, como desejava Flora. Gustavo Henrique não conseguira as reservas, nem com a interferência da embaixada. Mas hospedaram-se em um hotel de qualidade pouco inferior. Não era o luxo, seria o Premium.
Finalmente Flora conseguia pisar nas areias de Copacabana. Seriam talvez 11h. Gustavo desceria depois. Precisava manter ainda alguns contactos com empresários brasileiros do setor turístico e confirmar o vôo de volta a Portugal, com horário previsto para as 22h15.
Bem, então podemos ficar por aqui, pela praia, até às cinco e meia. O lançamento do livro se dará a partir das sete horas. Chegaremos por volta de sete e meia. Se sairmos mais ou menos às oito e meia e não houver nenhum imprevisto, ou algum engarrafamento maluco, chegaremos ao aeroporto em condições de estar dentro do avião antes das 22h15. Vai ficar tudo muito apertado. Mas isto faz parte do show.
Flora elaborava o seu planejamento. Certamente com base numa postura que Gustavo se habituara a identificar como fria, calculista e autoritária. Na medida em que nunca admitia a menor alteração, por mais razoável que fosse. O que praticamente eliminava qualquer possibilidade de contestação. E ela sabia disso. Ciente de que a sua capacidade de tolerância com os atrasos dele, ao chegar tarde da noite em casa, era o que a credenciava a ter esse tipo de atitude. De que se valia para conseguir quase tudo o que queria, sem o menor sintoma de estresse. E sem rispidez ou mesmo arrogância.
Sentada na espreguiçadeira de madeira pintada nas cores verde e branco, tal como o guarda-sol com o logotipo do hotel sob o qual se protegia, Flora contemplava a serenidade momentânea das ondas do mar. Sob os olhares discretos do segurança do hotel, um rapaz alto e musculoso, a menos de 90m de onde estava. O Rio, sempre famoso por seus trombadinhas e pivetes, e também pelo que chamavam agora de “arrastão”, conforme ouvira dizer no balcão da recepção do hotel.
Mas igualmente famoso por suas belas mulheres, de todos os tipos e cores, e qui lo sa os sabores, sei lá, e as estaturas diversas, pensou. Cuja demorada apreciação na praia não seria prejudicada pelos óculos escuros que Flora limpava e manuseava com cuidado. Porque teria outra utilidade mais tarde.
Quando chegou, Gustavo Henrique a surpreendeu olhando na direção de uma luxuosa lancha de arrojada aerodinâmica, não distando mais que 200m da areia. O que seria passível de repreensão por parte do serviço de proteção praieira do Estado. Se existisse algum servidor por perto. Ocorre que, na mesma direção em que se achavam a lancha e os olhos de Flora, distando menos que 30m dela, havia uma mulata alta e sorridente cujas formas diminuíam-lhe a expressividade do biquíni amarelo. Era a mulata que Flora olhava, ficando para Gustavo a possibilidade de se sentir atraído pela imponência da embarcação.
-Até que enfim! Quase uma hora da tarde! Conseguiu conversar com todo mundo?
-Conversei, sim. Tudo acertado. Devemos receber em Lisboa uns empresários aqui do Rio dentro de quinze dias. Ah, e confirmei o vôo. Vamos sair mesmo às 22h15. E aluguei um carro também. Pode ser mais prático. A devolução é lá mesmo no aeroporto.
-Então, Gustavo, preste atenção: se chegarmos no lançamento às sete e meia, podemos estar saindo às oito e meia. Não vou precisar mais que uma hora. É só pra fazer uma surpresa à poetisa. Ela vai ficar feliz. Vou dizer que estou de passagem pelo Rio, acompanhando o marido que está a trabalho. Se quiser, você nem precisa sair do carro.
-Talvez seja melhor mesmo. Quando for oito e quinze, já vou ligando o motor. Você sabe como é o tráfego nessa cidade. Vai ser horrível se perdermos o avião.
-Você procurou saber como se chega de lá ao aeroporto?
-Sim, me inteirei de tudo. Por isso é que só cheguei agora. Há uma via expressa que se acessa facilmente do local do lançamento e pela qual se chega ao aeroporto. Há placas ao longo de toda a via. Por sinal, essa poetisa é médica também?
-Não sei. Por que?
-Você não leu que o lançamento é na Associação Médica de Puericultura?
Flora não respondeu. Por instantes ficou esperando pela inquirição de Gustavo quanto ao nome da poetisa. Mas isso não aconteceu. Viu então que não precisaria se valer da alegação de ser pseudônimo um dos dois nomes que provavelmente Gustavo não tinha lido.