Olívia de Bordeaux, Romance, Cap. IV
Naquela noite Flora fez amor com o marido e notou que ele se surpreendeu com a participação dela. Embora nada tivesse falado. Flora vibrara intensamente durante a relação, culminando com gemidos e urros abafados no momento do orgasmo. O que ele não sabia era que na verdade sua mulher tinha feito amor com Dulcinéia ou Helena, as duas louras confundindo-se em sua mente, que substituíam com perfeita adequação o corpo másculo de Gustavo Henrique.
Por conta disso, magoada consigo mesma pelo que teria sido uma demonstração de fraqueza, o fato de se submeter dessa maneira a essa forma de necessidade, necessidade de um tipo de amor que por ser proibido e profano julgava convenientemente descartado, por conta disso Flora decidiu levar pelo menos uma semana até acessar de novo a Internet. Saberia o que dizer a Helena, caso ela aparecesse.
Depois de uma semana, maior que a curiosidade pelo aparecimento ou não de Helena, Flora se viu diante do computador, no horário habitual das 21h30, inquestionavelmente atrás do que dizia o quarto capítulo do conto de Olívia.
Não se pode dizer que tenha ficado decepcionada. Mas certamente estava esperando pelo desenvolvimento da relação entre a Madre Superiora e a noviça. Como seriam os aposentos da Madre Andreatta, cuja limpeza também ficaria a cargo de Dulcinéia. Se Dulcinéia dormiria nos aposentos que teria a incumbência de manter limpos. Se poderia acaso haver, de alguma forma, a participação das irmãs Hermínia e Valéria, cuja sugestão nesse sentido parecia ter sido feita pela própria Superiora. Mas nada disso aconteceu. O capítulo versou unicamente sobre a vida no convento. As disputas entre as freiras pelas posições de comando ou pelos melhores postos dentro daquela pequena hierarquia. A arquitetura do prédio, que podia favorecer essas disputas. O mobiliário disponível e em desuso, as pratarias, os utensílios domésticos, os poucos quadros e esculturas, a biblioteca, etc., nada do que fosse do efetivo interesse de Flora. Embora ela começasse a admitir que o conto ou novela pudesse agora ter um aspecto de maior seriedade.
Julho terminou, seguindo-se agosto e setembro sem que Helena tivesse surgido ou que o quinto capítulo tivesse sido publicado. A partir do início de agosto e por quase 60 dias o improvável aconteceu. Ao invés de se distanciar da presença de Helena ou da história de Olívia, dando-se a chance de readquirir a confortável postura anterior, livrando-se do que ela considerava uma fraqueza, Flora passou a acessar todos os dias a Internet. Para verificar, primeiramente, se o quinto capítulo já aparecia na tela. E depois, se havia algum e-mail de Helena ou se ela apareceria através do Messenger.
Os insucessos nessas duas situações encheram-na progressivamente de mágoa e rancor. Porque começou a achar que a possibilidade de se livrar do que poderia ser um fantasma da adolescência, seria obtida através da conclusão da leitura do conto de Olívia. A ausência de Helena não a incomodava tanto, porque o seu aparecimento tinha sido casual. Mas o conto, não. Tratava-se de um atributo causal. Tinha a ver com a origem dos seus devaneios, traumas ou emoções sacrificadas, vencidas e devidamente enterradas. E tudo por causa dessa escritorazinha de merda. Que com o seu contozinho ridículo e pobre me fez sentir um prazer de que tinha há muito me esquecido. Flora ousava agora pensar com todas as letras, no limiar talvez do desespero. Não se deu ao trabalho de imaginar que, por algum motivo, a dona do site tivesse resolvido interromper a publicação da obra de Olívia, não cabendo, portanto, nenhuma culpa à autora. Durante os quinze dias finais de setembro, mandou repetidos e-mails ao site Anita À Noite, todos com referências desairosas a Olívia, não obtendo qualquer resposta. O que a deixou ainda mais furiosa.
Até que no final da primeira semana de outubro, Flora teve finalmente alguma referência à obra de Olívia. Tratava-se do informe completo, ratificando uma nota veiculada sem muita expressividade em fins de agosto, quanto ao lançamento, no Rio de Janeiro, do livro “Amar Como se Fosse Talvez”, da escritora Oliva Bordeaux, “contendo entre outros o conto Dulcinéia Divina, que estamos publicando neste site em capítulos individualizados. Sentimo-nos muito honrados com o convite da autora, de quem esperamos a compreensão para o caso de não estarmos presentes”. Quanta babaquice com essa tal de Olívia. E ainda por cima essa mentira deslavada, porque eles não estão publicando porra nenhuma.
O lançamento estava marcado para a penúltima semana de novembro, devendo acontecer numa sexta-feira. Constava da programação de Gustavo Henrique uma viagem à Brasília, de interesse do governo português, que vinha sendo constantemente adiada. Não seria esta uma ótima oportunidade?
Era uma quarta-feira em que Olívia estava conseguindo chegar às 18h15 em casa. Não se tratava de um dia habitualmente pesado. Tinha sido possível livrar-se dos pacientes mais cedo. Olívia podia avaliar que por volta das 19h estaria com tudo preparado para receber Abel, que fizera questão de lhe trazer pessoalmente os 120 exemplares do livro. Seria um jantarzinho rápido, desses que ficam prontos em 30 minutos. Rosbife, salada de alface, agrião, pimentão, tomate e cebola, arroz branco e batata palha. Aquela do pacotinho que vira lá no mercadinho da rua principal da favela, quando fora ver D. Ambrosina, um caso grave de enfisema pulmonar. Notou admirada a pequena papelaria ao lado do mercadinho, onde se destacavam, na diminuta vitrine na frente da loja, inúmeros envelopes de variados tamanhos, todos com os respectivos papéis coloridos em que deveriam ser feitas as dedicatórias. Comprou a batata palha, mas acabou esquecendo-se do envelope azul que escolhera, com o seu papel-cartão em tom pastel em que imaginaria escrever alguma coisa para agradecer a atenção de Abel.
Naturalmente não faltaria o vinho, cuja garrafa seria escolhida na hora, dentre as que estavam à vista na estante da sala. Cerveja tinha na geladeira.
O tráfego era intenso àquela hora. Por isso o carro deslocava-se vagarosamente pela avenida em frente à praia. Faltavam menos de 300m para a entrada do condomínio. Olivia teve tempo para se deter nas pessoas na calçada neste final de tarde. Algumas correndo, outras andando, todos provavelmente se entreolhando, mas fazendo questão de que se imaginasse o contrário. A menininha de rosto redondo, tal como o da linda Franciszinha, filha de Verônica. Descontada a cor de ouro dos cabelos da que estava agora sendo puxada com vigor na calçada pelo braço da empregada, num avental todo branco, com cara de aborrecida. Aliás, Olívia acreditava que esse era o semblante mais vulgarmente encontrado nas pessoas, velhos ou jovens, que transitavam pela avenida.
O elevador chegou logo ao sub-sólo e subiu também com rapidez ao 9º andar. Era só esquentar o arroz num fogo brando, enquanto tomava-se um banho rapidamente. Mais garantido do que usar o micro-ondas. O vestido rodado de alças no tom salmão sempre me caiu muito bem. Lembrou-se dos ombros nus, objeto dos maiores elogios de Décio Rodrigues nas mesas dos restaurantes próximos ao hospital. Uma sandália preta de salto alto estará compatível, embora ela agora temesse que o calçado pudesse sugerir alguma formalidade. Saberei ajudá-lo a quebrar essa atmosfera, embora não saiba como ele vai encarar tudo isso aqui, que deve representar muito luxo para quem certamente passou a infância num apertado barraco de duas peças num beco mal iluminado da Quinta Lamúria.
O fogo brando continuava acionado, sem o menor risco de queimar o arroz, quando Olivia se dirigiu à varanda para esperar a visita. Seus olhos se dirigiram ao navio no horizonte, que parecia não se mover, e depois aos surfistas, que com suas pranchas nas grandes ondas pareciam querer encompridar o final da tarde.
Do ônibus que parara no ponto em frente ao condomínio saltaram algumas pessoas. Seria impossível não perceber o homem da calça lilás e blusão amarelo e azul em grossas listras horizontais que se dirigia à guarita de acesso. Um indefectível boné preto, com alguma inscrição na frente (possivelmente as iniciais E.I.) na cor amarela, completava o quadro de total incompatibilidade no trajo do rapaz, que tinha grandes chances de se tratar de Abel. Olivia procurou conter o riso, sem saber exatamente se ele tinha sido provocado pelo que vira ou se era o resultado da sua carinhosa condescendência. Quando o interfone anunciou a presença de Abel, ela se dirigiu até à cozinha para apagar o fogo do arroz.
-Olá, Abel! Tudo bem? Nem pense em se desculpar, porque quinze minutos de atraso, para mim que só chego atrasada no consultório, representam pontualidade, disse a sorridente Olívia ao abrir a porta para Abel, verificando que eram efetivamente E.I. as iniciais no boné.
-Tudo jóia. Já que você me desculpou, então não falo mais nada. E já que você parece que gostou do boné, digo-lhe que ele é novinho em folha, e que é um presente para você. Vim usando-o para ver se chamava a sua atenção. Acho que deu certo.
-Ora, muito obrigada. E deu certo mesmo. Gostei do boné, até porque gosto dessas iniciais. Acho que vocês foram muito felizes com o nome Encontros Inusitados.
Ao escolher o Miolo Cuvée Giuseppe 2003 para o brinde inicial, Olivia se dava conta de que a originalidade e espontaneidade de Abel eram características difíceis de se resistir. Vinham envolvendo-a progressivamente, desde o encontro para o qual ele fora levado por Verônica. Homenageá-lo, portanto, com o oferecimento de um vinho dentre os melhores que tinha era mais do que justo. Simplesmente porque lhe dava alegria. Nunca imaginou que alguém pudesse usar um artigo para depois dá-lo de presente, desde que tivesse a certeza de que o agraciado ficaria contente. Mas não era o que as vitrines faziam? Os bonecos não eram vestidos com as roupas que deveriam agradar aos fregueses? É claro que, em se tratando de pessoas e não de bonecos, isso poderia ser de sentido duvidoso. Se estivéssemos falando de uma roupa de baixo, ou mesmo de uma blusa, uma calça, uma saia. Mas com um boné, era perfeito. Até porque, para mais um sorriso contido de Olívia, ela observou que Abel não tinha retirado a etiqueta! Provavelmente o embrulho fora desfeito ainda no ônibus.
O beijo curto de agradecimento, embora depois de algum tempo, foi ela quem deu. Para o espanto do rapaz, por ter sido beijado na boca. Quando quem se surpreende agora é Olívia, ao ver os olhos de Abel parados nos seus, com a nítida impressão de que ele fosse chorar.
-O que foi, Abel? Algo errado?
-Não..., não. É tudo... ou nada. Você..., essa casa, esse luxo, a favela. Não sei o que estou fazendo aqui, respondeu Abel, se esforçando para conter o choro.
Olívia preferiu nada dizer. Percebeu que podia estar diante de um inesperado surto emocional. E o melhor seria calar-se. Pelo menos por instantes. Daqui a pouco passa.
-Desculpe, Olívia. A gente tem recaídas. Já freqüentei ambientes parecidos. Não sei o porquê dessa bobeira.
-Nada a ver, Abel, observou Olívia, quase que num sussurro. Libere-se, fique à vontade. Você está realmente em casa. Chore, se quiser. Ou ria bastante.
-Sei disso. Obrigado. Você é sincera. E é por isso que eu não podia deixar de lhe dar meu outro presente. Embora minutos atrás eu tivesse jurado que não devia.
-Oba!, interveio Olívia, com a clara intenção de descontrair o ambiente. Agora então que você já decidiu, quero o meu presente. Você não sai daqui se não me der.
Entre sorrisos discretos, Abel tirou do bolso grande do blusão o envelope azul, contendo o nome de Olivia na frente. Só então a médica notou que a lateral do envelope se confundia com a listra azul do blusão de Abel, o que impedia que alguém imaginasse que ali havia um cartão.
Ao vê-lo abrir o envelope e retirar do seu interior o papel em tom pastel com o que ele tinha escrito, quase que quem chora é Olívia. Por ter se lembrado imediatamente da papelaria ao lado do mercadinho da batata palha. E ter constatado que o envelope que não havia comprado era o que ironicamente agora recebia. Iniciou a leitura:
A Pele da Cor do Mel
Se fores capaz de sorrir
da cor da pele da luz,
é porque alguém te seduz
naquilo que queres sentir.
E quando quiseres ouvir
teu nome que nem o andaluz,
entrega-te à mão que conduz
os passos que queres seguir.
E se quiseres insistir
no fogo que pouco produz,
te lembra, ele não se reduz
enquanto tiver de onde vir.
Se ela quiser te fugir
como o diabo da cruz,
lhe diga: “eu não faço jus
ao teu modo de decidir.
Mas se tu quiseres sentir
o tanto que em ti me supus,
basta que olhes a luz
do dia, só pra conferir”.
Um beijo mais prolongado se sucedeu à leitura. Ambos procurando conter a emoção. Talvez achando que as lágrimas pudessem macular o momento. Os versos seriam só rimas. Era o que Abel pensava. Olívia não queria saber do conteúdo. Já que o resultado palpável fora a emoção.
-Depois você vai ter que ler pra mim. E em voz alta, ordenou Olívia.
As mãos nas mãos de Abel. A pele de mel e a de chocolate.
O jantar transcorreu de forma rápida, como se os dois tivessem que sair logo ou soubessem onde queriam chegar.
O confortável sofá era o lugar. Uma espécie de abrigo depois da mesa, do peso ou leveza da refeição. No vinho a aferição do equilíbrio. Sobremesa, desnecessário. O peso da respiração. Olívia já não se importando com a alça do vestido que teimava em lhe cair pelo ombro. Desnudo, moreno da cor do mel provocante.
Abel, um recato de moça. Tudo ela tendo que precipitar. Partiram para a cama dali. O tapete do corredor vendo-a apenas de calcinha. E Abel, na porta do quarto, ainda espantado com o seu tamanho.
Acordaram às sete no dia seguinte. Olívia teria que estar no consultório às oito. Provavelmente chegaria de novo atrasada. Permitiu que Abel dirigisse seu carro até à entrada da favela. Depois seguiu para o seu consultório. Usava o boné com as iniciais E.I.