Um psicopata ao meu lado- Conto I -  Série Psicopatas


Giselle Sato






Rio de janeiro, 12 de Abril de 2010.





Luiza, querida amiga e confidente




Hoje consigo respirar aliviada, pelo menos estou tentando encarar como uma grande lição tudo que vivi nos últimos oito meses, mas nem sempre consigo me controlar. As vezes desabo e me pego chorando de ódio, de mim mesma na maioria das vezes por ter sido tão cega, mas tenho lido muito a respeito e realmente não há como duvidar da habilidade deste tipo de personalidade. 
É quase impossível descobrir a tempo e eu fui apenas mais uma entre várias outras, preciso me perdoar e aceitar que não tive culpa, eu fui a vítima e não tinha a menor noção com quem eu estava convivendo.



Tudo começou quando decidi mudar para  uma pequena cidade do interior do estado, estar próxima ao mar e distante dos congestionamentos e poluição da grande São Paulo pareciam um sonho.
Voltei para a região dos lagos no Rio de Janeiro,onde já havia passado boa parte da adolescência ,um balneário bonito e acolhedor. Aluguei uma boa casa em um condomínio bem estruturado, organizado e seguro. Meus dois cachorros não pararam de correr de um lado para o outro, tão felizes estavam com todo o espaço que tinham para brincar e rolar no gramado. Lindos e inteligentes os dálmatas eram a única companhia, longe da família e recém-separada, sem filhos ou amigos, eu precisava daquele tempo para recomeçar. Comecei a ocupar o tempo livre decorando meu novo lar, o restante do dia me dedicava às traduções, trabalho que cumpro quase em horário integral.



Em uma destas buscas por potes de plantas, conheci um homem muito simpático e solícito, falante e bem articulado, ele estava à vontade na loja e de imediato apontou as melhores flores para o clima. Logo ele se apresentou e conversando sobre amenidades, descobrimos que éramos vizinhos.
Foi uma coincidência que me agradou, tão ansiosa estava por conhecer pessoas novas e fazer amizades. Vicente ofereceu uma carona, ajudou a tirar vasos e transportar a montanha de terra, adubos e tudo o mais que eu havia comprado. Meus cachorros gostaram dele de imediato, fizeram a festa brincando de jogar bola, pulando no novo amigo. Ele contou que adorava cães e já tinha tido vários, mas no momento estava sem nenhum porque não tinha espaço na casa.
Realmente éramos mais que vizinhos, nossas casa eram coladas e apenas um muro baixo nos separava. Eu queria começar a mexer com a terra de imediato,mas ele começou a contar praticamente a vida inteira e não vi alternativa a não ser dar atenção.

Disse que era viúvo, havia sofrido um grave acidente e estava aposentado pela aeronáutica. Mostrou as cicatrizes da cirurgias e falou das dores intensas que ainda sentia. O tempo passou e senti fome, meu almoço estava pronto e dei a entender que precisava cuidar da minha vida. Ele se despediu e realmente fui resolver mil problemas. Já havia praticamente esquecido o vizinho quando ele me chamou, estava indo embora para o Rio e me deixou um papel com seus telefones, pediu para que o avisasse se alguma coisa acontecesse na casa durante sua ausência. Não vi mal algum em também fornecer meus contatos e assim nos despedimos, voltei às minhas traduções e acabei perdendo a hora. Era sempre assim, tão absorta no trabalho, eu acabava dormindo às três da manhã quase todo dia.


A semana passou rápida, no sábado Vicente ligou para saber se a casa estava bem, respondi que estava ótima e ele conversou, melhor falou e falou por quase duas horas sem parar. Acabei sabendo todos os detalhes da sua existência, e assim passei a ser sua amiga, ele não se cansava de repetir que era uma pessoa muito solitária depois do acidente e da viuvez. Vicente combinou que viria no final de semana seguinte, estávamos nos despedindo quando ele perguntou se eu me importaria de emprestar a churrasqueira para comemorar o aniversário do filho mais novo. Isto significava que eu também iria ceder o pátio e abrir minha casa para estranhos,sempre fui muito reservada mas não tive coragem de negar. Não consegui inventar qualquer desculpa após Vicente dizer que era a primeira vez que o rapaz iria reunir os amigos e familiares após a morte da mãe, aquilo amoleceu meu coração e permiti a festa.


Do churrasco com vinte convidados transitando pelo meu jardim, usando o banheiro e a cozinha da minha casa, à presença constante e insistente, foi um pulo. De repente me vi perdendo a privacidade e quando ele chegava no condomínio eu não conseguia trabalhar. Vicente pedia para entrar na minha casa usando o pretexto de brincar com meus cães ou colocar alguma roupa para secar no meu varal, com a desculpa que a casa dele não tinha quintal, ele se fazia de coitadinho, alegava que éramos amigos e não custava nada ajudar.
Com pena eu permitia que ele estendesse os tentáculos, e no final ele já estava esparramado na cadeira de praia lendo jornal, enquanto eu trabalhava a manhã inteira. Vicente se bronzeava e falava no celular, não conseguia ficar um minuto sem conversar com alguém.

Sua maior obsessão eram os quatro aparelhos, de todas as operadoras, tocando o tempo todo ele sentia-se o centro das atenções, feliz por ter tantas pessoas procurando por ele. Mas percebi logo que ele também ligava para muita gente, e a maioria devia ser bem desocupada perdendo horas, eu disse horas... comentando filmes, comida e tudo quanto é tipo de futilidade.

Se eu fingia estar dormindo ou ocupada, ele ficava no portão da minha casa gritando meu nome toda hora, até eu ser obrigada a atender com vergonha da vizinhança. E por mais que eu pedisse, explicasse, exigisse, ficasse com raiva, ele não se importava, ria como se eu estivesse brincando e nada fosse verdadeiro. A palavra limite, invasão, intromissão,pessoa inconveniente jamais tiveram qualquer significado para ele, que se achava acima de críticas.


Sinceramente eu sentia falta de Vicente nas semanas em que ele não vinha, era bom ter alguém para conversar mas eu quase nunca tinha oportunidade de contar alguma coisa, meu vizinho monopolizava qualquer diálogo e o transformava em monólogo. Ele tinha mil histórias e não ouvia nenhuma, não conseguia permanecer um segundo parado, trocava o canal da TV mil vezes, mudava as estações do rádio e nunca escutava uma música até o final. Aquilo começou a me deixar agoniada. Eu nunca vi Vicente terminar alguma coisa, ele sempre parava no meio e ia terminar o que havia esquecido.
Aos poucos ele começou a dar palpites na minha decoração,roupas e até na forma com que eu me comportava. Cortei de imediato, ele fingiu concordar mas volta e meia insistia no assunto. Persistência não era problema, Vicente insistia para que eu o acompanhasse nas compras de mercado, jantares ou simplesmente fizesse companhia. Era chato, mas ele não aceitava recusas e eu virei uma sombra, dama de companhia, praticamente uma babá de Vicente.


Eu não entedia o motivo de tanto apego, ele conhecia muita gente, falava com todos e estava sempre rodeado por conhecidos. Vicente sempre me apresentava como a irmã que nunca teve, fazia com que eu me sentisse melhor que os demais e isto me enchia de confiança. Éramos os melhores amigos, eu sempre usava meu carro quando nos deslocávamos para a cidade ou passeios, Vicente dizia que dirigir causava dores e só a viagem já era um esforço enorme e precisava descansar para voltar para o Rio.
Claro que ele pediu para usar minha garagem e eu não vi qualquer problema, sempre pedia coisas emprestadas, de frigideiras à caneca de pó de café. Parecia que tudo faltava naquela casa e isto me pareceu estranho, um aposentado ex piloto sempre esquecendo de comprar o básico era esquisito demais. Vicente dizia que era muito disperso mas que iria repor tudo, que eu não me incomodasse que ele iria devolver tudo. Com isto foi um colchonete, roupas de cama para suas visitas inesperadas, panelas grandes, jogo de facas para churrasco e outras coisas. Até a faxineira de Vicente batia lá em casa. Acabei reclamando que não iria emprestar mais nada,ele apenas riu sem dar qualquer importância. E é claro que nunca devolveu nada, ele esquecia dos empréstimos e tudo passava a ser parte da casa dele.


Meu novo amigo estava sempre me chamando e querendo conversar, passou a me telefonar sem parar a qualquer hora do dia. E da noite... Quando descobriu que eu trabalhava até tarde, suas ligações aconteciam às duas horas da manhã, três, quatro e se eu estivesse dormindo, perdia o sono após horas de papo furado. Vicente sofria de insônia, meu trabalho começou a perder a qualidade, as editoras reenviavam páginas e páginas para serem refeitas e algumas simplesmente me cortaram do quadro de tradutores.
Meus vencimentos caíram e decidi falar com Vicente para maneirar porque estava me prejudicando. Após explicar tudo e pedir desculpas, senti que ele foi embora da minha casa aborrecido, passou o restante do dia sem falar comigo e no dia seguinte retornou para o Rio sem se despedir. Fiquei chateada mas era preciso, pensei que finalmente ele havia entendido e imaginei que iria ter um pouco de paz.


Pura ilusão! No meio daquele mesma semana Vicente voltou a ligar e recomeçou a rotina como se nada tivesse acontecido, quando voltou para o condomínio não parou de me chamar um só minuto e meu sossego foi por ralo abaixo. Fiz a linha dura e pedi que parasse de gritar meu nome todo minuto, falei que os vizinhos iriam reclamar e eu estava me sentindo incomodada. Ele achou graça e respondeu que eu não poderia estar falando sério, afinal éramos os melhores amigos.
Vicente continuou me chamando o resto do tempo em que ficou em casa, nem assistir um filme eu conseguia assistir e comecei a ficar com medo, que tudo aquilo fosse proposital, ele estava com raiva e se vingando.


Por qualquer motivo fútil ele berrava meu nome e eu tinha que correr para responder, os outros vizinhos já haviam começado a reclamar e eu não queria mais problemas. Finalmente me dei conta que havia me transformado em uma escrava, o brinquedo que aquele homem egocêntrico e ardiloso se recusava a libertar.


Vicente era um estorvo e eu não conseguia controlar minha revolta, minha existência havia se transformado em um pesadelo sem fim mas eu ainda tinha esperança de contornar a situação sem precisar me mudar do condomínio.
Algumas vezes Vicente aparecia com alguma namorada, mesmo assim ele fazia questão de me apresentar, normalmente eram moças simpáticas que ele tratava com maior carinho, chamando de amor pra lá e pra cá. Depois me perturbava até eu me juntar a eles, contava mil histórias e a maioria eram tão loucas que não sei como elas acreditavam. Muitas vezes, no mesmo dia em que iam embora, Vicente ligava para contar os absurdos que havia inventado para convencer a garota a passar o final de semana com ele.
Para isso, Vicente prometia mundos e fundos, namoro sério com direito até a visita aos pais da namorada ou qualquer outra exigência que ela fizesse. Depois da viagem, ele simplesmente não atendia mais as ligações da nova paixão, sumia e partia para a próxima. Vicente brincava com as pessoas e eu cada vez mais me sentia acuada, ele passou a se vangloriar das conquistas e a trazer mais e mais mulheres.
A maioria simples, mas também haviam moças com excelente aparência, exibindo carro do ano, joias, roupas de grife, ostentando um bom poder aquisitivo. No geral ele tinha lábia e sabia convencer qualquer uma, independente de idade, cor ou tipo físico. Em comum todas agiam como se fossem namoradas, recebiam tratamento afetuoso e eram apresentadas a todos na cidade e aos amigos dele como a mulher maravilhosa e atual razão da sua existência. Isto insuflava o ego de qualquer uma, e o que todos comentavam era que elas sempre pagavam as contas nos restaurantes e que ele recebia muitos presentes das namoradas.

Vicente fazia questão de mostrar que era mais esperto, que sabia levar vantagens em tudo, era comum quando havia uma roda de homens bebendo em algum bar, ele ser o centro das atenções contando suas bravatas, comentando intimidades de uns e outros. Não me pergunte como, mas muitas pessoas adotavam Vicente como melhor amigo e confidente, ele é claro, usava e abusava. Sempre almoçava na casa de um, jantava na de outro, bebia na conta de um terceiro e como de costume, sempre um caso semelhante já tinha acontecido com ele. As pessoas se identificavam com o parceiro de infortúnio, seja com problemas emocionais, financeiros, familiares,de saúde... Vicente tinha tudo, sofria de tudo, sabia de tudo.



Aquela criatura era mais que um aproveitador, era uma pessoa desprovida de qualquer conceito moral, finalmente comecei a enxergar naquele homem o perfil que já havia lido em tantos livros e visto em filmes onde a vítima sempre acabava da pior forma. Fiquei apavorada.
Não adiantou falar com as pessoas, até tentei e me aconselharam a procurar um terapeuta, conversei com um primo policial que me desencorajou a prestar queixa, Vicente não havia feito qualquer ameaça e soava apenas como uma vizinha incomodada. Legalmente, moralmente e tudo o mais... eu me senti naquele momento, completamente desamparada e inútil.


Aos poucos fui juntando pedacinhos das histórias, algumas pessoas que ele havia me apresentado como amigos dele, não passavam de conhecidos de pouquíssimo tempo, gente como eu, que ele havia feito amizade recentemente. Comecei a vasculhar os sites de relacionamentos buscando o perfil de Vicente, deu trabalho porque ele tinha vários, mas em um deles achei um conhecido da cidade e pareceu verdadeiro. Para meu espanto completo, descobri que a falecida esposa estava viva e muito bem casada com outro, sorridente nas fotos com os filhos. Ele havia adicionado a mulher, os supostos órfãos e algumas pessoas comuns, que deviam saber parte da verdadeira história, comecei a lembrar que estas pessoas sempre riam muito quando ele começava a falar, com certeza todos eram coniventes.


Primeiro veio uma raiva cega, por ter emprestado minha casa para um bando de adolescentes bêbados farrearem todo um final de semana, depois me questionei que tipo de filho pode aceitar um pai mentiroso e sem caráter. A resposta foi tão óbvia que imediatamente liguei para a imobiliária e perguntei se havia alguma casa para alugar, mas era alta temporada e eu teria que esperar. Além do mais iria pagar uma multa pela quebra do contrato, o que não me preocupava nem um pouco, eu queria sair daquele lugar imediatamente. Era urgente. Toda a família fazia parte ou apoiava a conduta de Vicente, eles estavam sempre por lá e eu não os queria mais como vizinhos.


No meio deste turbilhão, o condomínio organizou um luau com música ao vivo na área de lazer em frente ao lago artificial. Bem em frente à minha casa, não tinha como não ir, coloquei um vestido leve e para minha alegria Vicente estava com uma namorada e consegui ficar sozinha bebendo um vinho branco gelado e ouvindo o cantor. A noite estava linda, tudo ótimo quando meu vizinho chegou com sua nova acompanhante e um homem, como sempre me apresentou como a melhor amiga e sentaram na minha mesa.


Para meu espanto, Henrique, o amigo em questão, pediu licença e perguntou se eu me incomodaria de dividir o espaço. Vicente fez o maior estardalhaço, debochou e riu chamando-o de metido a fino e outras besteiras. Depois desta, passei a conversar com Henrique e logo notamos que tínhamos muito em comum, inclusive ele não via Vicente há mais de um ano e estranhou o convite para a festa, mesmo assim decidiu arriscar a visita.
Depois eu soube que na verdade, Henrique havia vindo me conhecer, Vicente tinha passado duas semanas inteiras perturbando para me apresentar . Primeiro porque Henrique é louco por cachorros, plantas, natureza, ecologia e literatura. Depois ele também tinha deixado a capital, fechado uma grande loja de móveis para viver da carpintaria artesanal. Logo tornou-se muito bem sucedido na região, criava móveis exclusivos e estava muito bem vivendo longe do atropelo. Henrique estava solteiro, procurando uma namorada que gostasse de uma vida calma e tranquila, ele vivia no balneário vizinho e era amigo de Vicente desde a juventude, haviam estudado na mesma escola, em Botafogo. Ele era muito diferente de Vicente, apesar de ser uma pessoa aparentemente simples,havia viajado bastante, era culto, muito calmo e educado. Gostamos um do outro, de imediato, notei que Vicente pareceu muito satisfeito na ocasião.


Marcamos um jantar para o final de semana seguinte, mas seguindo minha intuição, combinamos que eu iria até a cidade dele, assim evitaríamos a chateação de Vicente. E assim fizemos, jantares, passeios pelos arredores, caminhadas, e fomos nos encontramos outras vezes. Vicente não gostou quando eu comecei me ausentar todo final de semana, reclamou que tinha perdido a companhia e que eu estava muito misteriosa. Quando me perguntava, eu dava mil desculpas e não dizia para onde estava indo.
Ele fazia piadinhas, dizia que sabia que eu estava com Henrique e que achava uma sujeira estarmos excluindo ele, que havia nos apresentado. Na opinião de Vicente, era para sairmos em três para festas, bares ou ele ir comigo para a casa do amigo. Ele não entendia que um casal que acabou de se conhecer quer privacidade, ou melhor, ele não queria entender porque quando ele trazia as namoradas sempre se isolava.
Coincidiu com uma fase em que ele não estava conseguindo companhia, então ele ligava o tempo todo em que eu estava com Henrique, para falar bobagens e assuntos sem a menor importância. Nosso celular não parava e até o residencial tocava a todo instante, era uma perturbação sem fim e isto começou a virar uma bola de neve. Não conseguíamos assistir um filme, comer em paz, namorar, ficar um minuto em silencio que alguma coisa soava e era Vicente.
Combinamos de desligar o telefone quando estivéssemos juntos, isto deixou nosso amigo furioso e ele parou de nos procurar.


Comecei a notar que algumas vezes, meus cães não estavam bem, sempre ocorria após meu retorno e comecei a desconfiar que meu vizinho dava restos de comida para eles. Como não estavam habituados, fatalmente passavam mal e comecei a gastar um bom dinheiro no veterinário. Foi quando Henrique sugeriu que eu fosse passar o dia com ele durante a semana, marcamos quinta-feira ou quarta, porque normalmente o vizinho não passava a semana no condomínio. Mas ele percebeu a mudança e anunciou que iria mudar definitivamente, ou seja, Rio de Janeiro só se fosse estritamente necessário.


A coisa começou a ficar difícil, apesar de todo entendimento entre eu e Henrique, as ligações constantes do vizinho, convidando o '' amigo'' para baladas, e falando sobre mim estavam cansando Henrique. Vicente dava a entender que eu estava sempre pedindo para ele falar bem e me encher de qualidades. Que eu era chata e ia grudar em Henrique, coisas que assustam qualquer homem no começo de um namoro. Quando sentiu que não estava dando certo, resolveu partir para outro esquema e desta vez ele acertou: o ciúme é destrutivo e gera desconfianças.
Henrique passou a questionar onde eu ia, com quem eu falava, que tipo de amizade eu tinha com pessoas da cidade, a maioria conhecidos sem importância mas pela riqueza de detalhes, era claro que Vicente estava me seguindo.


Certo dia cheguei à casa de Henrique e ele estava muito contrariado,nem precisei perguntar porque ele foi logo falando que soube que eu tinha ido almoçar com o dono de uma loja e que não achava certo. Alegou que se ele não podia frequentar minha casa para evitar Vicente, eu agir como se fosse livre na opinião dele não era uma conduta correta. Agindo por impulso, Henrique ligou na minha frente para Vicente e disse que estávamos juntos, que eu ficava na casa dele e que ele não ia para a minha casa porque Vicente não nos deixaria em paz. Depois pediu para que ele parasse de ficar ligando para contar tudo que eu fazia, que ele confiava em mim e outras coisas que pela primeira vez, emudeceram Vicente. Por algum tempo respiramos aliviados.


Vicente começou a promover churrascos de quinta a domingo, sem hora para acabar e com o som tocando tudo: de axé a funk. A casa colada era invadida pela fumaça e os cachorros latiam sem parar, o condomínio reclamava mas Vicente não dava a mínima e ainda debochava. Mandava chamar a polícia, mas ele sabia os horários em que era permitido dar festas e por isso nunca teve problemas. Decidido a perturbar ainda mais as pessoas, Vicente convidava pessoas sem a menor compostura e lá pelas tantas o escândalo começava. Gritaria e palavrões era normal nestas festinhas, gente de roupa de banho desfilando até de madrugada e muita bebida também era fato comum.


Com medo de acontecer alguma coisa aos meus cachorros, visitava Henrique cada vez menos, e a possibilidade dele vir para minha casa com as festas de Vicente eram nenhuma. Apesar de tudo, Henrique era amigo de Vicente, ele não gostava do comportamento dele mas não brigaria por minha causa e isto eu soube desde o início. Eles se conheciam há anos e por este motivo eu evitava falar mal do vizinho, apenas comentava sobre o que acontecia mas não emitia opinião. Então Vicente resolveu dar uma festa e reunir todos os amigos antigos, do tempo em que ele e Henrique estudaram juntos.
Desta forma ele começou a telefonar diariamente para meu namorado, para o fixo, celular, rádio, insistentemente falando sobre a tal festa sem parar e exigindo a presença de Henrique. Era um pretexto excelente para manter contato.
Vicente deixou claro que a culpa pela ausência de Henrique seria minha , porque eu estava de implicância e não queria a amizade deles. Aquilo foi deixando Henrique muito irritado, ele é uma pessoa reservada, metódico e que não suportava ser incomodado, vive praticamente trabalhando na oficina na própria casa e nem usa computador. Aliás, ele é uma das raras pessoas que não se deixou seduzir pelo universo virtual, a opção de ter uma vida simples e natural foi afastando Henrique das velhas amizades urbanas.
Diante das desculpas do amigo, da relutância e finalmente na recusa formal de ir ao encontro, Vicente ameaçou ir com os rapazes até lá, se ele não comparecesse e só de pensar nesta possibilidade, de ter a casa invadida por pessoas que ele não tinha mais qualquer contato, deixou Henrique em pânico.


A última vez que ele me ligou foi para dizer que estava indo passar algumas semanas na casa da irmã, em Cuiabá e quando voltasse me procuraria.
Na semana da grande festa de Vicente, não vi qualquer movimentação, comecei a ficar desconfiada mas a hipótese era cruel demais para ser verdade.
Finalmente na véspera, tive a confirmação, nem mesas, som, decoração ou qualquer coisa que lembrasse que haveria um evento haviam sido entregue, não haveria festa alguma.
Naquele final de semana Vicente não subiu, a casa ficou fechada, tudo não passou de uma grande mentira que ele usou para perturbar Henrique .
Ele jogou com a sorte, bastaria uma ligação para um amigo em comum e meu namorado descobriria, mas quando ele disse que todos iriam buscar Henrique à força, praticamente anulou esta possibilidade, se os colegas estavam de acordo com Vicente, de que adiantaria pedir ajuda para algum deles...seria perda de tempo, acho que ele pensou assim e preferiu fugir.



Passei aqueles dias com muita raiva do vizinho, se pudesse falaria tudo que estava sentindo, principalmente porque sabia que havia perdido Henrique.
E no meio da semana Vicente  apareceu e veio me chamar como se nada tivesse acontecido, chegou todo sorridente e perguntou até se eu não gostaria de ir com ele até um barzinho próximo.
Fiquei muito assustada com tamanha frieza, respondi  para que ele nunca mais me procurasse, ele riu e disse que não sabia porque eu estava tão zangada, que tudo iria voltar a ser como antes. Começou a falar mal de Henrique, que ele era um fraco, que eu merecia coisa melhor, e que tinha muitos amigos para me apresentar ali na cidade mesmo.
Fiquei muda, sem saber nem por onde começar, ele estava confirmando minhas suspeitas que havia premeditado toda aquela confusão para terminar meu relacionamento porque queria companhia. Olhei  algum tempo aquele rosto cínico, depois fechei a janela sem falar uma única palavra, ele não merecia nem um xingamento.


Naquela noite ele chamou os amigos e fez festa até tarde,não consegui dormir a noite inteira. Finalmente a polícia veio mais uma vez e ouvi quando ele gritou que ia embora daquela porcaria de condomínio de velhos, que ali não tinha mais nada, só gente falsa e mentirosa.
Não quis ficar contente antes do tempo, então preferi não me empolgar, aguardei até o dia seguinte  e liguei para a imobiliária. Perguntei  se era realmente verdade, e com a confirmação, me senti bem mais calma, ele iria embora e eu poderia ter minha paz de volta. Foram 4 dias em que ele manteve a porta da casa aberta para quem quisesse entrar, a churrasqueira queimou muito carvão e todo tipo de carne, um isopor imenso ficou no portão e elesnão paravam de  abastecer  de gelo e cerveja. Vicente e seus convidados ao som de todo tipo de música fizeram um inferno, era polícia todo dia, mas como ele também conhecia todos eles, tudo acabava em pizza, melhor... churrasco.



Vicente não saiu de imediato, ele ainda podia ficar mais três meses e decidiu que iria aproveitar até o final. Só que agora ele estava com raiva, parou de cumprimentar algumas pessoas, outras ele falava mal abertamente, sei que espalhou horrores sobre mim, o que me rendeu várias caras feias nos meses seguintes.
Quando parou de dar festinhas, ele passou a emprestar a casa para pessoas estranhas, parecia que ele convidava qualquer um para passar o final de semana na casa dele. Era notório que ele escolhia a dedo pessoas bem humildes, não se sabe de onde saíam tantas crianças, mas eram cinco, seis, gritando e correndo sem parar pelo play e pisoteando os canteiros.
Começou  um entra e sai de gente de todo tipo, fazendo churrasco na varanda, jogando latinhas vazias até no meu gramado, usando a área de lazer sem cerimônia, convidados podem usar a piscina e sauna. A turma  fazia  tudo que tinha direito e mais um pouco. As pessoas ficavam horrorizadas mas não podiam expulsar, já que eles não estavam perturbando ninguem, apenas se divertindo e tudo dentro dos conformes.
 
Sabendo  que era proibido sublocar, e podiam usar este argumento contra ele, meu vizinho  sempre aparecia no final da tarde de domingo. Vinha, fazia presença e ia embora com os convidados. Era óbvio que estava apenas atormentando a vizinhança, a provocação vinha em forma das músicas que ele escolhia para tocar.
Presos ao contrato os proprietários nada podiam fazer já que ele era bem esperto e não deixava o menor furo.

Ele tinha prazer em ser desta forma, e em pouco tempo descobrimos que para cada pessoa do condomínio ele contou uma historia diferente. Era empresário, dono de uma locadora, aviador, casado, viúvo, solteiro, com filhos, sem filhos, morava na Barra, na Penha, no Recreio...Ninguém sabia nada a respeito dele, um completo desconhecido que havia frequentado a casa de todos como amigo e parceiro de jogos, festas e comemorações íntimas. Ele enganou a todos, até dinheiro emprestado pegou com vários, fez negócios e por muito pouco não casou com uma viúva cheia da grana, com o aval de todos os amigos do condomínio.

Nunca soube quem foi Vicente na realidade, nem quis saber porque quando o caminhão da mudança encostou na frente daquela casa foi o dia em que respirei aliviada. Pensei que finalmente iria ter minha vida de volta, mas nada disso ocorreu. Não tornei a ver Henrique, e para minha tristeza Vicente apenas mudou de endereço, e minha única opção foi buscar outro lugar e recomeçar a vida. Desta vez com muita cautela, analisando friamente as pessoas que se aproximam, talvez até desconfiada demais, mas prefiro percar pelo excesso.




Perdoe o desabafo,
                                 
                                                Vanessa






Nota: Um psicopata ao meu lado é uma coletânea de contos inspirados em cartas recebidas no decorrer de dois anos, desde a apresentação de alguns trabalhos sobre o tema.
Até onde vai a ficção e qual o limite da verdade, só o leitor poderá dar a resposta, mas posso afirmar que alguns relatos soaram tão reais que poderiam ter saído da imaginação de um escritor de terror.

Giselle Sato
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 12/07/2011
Reeditado em 31/12/2011
Código do texto: T3091025
Classificação de conteúdo: seguro
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