A Imensidão Branca
A Imensidão Branca
por Pedro Moreno
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O relato que passo neste diário já carcomido pelas intempéries marítimas pode lhe parecer fantasioso ou fruto de uma mente que já andou por tempo demais debaixo do sol não conseguindo mais ter alguma faculdade do que faz. Advirto porém que esta é a realidade crua de eventos dos quais fui tragado sem nem ao menos poder me antecipar ou mesmo contorná-los.
Meu nome é William, apesar de parecer britânico, vim mesmo destas terras tupiniquins onde sobra calor e frutas frescas o ano inteiro. O Brasil é grande como não há igual e diverso como poucos países conseguem ser. Os encantos da sedução residem nos olhos das mulatas de meu estado, ou nos olhos claros europeus mais ao sul. A brasilidade é algo bonito de se ver, apreciar e viver. Não sei qual bicho se instalou em minha mente que roubou-me o dom do discernimento e puxou-me para fora, como se conhecer o mundo seria algo fabuloso.
Não minto que realmente o estrangeiro sempre fascina o brasileiro. Tratamos melhor nossos imigrante do que nossos crioulos. Puristas dizem que apenas os indígenas então poderiam ser considerados o legítimo brasileiro sob essa ótica, porém concordo que não precisamos tratar melhor nossa gente, e sim por igual, afinal esses já tem o privilégio único de ter nascido brasileiros.
Não me ufano deste país dizendo que não há mazelas, pois nele há sim! Porém qual lugar no mundo não tem? Corrupção, intolerância e fome só para começar a lista. Muitos vícios que também permeiam as sociedades pelo mundo afora.
Como bem relatava sobre o fato de viajar, acabei por conhecer diversos povos e culturas que me agradaram muito ou pouco. Mas nessas linhas escritas que porventura você encontrou, conto sobre minha última viagem, no extremo norte, além da Sibéria, embarquei em um navio da época da URSS que me levaria para conhecer algo não antes possível em minha mente. Segundo o capitão, Vladimir Kuzaks, se contasse de antemão o que me esperava, eu o tomaria por mentiroso e sequer iria.
Paguei caro.
Confesso que me aposentei por um deslize do sistema previdenciário brasileiro, passei a ganhar a mesma quantia de quando trabalhava e podia ficar em casa. Como o dinheiro nunca me fez falta e sequer me casei, não sobrou outra alternativa a não ser viajar. Vivi de forma que muitos homens implorariam para viver e tenham certeza que me beneficio muito bem dela.
Porém as noites de mulheres quentes aos poucos deixaram de ser novidade, passei a correr o mundo atrás de algo que surtisse alguma emoção em meus nervos. Participei de caçadas à animais selvagens, rituais de tribos indígenas, exploração a lugares ditos amaldiçoados e toda sorte de maluquices que poderia o dinheiro pagar.
Hoje estou no que se pode chamar de final do mundo. Parece que a imensidão branca parece querer dominar minha alma conforme o navio quebra o gelo abrindo espaço para nossa passagem. O capitão olha o GPS para se orientar, passados alguns nós o aparelho falha e recorremos a bússola. Em poucas horas, essa também começa a rodar sem sentido indicando que já não tem serventia.
As grandes placas de gelo nos rodeiam dificultando a passagem. Esse trecho terá que ser a pé. O casaco forrado impede que o frio penetre em minha pele, mas as áreas descobertas sofrem. Uma fina camada de neve pousa sobre minhas botas que se pregam no chão dando certa sustentabilidade.
Caminhamos por alguns quilômetros. O frio parece querer nos puxar para trás, porém continuamos firmes na trajetória. Um conjunto de alguma construção começa a aparecer, no começo indefinidas, depois vejo que são alguns pedaços de madeiras, ou ossos, com peles de animais estendidas formando tendas. O capitão aponta e estaca no lugar, acho que devo prosseguir sozinho. Caminho vacilante. Um vento maligno me derruba e caio de cara sobre o gelo, olho para trás e vejo que os marujos sequer perceberam. Deveria não ter dado o dinheiro integralmente para eles. Ergo de meu lugar e continuo com passadas pesadas em direção às tendas. Já posso enxergar pessoas. Parecem atarracados e baixos, diria que perfeitos para a situação na qual se encontram. Vestem peles de animais não tão grossas, parecendo improvável o fato de conseguirem sobreviver no gelo.
Conforme avanço, uma sombra no horizonte parece se mover desajeitadamente, no principio acreditei ser uma pequena embarcação marítima que tentava a todo custo passar, porém não tinha o barulho típico desses navios. Obviamente era terrestre, mas algo muito maior que um carro, sua altura era de uma caminhão, porém também não era possível.
Um abalo sísmico acompanhava sua evolução. Senti minhas pernas se estremecerem com a aproximação e nem sabia exato que era. Algum medo primitivo tomava conta de meu corpo. Tão logo percebi que era uma criatura que andava em minha direção, minhas pernas por fim amoleceram e caí. A criatura que se agigantava em minha frente não era possível existir, um verdadeiro pedaço do paleolítico se erguia em minha frente. Um mamute. Com seu corpanzil de pelos espessos e acastanhados com dois dentes alvos projetados de sua boca formando uma curvatura monstruosa. Os olhos vermelhos não me fitavam, provavelmente a fera sequer me vira, continuava apenas com seu andar pesado seguindo um rumo que só fazia sentido para si mesmo.
Uma movimentação vindo das tendas me chamou a atenção. Um grupo de homens armados com lanças improvisadas passou a correr em direção ao animal que nada notou. Conforme ganhavam terreno estremeci ao ver o semblante deles. Não eram homens, e sim ancestrais nossos não evoluídos, sua figura eu já conhecia dos livros de história. De traços simiescos e corpo robusto, com testas volumosas e queixo protuberante. Nos braços despidos uma grossa camada de pelos e do alto de suas cabeças uma cabeleira enorme ora castanha ora loira. O Homem-de-neandertal. Com suas lanças improvisadas eles atacam o mamute fazendo-o agir de maneira descontrolada. Conforme eu arfava de medo e excitação uma nuvem grossa de vapor se desprendia de minha boca, o sangue do animal tingia o gelo em tons de magenta. Era disso que o capitão falava. Algo impossível de eu ter visto antes, inimaginável sua existência. Na minha frente um grupo de neandertais e um mamute se digladiam pela sobrevivência.
Uma estocada na cabeça do animal e este cai ruidosamente no chão, queria eu ter agilidade daqueles homens, pois se tivesse conseguiria fugir do pesado marfim que me acertou as costelas. Fico preso, no gelo, sem poder sentir minhas pernas. Os neandertais começam a puxar o animal em direção às suas tendas, um deles me observa com curiosidade, porém com medo eu o afasto com um grito, o mais alto deles precipita com uma lança em mãos pronto para me furar, mas outro o segura com a expressão que não seria isso correto. Não consigo me mover e a sombra dos homens puxando o mamute já é distante. Do outro lado não consigo ver o capitão, os marujos ou o navio. Estou só, com uma caneta e este diário, tentando me lembrar como era o gosto do sol a tocar minha pele, o cheiro perfumado da gente da minha terra, o calor que é estar no Brasil.