Incesto de Morte

Uma macabra intenção povoa a cabeça, pássaros voam no escuro, temendo pelo que se esconde atrás das sombras. Um gemido vaza o oco do nada e o palpitar do coração aumenta a sudorese fria. Atrás da porta, a enxada que foi usada no enterro de Lara com um segredo que jamais será revelado. A lua minguante enganchada no céu não permite que a luz se expanda e os trieieros onde a moça passou a última vez com o pote d’agua da cacimba conserva a lembrança que não consegue se libertar de nenhum pensamento. Um tempo paralisado com as imagens brutais da cena derradeira, e os gritos ensurdecedores da amada que aquele homem queria para si, com todas as forças do seu desejo, ainda que essa mulher fosse à filha mais jovem dos seus próprios pais. Lara fizera opção de ficar com os pais no bucólico lugarejo de São Domingos, a poucos quilômetros de Capitão Enéas. As irmãs Maria de Fátima e Eva vieram para Montes Claros completar os estudos iniciados na antiga Burarama. Sílvio, o irmão mais velho, contraiu matrimônio com a filha de Chico Pança, lá do Brejo das Almas, e foi morar em São Paulo. Beto Pataca ficara por ali mesmo, por comodismo, ao contrário de Lara que queria cuidar dos pais. Não tinha muitos sonhos de crescer intelecto ou financeiramente. Porém, sua fama de domador de burro bravo lhe rendia alguns trocados para o sustento de seu vício no baralho e medalhas para dependurar na parede fumaçada, era de jogar todas as noites na venda de Cleber do Cabo Adão, marido da professora Fernanda, atleticano convicto que vendera há alguns anos a vaca de estimação e de leite para pagar uma promessa se o time alvinegro conseguisse sair da segunda divisão.Com sorte sobrou um troco da promessa e Cleber tatuou um escudo do time no braço. Mas esse mar de nenhum acontecimento importante viria sair da sua rotina em breve, no dia 10 de dezembro de 2007. Um plantão do Jornal Nacional no meio da tarde chocou os moradores ali de São Domingos, infelizmente desta forma acabaria com toda a felicidade da vida de Lara. A notícia de que foi decretada situação de emergência no Distrito de Caraíbas, zona rural de Itacambira, onde um terremoto acabara de matar uma menina de cinco anos. Seus avós e mais uma centena de pessoas estavam feridas e desabrigadas. O tremor foi de 4,9 graus na escala Richter."Destino inconseqüente e traiçoeiro sempre com suas leis, que não respeitam momento algum, cobra á sua hora como se nós humanos nos déssemos o prazer de resguardar a nossa hora, de fazer conforme nossa vontade". O repórter Alécio Cunha, do Hoje em Dia, escreveu este trecho dentro da sua crônica do destino, este que não poupou dona Senhorinha e seu Anisteu de Zé Butão, que há tempos sonhavam em visitar alguns parentes na região de Caraíbas. Conseguiram juntar as economias da aposentadoria e de lá só conseguiram voltar com os corpos esmagados para dormirem eternamente no pequeno cemitério do Sapé. Após o acontecido, a tristeza se abateu sobre o lugar e o verde da relva que circundava o rio secou, as águas foram secando. O gado morria amuado na cerca e os urubus já faziam ninhos nas árvores que se sustentaram de pé. Muitos moradores fugiam assombrados para localidades vizinhas e até para São João da Ponte, com medo de alguma coisa sombria que pairava naquele ar. Lara insistia em cultuar o luto permanente e jurou a memória dos pais que cuidaria do irmão até que ele se arranjasse com uma companheira. Ele por sua vez não domava mais burros nem jogava os baralhos de todas as noites. Perambulava embriagado, chorando a morte dos pais. Lara carinhosamente lhe dava afagos de cuidadora. Ainda que sofrendo a mesma dor, era o baluarte, era o refúgio ao irmão em nome dos defuntos. Numa noite de profundas lembranças os dois dormiram agarradinhos, ela o abraçando com ternura de irmã, e ele sedento pela mulher que a muito despertara na libido. Começou então no dia seguinte, criar situações vexatórias de ciúme explícito que a ingenuidade dela julgava como normal. A missa dos domingos Lara já não podia mais freqüentar, tampouco ia comprar mantimentos na carona com Diney do carro de boi que fazia suas viagens para Caçarema e adjacências. As discussões se tornaram freqüentes, Beto cada dia mais alucinado de paixão pela irmã, e as ameaças de morte a quem se aproximasse dela eram constantes. No dia 13 de junho, os dois prepararam uma bonita fogueira para continuar a tradição de celebrar o dia de Santo Antônio, Lara ainda fazia uma leitura simplista e platônica daquele sentimento possessivo do irmão, acreditando ser reflexo da falta dos pais. O cair tristonho daquela tarde na encosta da Serra e a saudade desprenderam as lágrimas presas nos olhos de Lara, que de pé fitava as cores quentes se misturando ao frio da estação. Beto abraçou-a lentamente e a beijou nos lábios. Lara se arrepiou e sentiu que um calor diferente tomava conta do seu corpo. Não teve coragem de prosseguir, mas também não pediu que parasse. O frio soprou um vento cantante nos ouvidos incestuosos que se engoliam naquela explosão. O tempo parou... Voltando a contar o relógio quando a fogueira do santo casamenteiro era apenas um braseiro alaranjado simbolizando um fogo que se acaba após a queima da energia. A falta que faziam os pais e a solidão ora vista por ali não afastaram alguns amigos que conservavam o mesmo hábito da visita matinal do dia 14, para comer um naco do que passou a noite assando no braseiro, já que muita gente não dorme visitando varias casas, que, segundo os causos dali, essas andanças traz sorte para quem precisa arranjar namorada. Um desses amigos que foram descritos no processo foi involuntariamente o pivô da tragédia: Luciano de Maria Tubi, que consta ser irmão de Dão Polaco, chegou embriagado com sua pose de galã e o chapelão de faroeste, montado no cavalo cinza com aparência do Rocinante de Dom Quixote. Lara varria a cinza que o vento soprou do borralho. O chegante desde a época de vida dos pais a chamava de namorada e elogiava sua beleza cor de açucena. Ela sorriu acanhada e quase desfalece quando a figura antropofágica de Beto surge na soleira da porta.Lara sai a passos largos com a vassoura rumo aos fundos da casa, temendo que o pior acontecesse. Os urubus já estavam por ali naquela hora, como se agourasse alguma desgraça, voaram e bem acima fizeram vôos circulares indicando que algo estava acontecendo e assistiram à decapitação de Luciano com o machado que o velho Anisteu usava em seus tempos de lenhador. Lara temerosa do seu destino, saiu em disparada gritando por socorro, mas a fúria do irmão possesso foi mais rápida e com um tiro de cartucheira de dois canos, fez com que ela caísse sangrando e sem vida. No final da tarde no ermo daquele mundo sem lei o corpo de Beto balançava dependurado nas carcaças de um velho cajueiro, com uma corda no pescoço e uma língua roxa saindo fora da boca. Chega noite com um canto medonho de uma ventania gelada oriunda do céu escuro que goteja solidão e tristeza.