Café, Uísque, e uma dose de absinto
Eram duas da manhã e eu não conseguia dormir. O calor no meu apartamento estava insuportável e mesmo estando deitado em minha cama de cuecas, eu sentia que estava derretendo. Eu virava de um lado para o outro, chutava os lençóis para fora da cama, virava o travesseiro, e nada. O sono não vinha. Eu fiquei deitado de barriga para cima olhando para o teto, com milhares de pensamentos flutuando sobre os ares de minha mente, mas mesmo assim, nada. Então, eu me levantei, abri a janela e fiquei alguns minutos encarando a lua cheia no céu. Fiquei pensando sobre as milhares de histórias que já aconteceram desde o começo dos tempos, em noites calorosas. Pessoas se amaram, odiaram, e se mataram em uma noite como essa. Bom, talvez o calor os tenham enlouquecido, porque eu sabia que se ficasse mais um momento em meu apartamento, eu iria ficar louco. Fechei a janela, fui ao banheiro, olhei para meu reflexo vermelho e suado refletido no espelho, lavei o rosto, me vesti com as roupas do dia anterior que estavam penduradas na porta e sai de casa. Quando sai do prédio senti uma brisa leve soprando no meu rosto, talvez um sinal dos anjos que finalmente estava livre do inferno que era o meu apartamento.
A rua estava vazia, apenas eu e os carros estacionados. Chequei a hora no meu relógio de pulso e descobri que eram pouco mais de três horas da manhã. Ficar andando na rua as três da manhã sem saber onde ir é pedir para que a) seja assaltado, b) seja vitima de algo estranho, c) seja vitima de algo estranho enquanto é assaltado.
Sendo assim decidi ir ao Phillie’s, um restaurante/café/bar que ficava aberto 24 horas todos os dias. O lugar era geralmente conhecido pelas pessoas do bairro e em dias de movimento, muito difícil de entrar sem ao menos ter que esperar uns 40 minutos. Afinal era o único lugar tradicional e confiável na redondeza. Continuei descendo a rua e em cinco minutos cheguei no Phillie’s, que parecia ser o único lugar da rua que estava iluminado naquela hora da madrugada. O lugar era simples, mas oferecia conforto e estilo aos seus clientes. Por fora o nome do lugar era escrito em letras douradas: Phillie’s, 24h. Ao invés de alvenaria, as paredes eram de vidro fazendo com que fosse possível que o local fosse visto quase que inteiramente pelo lado de fora. Ao me aproximar do local pude ver Marcus apoiado no balcão assistindo à sua TV portátil.
Ao abrir a porta um sino acima da minha cabeça tocou fazendo com que Marcus automaticamente se virasse para ver quem chegava. Eu o cumprimentei com um sorriso.
“O que é que você está fazendo aqui a essa hora, Leo?” Ele me perguntou com uma expressão de surpresa em seu rosto.
“Isso não é jeito de tratar um cliente, cara.”
Nós rimos por um momento. Toda vez que eu ouvia a risada do Marcus eu lembrava de uma risada de um palhaço que vi no circo quando criança, era fina e estridente.
“Desculpe-me, senhor. O que posso servi-lo nesta noite maravilhosa?”perguntou Marcus com uma voz séria.
“Um café, por favor.”
Marcus tinha 45 anos de idade. Era alto, loiro, magro, e aparentava ser muito mais velho do que realmente era, talvez pelo cansaço de estar trabalhando no turno noturno do Phillie’s desde os 25. Quando o conheci era um homem de poucas palavras, mas depois de algumas conversas começou a se abrir. Em algumas noites, mesmo com o lugar lotado de clientes, eu e Marcus ficávamos conversando sobre a vida. Ele me contava sobre sua mulher louca, sua mãe doente, seu pai cafajeste, e sobre algumas histórias estranhas que aconteciam durante a noite no Phillie’s. Era o tipo de pessoa que funcionava como um psicólogo, você podia contar-lo coisas que só você sabe porque sabia que nunca sairia dali, e se caso saísse, nunca faria diferença alguma.
“Mas com todo o respeito, o que é que você esta fazendo aqui a essa hora?” perguntou Marcus enquanto colocava os grãos de café no moedor. “Problemas de sono ou você bebeu tanto a noite que a ressaca não esta te deixando dormir?”
“Não.”respondi rindo. “É muito mais simples do que a sua teoria. O ar condicionado do meu apartamento quebrou e está um inferno dormir naquele lugar.”
“Entendo.” Marcus disse ligando o moedor. Ele disse algo mais, mas com todo aquele barulho de grãos sendo triturados não consegui entender o que disse.
Fiquei reparando no lugar a minha volta, nas paredes amarelas claras, no lustre que ficava em cima do balcão, nos copos pendurados em volta do bar, nas diferentes garrafas de bebidas espalhadas como decoração, nos copos pendurados de ponta cabeça... Marcus desligou a maquina, coou o pó, e despejou o café em uma xícara e o colocou, junto ao açucareiro, em minha frente. Provei e o calor do café instantaneamente queimou meus lábios.
“Fazem cinco anos que ninguém vem a essa hora nesse lugar.”disse Marcus, interrompendo o silencio. “Quer dizer, semana passada entrou um cara pedindo informação sobre uma rua, mas faz muito tempo que alguém entra para sentar e pedir alguma coisa.”
Tomei outro gole de café e senti como se estivesse bebendo lava.
“Nunca vou esquecer. Era uma senhora de mais ou menos uns 80 anos que estava contente porque o filho estava voltando da Europa no dia seguinte. Ela me contou que estava tão feliz que nem conseguia fechar os olhos pois tinha medo de perder o horário de pega-lo no aeroporto.”
“Ela não podia colocar o alarme para despertar, ou alguma coisa do tipo?” perguntei, seguindo de outro gole de lava sabor café.
Marcus sorriu e de repente ficou sério.
“Não tinha alarme, e nem filho. No ano passado li em um artigo de jornal do bairro que ela tinha falecido aos 85 anos de câncer no pulmão. Estava escrito: Marta Huber, 85 anos, viúva sem filhos.”
“Então ela mentiu?” perguntei, fingindo que estava interessado na história.
“Não sei. Talvez ela fosse louca, ou estivesse apenas fantasiando sobre algo que nunca aconteceu. Mas do jeito que ela falava sobre o filho, parecia tão real.”
Marcus parou para pensar por um momento. Aquela experiência com a viúva sem filho marcará sua vida, e mesmo sem ter conhecido Marta Huber, - alem da conversa que tivera com ela no Phillie’s - são os tipos de acontecimentos que deixam uma marca para sempre, como se pessoas estranhas tivessem a habilidade de deixar marcas maiores do que as pessoas na qual convivemos diariamente. Tomei um ultimo gole de café e pedi a Marcus uma água gelada. Era um ritual que herdei de meu pai.
“Como vão as coisas em casa?”perguntei a Marcus, tentando quebrar o silencio.
“Tudo em seu devido lugar. Minha mulher cada vez mais louca e minha mãe cada vez mais doente.”
O sino acima da porta tocou de repente e uma mulher loira de vestido vermelho entrou no local. O barulho de seu salto alto ecoou sobre o silencio do lugar. Ela continuou andando – ignorando completamente a nossa presença– e sentou-se no lugar oposto ao meu no balcão.
“Posso ajudá-la, senhora?”perguntou Marcus educadamente.
“Um Martini, por favor.” Ela respondeu sem olhá-lo nos olhos.
A mulher, que parecia estar na faixa dos 25 anos, colocou uma pequena bolsa em cima do balcão. Ela abriu e despejou todo o conteúdo sobre o local. Um celular, uma carteira, um molho de chaves, e uma caixa de cigarros era tudo o que tinha. Ela abriu a caixa de cigarros, e com a mão tremendo colocou um cigarro na boca e o acendeu. Eu e Marcus ficamos encarando timidamente mas a mulher não parecia se importar com isso.
“Senhora, me desculpe, mas não é permitido fumar neste estabelecimento.” disse Marcus com um ar de sério.
A mulher o encarou com um olhar irônico e um sorriso curvou-se em seu rosto.
“Acredito que a essa hora você possa me abrir uma exceção.”
Marcus ficou sem jeito e sorriu para a moça.
“Acredito que sim.”
Ele pegou a garrafa de Gin, despejou na taça de Martini, adicionou uma azeitona verde e a serviu. A mulher em vermelho o agradeceu e o entregou uma nota de vinte.
“Fique com o troco.”ela disse.
“Muito obrigado, senhora...”
“Laura, e não precisa agradecer, fica pelo problema do cigarro.” Laura completou colocando o cigarro em sua boca.
Marcus parecia estar olhando para uma deusa e esquecendo que eu estava no local. Laura era loira, magra, jovem, e de extrema e delicada beleza. Naquela hora da madrugada era difícil acreditar que alguém como ela estaria perambulando sozinha pelos bares da cidade. Tomei meu ultimo gole de água e pedi a Marcus uma dose de uísque. Marcus virou-se para mim com ar impressionado e senti que talvez estivesse pegando um pouco pesado, mas em minha mente masculina, considerei o uísque como um empurrãozinho de coragem para que pudesse começar uma conversa com a linda Laura, afinal, sem a ajuda de álcool, eu era um péssimo galanteador.
“Sim, senhor.”disse Marcus com um sorriso em seu rosto. “Com gelo?”
“Sem gelo, por favor.”disse, retribuindo o sorriso.
Olhei para Laura e vi que seus olhos estavam fixados em mim. Senti o frio descendo minha nuca e o coração acelerar. Seu rosto era quase angelical, seus olhos eram verdes e pareciam brilhar com a luz do local, seus traços eram delicados e a faziam parecer jovem e inocente. Mas parecia preocupada e amedrontada, como se estivesse acabado de receber más noticias.
Marcus serviu a dose de uísque e ao tomar o primeiro gole senti que estava bebendo madeira velha. Tentei segurar a expressão feia no meu rosto e engoli em seco. Por um momento pensei que iria vomitar.
“O que trás a senhora a essa hora da noite a esse canto da cidade?” perguntou Marcus ignorando a minha expressão de alegre.
“Estou esperando um colega de trabalho.”
Um “colega” de trabalho, não era nem amigo, nem namorado, o que significava que eu ainda tinha uma chance de conhecê-la antes de o conhecido chegar. Naquele momento estava a começar a pensar como alguém influenciado pelo álcool, e não pela razão.
“A senhora trabalha a noite?”perguntei sem se quer pensar em perguntar.
“As vezes.”Ela respondeu com rispidez.
“Mas a senhora não fica presunçosa de andar a essa hora?”perguntou Marcus, mais uma vez tentando ignorar minha presença. “Afinal vivemos em uma cidade com perigo em todos os cantos.”
“Bem, você só tem que saber aonde andar, e com quem andar.” Laura disse. “Me sirva uma dose de uísque escocês sem gelo, por favor.”
Marcus ficou impressionado com o pedido, e eu, que estava começando a ficar alterado, deixei escapar um riso. Marcus voltou seu olhar para mim com raiva, como se estivesse pedindo para que eu me comportasse.
“Mulheres bebem uísque, também. Você não sabia?” perguntou Laura em tom sarcástico. “E acredito que nós sejamos mais comportadas do que os homens, nessa área.”
“Me desculpe, senhora. Ele é um moço muito educado quando não esta bebendo.”disse Marcus sorrindo falsamente.
Marcus colocou o uísque em um copo e a entregou. Laura o agradeceu, tirou uma nota de vinte de sua bolsa e o entregou dizendo para que ficasse com o troco. Marcus agradeceu verdadeiramente, e parecia estar cada vez mais encantado com a moça. Naquele momento, a imaginação de Marcus estava trabalhando a mil, pensando em tudo que podia fazer com uma garota tão linda como Laura. Talvez estivesse pensando como seria fantástico largar sua mulher louca para fugir com Laura para outra cidade, e depois de um tempo, casar e ter filhos. Sua mente estava flutuando tão alto que nem percebeu o pequeno sino sobre a porta tocar mais uma vez anunciando a entrada de outro cliente.
O homem entrou andando vagarosamente, como se estivesse analisando o local. Era um pouco menor que Marcus, esbelto, de cabelo comprido amarrado por trás, nariz longo e fino, e um olhar que – eu estava quase bêbado na hora que o vi – parecia emitir raiva mesmo com a expressão cínica estampada no rosto. Ele caminhou até Laura, a beijou por cima da cabeça, sentou-se ao lado da moça e ficou olhando para o cardápio do Phillie’s.
“Tantas coisas pra pedir, mas nenhuma delas me satisfaz.”disse o homem, que estava vestindo um terno preto e uma camisa branca sem gravata. “Acho que irei pedir uma dose de absinto, por favor.”
Marcus o encarou por um momento, sem expressão. O homem sorriu mostrando um par de dentes amarelados provavelmente devido ao cigarro. Seus lábios eram finos e seu rosto magro e comprido. O garçom colocou um copo a frente do homem e despejou o absinto, enquanto o homem fixava seu olhar no liquido de cor esverdeada que estava prestes a beber. Laura parecia inquieta com a presença ao seu lado, como se ele fosse a ultima pessoa no mundo que gostaria de ter como companhia naquele momento.
“O senhor aceita um pouco de gelo?”perguntou Marcus tentando fazer seu papel de garçom.
“Estragaria toda a magia do absinto, muito obrigado.”disse o homem tirando uma nota de 50 de seu bolso e entregando a Marcus. “Fique com o troco.”
“Mas é muito, senhor...” Disse Marcus rapidamente.
“Você deve aceitar. Sou seu cliente e o cliente tem sempre a razão.”respondeu o homem bebericando sua dose de absinto .
Marcus pegou o dinheiro e colocou-o em seu bolso. O homem tomou outro gole de absinto, virou-se e fixou seu olhar em Laura. A moça retribuiu com um sorriso falso.
“Você esta linda, Laura. Esplendida nesse vestido cor de sangue. Parece inocente , mas poucos sabem quem você realmente é.”disse o homem com ironia. “Como pode ser tão linda?”
“Muito obrigado, senhor Kramer.”respondeu Laura sem olhá-lo nos olhos.
“Só estou lhe dizendo a verdade. Afinal, é uma presença muito grande ter você ao meu lado em uma noite tão bonita e calorosa como essa.”
O rosto de Laura ficou pálido naquele momento. Ao invés de ficar encantada e envergonhada com os elogios cafonas, ela parecida assustada e desesperada para sair dali. Tenho que repetir que estava bêbado naquele momento e minha capacidade de julgar fora rebaixada devido aos efeitos do álcool em meu corpo, mas mesmo assim notei algo de estranho. Tomei meu ultimo gole de uísque e chamei por Marcus em voz baixa para que apenas ele pudesse me ouvir.
“Marcus, é impressão minha ou tem alguma coisa de errada com esse homem?”sussurrei para Marcus, com palavras saindo com dificuldade de minha boca.
“É um sujeitinho bem estranho, mesmo. Deve ser chefe dela ou alguma coisa, e pelo jeito o cara esta tentando compensar alguma coisa.”
O homem começou a dizer coisas no ouvido de Laura e a moça ficou com o olhar fixo no balcão. Ela parecia estar petrificada pelas coisas que ele estava dizendo, como se a estivesse ameaçando. Ele colocou a mão por baixo do queixo de Laura e virou o rosto da garota forçadamente para que ela o olhasse nos olhos. Nesse momento, a mulher entrou em desespero e começou a chorar um choro baixo e inocente como se estivesse implorando para que ele não fizesse nada de mal com ela.
Marcus que estava secando uma xícara de café ficou parado, sem saber o que fazer.
“Por favor, senhor Kramer. Por favor, não faça isso, eu te imploro!”disse Laura entre soluços.
“Pare com isso, sua piranha! Você vai pagar pelo quanto me fez sofrer!”gritou Kramer de repente fazendo com que Laura cobrisse sua boca com a mão para conter o choro.
Marcus colou a xícara no balcão e se aproximou de Laura.
“Algum problema? A senhora está bem? Esse homem esta te maltratando?”perguntou Marcus seriamente apontando para Kramer.
“Não se meta aonde não é chamado, garçom de merda!”disse Kramer se levantando. “Esse assunto é assunto de gente grande. Vá secar sua xícara e deixe que eu cuido do nosso problema.”
Laura começou a chorar mais alto e Kramer gritou para que ela se calasse. Marcus tirou o avental que estava usando e o jogou no chão. Eu sabia que naquele momento alguma coisa de ruim iria acontecer e sem saber o que fazer levantei e andei em direção a Kramer.
“Qual é? Você também veio se meter aonde você não foi chamado?”perguntou Kramer virando-se para mim, enquanto Marcus saia pela portinhola do balcão e vinha em direção a discussão. “Você viu o que você fez, sua vadia! Você vai pagar por isso!”
“Por favor me ajudem! Esse homem quer me matar!”gritou Laura levantando-se e correu para longe de Kramer. “Ele é louco!”
“Sua vagabunda! Você estragou tudo! Sua vadia!”
Tudo aconteceu muito rápido. Kramer agarrou algo que estava dentro de seu paletó. No momento não pude ver o que era, mas quando tirou pude ver o objeto brilhando sobre a luz do local. A cor de prata cromada do revolver refletiu sobre meus olhos e o tempo parecia ter frisado por um momento. Kramer apontou o revolver para Laura e atirou. Uma. Duas. Três. Quatro vezes. Os tiros foram parar no abdômen da moça e o sangue jorrou pela parede e sobre as roupas de Marcus. A moça cambaleou por um momento e caiu. O tempo parou mais uma vez. Eu olhei para Laura que estava deitada no chão com os olhos voltados para o teto. Os buracos causados pelos tiros pareciam ser camuflados pela cor vermelho-sangue do vestido, até que o sangue começou a se espalhar por trás das costas da moça pelo azulejo branco.
Kramer sentou-se no banco e apontou a arma para Marcus, que ficou paralisado com medo.
“Essa vagabunda estragou minha vida. Ela nunca ligou para mim. Nunca. Foram anos tentando fazer com que essa vaca me notasse. Eu a promovi, eu comprei jóias, roupas, até um carro pra ela... mas nada. Ela nunca sentiu nada por mim.”disse Kramer entre lágrimas. “Agora está ai, esparramada pelo chão, morta. Agora eu tiro tudo que ela tem, ou que poderia ter, e vice versa.”
Marcus continuou paralisado, sem saber o que fazer. Eu tentei me aproximar de Laura para ver se a moça ainda estava viva – naquele momento estava me sentindo normal, como se o medo tivesse evaporado o álcool do meu corpo – mas Kramer virou-se, com a arma apontada para mim.
“Eu já disse para você, garoto. Não se meta aonde não é chamado. Você quer voltar para casa vivo, ou esta querendo ir pro saco junto com a Laura? Eu não tenho razão alguma para machucar nenhum de vocês, então por favor, não faça com que eu mude de idéia.”
“Por favor, não me machuque. Eu não vou me meter, mas por favor não me machuque.” Eu tentei falar o mais alto que pude para que o homem entendesse, como se isso fosse adiantar alguma coisa. “Por favor.”
“Tem telefone nessa merda?”perguntou Kramer virando para Marcus que mal conseguia manter o equilíbrio por causa da tremedeira nas pernas. “Não era o ‘machão’? Agora esta ai, quase se cagando. Tem ou não tem?
“Tem sim, senhor.” Gaguejou Marcus.
“Certo. O negócio é o seguinte, cara. Você vai ligar para a policia e ira contar a eles o que aconteceu. Diga que eu a matei por ódio, por vingança, ou qualquer coisa do tipo, e que logo em seguida me matei.” Marcus tentou interrompe-lo, mas ele apontou a arma para a cabeça do garçom. “Não, não, não! Não me interrompa. Faça o que estou dizendo e tudo vai acabar bem para vocês. Diga a eles que Laura levou quatro tiros no abdômen e que ainda pode estar viva. Ela não esta, pois a essa hora 4 litros e meio dos 5 que ela tem no corpo já vazaram pelo chão, mas se você falar isso eles virão mais rápido. Me desculpem pelo que fiz. Acreditem ou não, fiz isso por amor. Deus me perdoe pelo que fiz!”
Kramer colocou o revolver na boca e atirou. O tiro ultrapassou a parte de cima de sua cabeça e perfurou o teto. Seu corpo caiu rapidamente no chão, e o sangue começou a jorrar de seu nariz como uma cachoeira. Nunca irei esquecer aquela cena. Quero dizer, nunca esqueci e nem irei esquecer aquela noite.
Nos momentos seguintes Marcus correu para o telefone e discou para a policia. Em menos de 15 minutos, três viaturas policiais e uma ambulância chegaram no local. O corpo de Kramer foi o primeiro a ser colocado na maca, dentro de um saco preto fechado por um zíper que corria da cabeça aos pés. Laura fora socorrida pelos paramédicos, e – ao contrario do que Kramer havia dito – estava respirando no momento em que chegaram, mas morreu a caminho do hospital.
Marcus ficará traumatizado pelo que acontecera e pediu demissão do Phillie’s na semana seguinte. Hoje o Phillie’s abre somente até as onze da noite, e é fechado nos domingos e feriados. O assassinato de Laura Moretti pelo seu chefe Roberto Kramer chocara o bairro onde eu moro e foi assunto na vizinhança durante meses. Talvez pelo fato da possessão ser uma coisa tão inexplicável, ou talvez pela falta de amor e o domínio do ódio ser algo que tome conta de uma mente abalada. Talvez fosse a beleza da noite que afetara Kramer diferentemente de todas as outras noites, pois mesmo sendo rico e bem sucedido, não tinha o amor de Laura para acompanhá-lo em um fim de noite linda como aquela. Talvez tenha sido a influencia do absinto, da fada verde, que fez com que fosse o empurrão final para que Kramer fizesse o que fez. Ou talvez tenha sido a junção de tudo, e mais a insanidade guardada durante anos dentro de Roberto Kramer.
O que quer que seja que tenha passado na cabeça de Kramer naquela noite, já não importa. Nem ele, nem Laura, irão voltar. Viraram história, vestígios de um passado violento, de um amor que nunca foi correspondido e de uma bomba relógio que demorou anos para explodir.
As noites calorosas no meu apartamento ainda acontecem e – quase sempre – não consigo dormir, não pelo calor, mas pelas lembranças daquela noite maldita. Do sangue de Laura e Roberto se encontrando no chão. Talvez ali estivesse a grande ironia. Lembro de minutos antes dos paramédicos chegarem, de ver o sangue dos dois se encontrarem sobre os vãos do azulejo. De uma forma ou de outra, Kramer acabou conseguindo o que queria em forma de um paradoxo. O cúmulo da possessão, do ciúmes, e até mesmo, do amor. E são nessas horas que chego a conclusão de que coisas estranhas acontecem em madrugadas calorosas, e que não estamos seguros em lugar algum.