O SANDEU

Tocava violão e cantava. Nem bom violonista nem bom cantor, assim mesmo tocava e cantava, os presentes ouvindo com atenção. Parava o violão, silenciava o canto, fitava a gente, baixava a cabeça, olhava distante. Se ria, o riso era sem sentido, se dizia alguma coisa as palavras eram desconexas. Perguntava-se-lhe uma coisa e respondia outra ou não respondia nada. Olhava a gente, olhava... Olhava e sorria um riso desbotado, sem sentido e sem significação, sem vida. Nunca disse o nome a ninguém.

Perambulava pelas ruas e pelos campos dias e noites, noites e dias. Dormia no chão, em qualquer lugar. Pedia esmola, comia nas casas quando lhe davam e o que davam, sem dizer que era bom ou que não era. A pequena porção de alimentos se apresentava, invariavelmente, na lata que ele conduzia. Carregava uma trouxa de coisas imprestáveis. Tudo que lhe davam e o que encontrava ao acaso, ia para a trouxa. Panos velhos, papéis, garrafas, latas vazia, chifres de bode e boi, tudo numa mistura desordenada. No vazio de seu entendimento, aquilo devia servir para alguma coisa algum dia. A trouxa crescia sempre. Era transportada ao ombro, enviada em um velho bordão que talvez lhe servisse, antes, de apoio. Um dia encontrou uma foice enferrujada, imprestável. Limpou-a, amolou grosseiramente e encabou. Pôs fora o bordão e no cabo da foice enfiou a trouxa. Lá ia, por toda a parte a colecionar mais objetos, qualquer coisa, naquele amontoado de coisas.

Morava em pequena roça, pouco distante do povoado de Rodelas, no Sertão do São Francisco, à beira do rio. Solitário, ali ficava dias e dias, lerdo e sem vontade. O terreno tinha dono, devia ter, de título registrado, mas estava abandonado. Ele fez um rancho de palha, em volta do rancho uma cerca de ramos e garranchos, obra de duas tarefas. Grandinho, o cercado, para ele, para o seu trabalho sem suor e sem pressa. Cultivava a vazante do rio plantando feijão, melancia e abóbora, coisas assim. Um nadinha de cada coisa. Zelava a roça, arrancava e cessava o mato caprichosamente.

Três, quatro cachorros sem dono o acompanhavam, pobres como ele, famintos do mesmo modo, igualmente mendigos, que o entendiam e eram entendidos. Caçava preá nas beiras de cerca e nas locas de pedra acompanhado dos cães e com estes dividia a caça.

Não tinha nome. E por causa da foice, chamavam-no de Velho da Foice. Outros o chamavam de Velho da Moita, por causa do lugar onde tinha seu rancho. Não era tão velho, aliás, não era velho. Barba e cabelos nunca cortados, apenas grisalhos. Roupa rasgada - não suja, que ele a lavava muito bem lavada. E o nome firmou-se: o Velho da Foice, o Velho da Moita. Ora se dizia de um modo, ora do outro. Não tinha família, ninguém sabia de onde viera. Vivia ali há anos. Muitos. Bem vinte. Não fazia mal a ninguém - doido manso.

Muitas vezes desabava no mundo, saía pelas fazendas, perambulava sem rumo, pedindo esmola de casa em casa. Nisso, sumia meses e meses. Quando reaparecia, arranchava-se no seu lugarzinho, limpava e plantava a roça, caçava preá, sempre acompanhado dos cães. Por onde andava, nos mesmos e repetidos lugares, se fez conhecido e não causava medo. Não podia causar medo, se não fazia mal. Quase sempre calado ou tocando seu violão e cantando. Dormia no mato, na beira da estrada ou na latada das casas onde era conhecido. Todos o acolhiam, davam-lhe restos de comida e não receavam que dormisse na latada, no alpendre. Alma sem fel, sorrindo sempre, por doido manso todos o tinham. Sorria e cantava ou silenciava. Não sabia contar história. Seu único dom de saber se concentrava no violão e na cantiga, bem decorada e por sinal, sonora. O velho violão, carregava-o na trouxa por toda parte onde andava.

Três coisas o irritavam à fúria: tiro, foguete e mangação de menino na rua. Se encontrava caçador de espingarda a tiracolo, só isto bastava a enfurecê-lo. Ao ouvir tiros gritava e corria apavorado, dizendo todos os nomes feios do mundo. Corria até esgotar-se. Era uma reação. A outra, mais rara, era a de investir contra a pessoa. Se os meninos faziam mangação, assobiando e chamando-o de doido, ele avançava, querendo pegá-los para esganar. Os meninos desandavam e ele parava xingando e ameaçando. Fora disso, nada de mal vinha ao mundo por si.

Não ouvia foguete, que não desnorteasse. Quando era a festa de São João, padroeiro da vila de Rodelas, ao ouvir os primeiros estouros de foguete, largava-se por aí, nos matos e só retornava muito depois.

Um dia uma pessoa reclamou com o cabo Matias, delegado de polícia, contra a foice que o sandeu carregava, receoso de que com ela, por ventura ferisse alguém. O delegado chamou-o maneirosamente e pediu a foice, dizendo-lhe que era uma arma perigosa. Ao ouvir falar - arma perigosa, ele tremeu e sem palavra de contestação entregou a foice. A trouxa ficou no chão, desarrumada. Depois de muito tempo silencioso começou a chorar. Olhou para o cabo Matias mansamente, tristemente e pediu que lhe devolvesse a foice - pelo amor de Deus. Era, disse, ou fez entender, para se defender das feras no mato e para cortar ramos para o seu cercado, para servir de apoio no transporte de seus trastes. O delegado, homem de sensibilidade, chefe de família que ao tomar decisões lembrava-se de seus filhos, se compadeceu e quase chora também. Restituiu-lhe a foice, recomendando que a envolvesse em algum pano, para evitar novas reclamações. Quando viesse à rua, acrescentou, não devia trazer a foice, só a usasse fora. Melhor teria sido que não a devolvesse, para evitar o desastre. O tolo atendeu ao delegado. Embainhou a foice em uns molambos e desde então a conduziu assim.

Pobre criatura desvalida, sem razão, sem nome e sem família. Mundo grande de tanta gente. Mundo de felicidade para tantos, mundo de vida e amor, de prosperidade. Para ele, aquilo: a foice, a trouxa, os cães. O vazio do violão oco como a sua cabeça. E o apelido: - Velho da Foice, Velho da Moita.

Sempre houve curiosidade em torno de sua pessoa. Todos queriam saber quem era, de onde viera, que família tinha. Quando alguém perguntava, não conseguia resposta. Seria medo talvez, talvez não soubesse responder. Escrevia razoável caligrafia. Dizia-se um nome qualquer e ele o escrevia sem embaraço. Se se pedia que escrevesse o seu nome, olhava a gente, olhava, não escrevia nem dizia nada. Também não respondia sobre a família e a terra natal. Certamente padecia de amnésia.

Outro dia, um delegado que já não era o cabo Matias, comandou a polícia para tomar-lhe a foice. Soldados fardados... - Ele tinha pavor à farda, quando via soldado cortava distante. Soldados fardados e armados... - Ele tinha horror a arma. Pois os soldados o cercaram e intimaram a entregar a perigosa arma branca. Arma perigosa? Soldado? Fuzil? Enfureceu. Arrancou a foice da trouxa e a desembainhou. Cavaqueou, dizendo asneiras, gritando, cercado, sem poder fugir. Corria para um lado, era o cerco, ia para o outro, de novo o cerco. Avançava contra um, recuava, avançava contra o outro, recuava ainda, ia e vinha de cá para lá, de lá para cá, todos de arma apontada, ele babando, raspando a foice no chão, rasgando-o como se fosse um touro acuado. Babava e gritava, gritava e babava, escavando o chão com a foice desesperadamente. Queria fugir e, cercado por todos os lados, não podia. Seis soldados barrando-lhe a fuga. O sargento comandante da pequena tropa elevou o fuzil, manejou, apontou. Ouviu-se um tiro, um só. O sandeu foi ao chão. A bala entrou-lhe certinha na boca, como se a desejasse tapar para evitar os gritos. Os cachorros foram mortos a tiro, um a um, todos lutando como fera para não deixar que os praças se aproximassem do corpo do seu amigo.

No fundo da trouxa, amarrotado e sujo, um distintivo que Rodelas não conhecia. Os curiosos olhando sem saber o que era aquilo, até os soldados fardados. Bordada em branco sobre verde-oliva - desbotado verde-oliva de muito uso, A COBRA FUMANDO.