A REVOLTA DOS CÃES
Por volta do meio dia: o céu aberto despejando lascas de sol sobre as árvores sem folhas, sobre o chão vermelho, sobre homens e bichos, sobre o espírito de Deus, que paira arredondando a Terra. A areia escaldante corusca, espalhando faísca e fumaça no espaço ambiente. Tudo é fogo, tudo inferno em chamas. O sol é um dardo flamejante que Deus empurra do alto para penetrar o solo e ir sugar, lá no fundo, a água subterrânea, que se reverte em nuvens para a chuva de outros lugares. A cigarra chia na sua voz de louca até estilhaçar-se para ser consumida pela canícula voraz. O espírito de satanás tenta o espírito de Deus, desafia-o, entra em guerra pela posse do chão ardente, onde pretende instalar os seus filhos sem lar e sem teto, sem pão e sem vinho, sem amor, sem luz de vida. Deus tem demais para os pupilos ricos e poderosos, não precisa daquele quase deserto. Satanás, deserdado, ficou sem gleba que proporcione aos miseráveis, por isso a guerra. Não quer muito, só aquelas terras desgraçadas, que o Criador povoou de seres vivos e, mesquinho, deixou-os sem lei e sem governo, entregues à própria sorte. Quer para ocupá-las e dirigi-las, governá-las, pôr ordem sobre elas, administrando um espaço ora ocioso, sentenciado à desgraça. E a guerra se faz com espadas de fogo, com torpedos de chama e braseiro, com forças de Deus e diabo, com ganas e poderes de eternidade.
Vindos do fundão do raso estorricado e hostil, onde Deus e o diabo se guerreiam, três caçadores desembocam no pátio da fazenda. Seis cães ao seu lado. Lerdos, cansados, cabisbaixos homens e animais. Profundamente tristes. Certamente esgotados da longa caminhada, dias e dias no campo áspero em busca da caça, por descanso o pouso mormacento da noite. Param. Pedem água. Vinham sedentos de dois dias, totalmente esgotadas as borrachas. Bebem, respiram, pedem mais água. Salobra água da cacimba do Rapador, quase travosa. Mas a única ali, que servia às pessoas e ao gado, a todos os viventes. Água salobra pede mais água. E bebem ainda.
Em seguida perguntam se haveria inconveniente em que se detivessem para o descanso da matalotagem à sombra do juazeiro em frente à casa. Não, não havia. Podiam descansar à vontade. Arriaram a carga. Sombrona, a do juazeiro, refrigério que a gente buscava nos dias de mormaço - aí meu pai armava a sua rede ao meio dia quando se encontrava em casa, aí minha mãe sentava no banco de umburana para remendar a roupa de casa ou fazer croché. Aí os vaqueiros amarravam os cavalos para pôr ou tirar a sela, para lavar e milhar, para dar-lhes repouso quando cansados chegavam do campo.
Aí, na sombra onde corria sempre um pouco de aragem, mesmo nas horas de maior calada, os caçadores abriram os seus aiós e puxaram a matalotagem. Comeram a paçoca e beberam outra caneca de água. Estiraram-se na areia macia. Ao lado deles os cães não receberam qualquer alimento. Lembra-me que uma cadela, pequena e franzina, magra, faminta, deixou a sombra, contornou o oitão e veio aboletar-se na latada da cozinha, nos fundos da casa, de olho comprido, ora para as mantas de carne de carneiro estendidas na corda, ora para a panela que fervia a fogo lento. Lembro que fui à cozinha pegar água para os caçadores e aí vi a cadela nesse descanso faminto, olhando a carne em cima, a panela fervendo em baixo, à sua frente. Calcularia o mais fácil de alcançar. Calcularia certamente.
Bisbilhotava qualquer coisa, puxando pelos caçadores, quando ouvi os gritos de minha mãe, vindos do fundo da casa. Corri a ver o que era e ela me disse:
- Cachorra danada! Pois não furtou a carne? Carregou uma manta inteirinha, a danada. Que bichinha mais ladra! Não sei que pulo deu, tão alto, para alcançar a manta de carne, lá em cima!
À distância, escondendo-se entre os arbustos, a cachorra comia gulosamente, rasgando os pedaços de carne. Chamei pelos caçadores gritando. Acorreram todos a um tempo. Não precisou que dissesse nada, a cadela comia sufocadamente e eles a avistaram. Um dos caçadores que seria o seu dono gritou por ela e foi prontamente atendido. Tomou-lhe a carne, procurou limpar como possível, me passou. Pegou-a pela orelha e arrastou até à sombra do juazeiro, onde a amarrou. Conversou qualquer coisa com os companheiros e a seguir vi quando tirou-lhe a corda do pescoço e a amarrou pelas pernas traseiras, pendurando-a em algum galho. Coisa rápida, que mal percebi. Gania a cadela, não gania apenas, parecia chorar como uma criatura humana que percebesse o próprio fim. Em volta os caçadores e os outros cães. Tomou o machado e elevou ao alto, pronto para despejar-lhe o golpe na cabeça. A cachorra gania, chorava. A distancia também os outros cães ganiam. Ouvi quando um dos homens gritou:
- Cuidado, Zuza!
Antes que esse tivesse tempo de descer o machado na cabeça da cadela, um dos cães caiu em cima dele, como se uma fera se botasse contra outra. Mal se voltou, o cachorro estava com os dentes cravados em sua garganta. Os dois outros caçadores ralharam ao mesmo tempo sem serem atendidos. Um levantou rapidamente a arma e o cão virou-se contra ele, rosnando. Quando lhe apontou a faca, por trás um terceiro cão pulou em cima dele, também de presas na garganta, enquanto o primeiro de novo ratacava o homem do machado. Um pandemônio. Todos os outros cachorros entraram na luta contra os dois homens, o terceiro destes à distância, pasmado, sem ação.
Foi quando me ocorreu a idéia salvadora e corri à cozinha, peguei as duas mantas de carne e procurei atrair os cães:
- Aqui, aqui, aqui, gritei mostrando a carne aos animais que, à vista do alimento esqueceram a luta e correram em busca deste.
- Ave Maria, quage matam os home. Se num fosse a gana..., suspirou minha mãe aliviada. Em seguida olhou para os caçadores à distância e concluiu:
- Parece qui o diabo anda solto nessas terra, gente!