DESCONHECIDOS - 45

DESCONHECIDOS – 45

Rangel Alves da Costa*

Bastou que Yula acenasse leve e positivamente com a cabeça para que o velho coronel começasse a abrir a última gaveta do móvel antigo. Encurvou-se um pouco e retirou de lá uma pasta presa com elásticos.

Começou a espalhar alguns documentos sobre a mesinha até encontrar o que procurava. Estava dentro de um envelope lacrado. Ao abrir e reconhecer o retrato chamou o rapazinho mais pra perto e disse: “Eis aqui. Esta moça é a Soniele. Veja se é esta mesma que estava imaginando”.

Yula segurou o papel, levantou-o perto dos olhos e deu um sorriso de surpresa, alegria e satisfação. E disse em seguida: “Mas que moça bonita coronel, pena que tenha escolhido viver nessa vida de ser mulher de qualquer um. Acho que seu filho tinha razão em ser apaixonado por garota tão bela, e também acho que tinha mais razão ainda se pensava em tirá-la dessa vida. Não sei bem o que se passava pela cabeça dele, mas sei que só queria o melhor”. E entregou a fotografia de volta.

“Você disse palavras bonitas e importantes, mas não quero me adentrar nessa história mais não, me entenda. Pena que não vou poder deixar esse retrato com você, pois continua sendo de outra pessoa, mas espero que realmente tenha gostado das feições da mocinha”. Falou o coronel, ao que o jovem sulista completou:

“Não precisará coronel. Não precisará porque se já fazia ideia de como ela seria, agora que vi essa fotografia e tudo se confirmou, acrescentando-se muito mais graça e jovialidade na bela mocinha, certamente que jamais esquecerei. Qualquer dia e em qualquer lugar que eu encontrá-la saberei perfeitamente que estarei diante dela, olhando no seu olhar da minha imaginação e da fotografia. Resumindo, coronel, uma mulher dessa é praticamente inesquecível e vou encontrá-la ainda, pode acreditar no que digo”.

“Espero que a encontre o mais cedo possível, pois gente que vive nessa vida hoje é mocinha e amanhã já tá envelhecida, caindo aos pedaços, de um jeito que passa a ser rejeitada. É, mas agora vamos voltar lá pra perto daquelas fofoqueiras. E não é só pra isso não, pois creio que tá na hora de mandar botar na mesa uma galinha caipira gorda que mandei preparar. E uma buchada de bode também, uma buchada de bode também. Vamos lá”.

Dona Doranice inventou mil conversas para dispensar o convite para o almoço, mas sem conseguir seu intento. Ao sentarem à mesa nem sabiam qual prato era mais chamativo, bonito e apetitoso. O cheiro das comidas ainda fumaçando espalhavam-se por todos os lugares.

A galinha de caipira cozida chegou numa tigela de barro que deixava seus pedaços gordos, amarelados e oleosos ainda mais atraentes. Numa tigela ainda maior foi colocada a buchada de bode, com os miúdos devidamente presos em bolas de bucho devidamente costurados com linha. E mais, muito mais pratos que chegavam e eram espalhados pela enorme mesa como se um verdadeiro batalhão faminto fosse chegar para a festa da gulodice.

Tantos pratos, molhos, cozidos, sucos, pimentas, saladas e outras invenções nordestinas apenas para cinco pessoas. Dona Doranice olhou para a buchada e sentiu a maior raiva por não poder encher um prato bem grande. Comeu apenas um pouquinho de pirão com uma colherada dos miúdos. Da galinha gorda experimentou apenas uma coxa e duas colheres de arroz branco.

Quase nada, diante do prato de Carlinhos. Este parecia faminto mesmo, não deixando nada que não fosse saboreado. Por outro lado, não conhecendo muito bem aqueles pratos, Yula apenas experimentou uma coisa e outra e deu-se por satisfeito. Por estar de regime médico, o coronel comeu apenas arroz com carne assada, mas também muito pouco. E não foi diferente a fome de Sofie, que apenas beliscou um tiquinho disso e outro daquilo.

As despedidas foram rápidas, apenas para confirmar o que já havia sido combinado. Assim que recebeu o cheque já com uma quantia assinalada, Sofie se recusou em recebê-lo diante do valor ali escrito. Foi preciso o coronel argumentar exaustivamente para que Doranice aceitasse preencher outro com valor menor. O fez, mas assim mesmo pedindo por tudo na vida que não deixassem de telefonar para Yula e avisar sobre a data da inauguração.

Ao deixarem o casarão do coronel tiveram que enfrentar dificuldades para passar pela praça ainda tomada de gente, ora entrando ou saindo da igreja. Pelas conversas que tiveram de ouvir, uma imensa confusão havia se formado dentro da igreja e alcançado a sacristia, aonde continuava o falecido padre a espera de ser conduzido para a capital, onde seria embalsamado e levado para o seu país de origem, lá pelas bandas da Europa.

De fato, três mulheres casadas, e bem casadas, da classe média-alta de Mormaço, primeiro chegaram à igreja chorando a morte do padre, depois não suportaram mais e decidiram, cada uma a seu tempo, entrar na sacristia para fazer a última despedida. Chegando ao local, diante do homem estirado na cama, começaram a extravasar seus sentimentos e declarar abertamente, aos prantos mais dolorosos do mundo, o amor carnal que mantinham às escondidas.

Assim, quando uma, e depois outra, soube do que estava ocorrendo lá dentro, avançou porta adentro, cheia de ciúmes, esbravejando e esculhambando a outra, acabando por dizer que aquele homem era só dela e de mais ninguém. E quando as três se viram frente a frente, no mesmo amor, no mesmo pranto e na mesma dor, então foi a coisa mais esquisita do mundo. Cada uma partia pra cima da outra, chamando de puta rampeira, de vagabunda desgraçada e tudo o mais, espalhando pelo quarto tufos de cabelos, joias, pedaços de roupas e até uma peruca.

Quando Dona Doranice e os dois amiguinhos passavam em frente à igreja ainda puderam avistar as três sendo retiradas à força pelos maridos, ainda se cutucando e deixando seus esposos numa situação nada confortável. Sabiam que depois disto suas vidas jamais seriam as mesmas, ainda que deixassem de vez aquelas viúvas de padre. E claramente já se ouvia: “Leve sua safada, seu corno”, “Tanto dinheiro e nunca compraram um serra pra serrar as pontas”, “Só assim a gente vê onde tem roupa suja”.

Diante desse quadro, a viúva pediu que fossem imediatamente avisar aos demais que partiriam ainda naquela tarde. Já tinha visto demais por aquele dia. Não sabia ainda pra onde iria, mas seguiria adiante.

continua...

Poeta e cronista

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