MINHA INFÂNCIA EM LUANDA
Divulgando À Sombra do Imbondeiro


Parte do inicio do livro que relata a vida de um menino nascido em África que faz sua vida em Portugal e Angola,passa por uma guerra e acaba fugindo para o Brasil.


- Raranja, raranja fresquinha, quem quer raranja... raranja, raranja fresquinha, quem quer raranja – gritava a quitandeira, anunciando suas laranjas.
Não havia mercados públicos nessa época, e tudo o que era oriundo da terra ou do mar era vendido pelas quitandeiras: garoupa, linguado, camarão, lagosta, fruta pinha (fruta do conde), banana, pitanga, manga, mamão, etc.
- Vamos, Tói, vamos roubar aquela quitandeira – disse Chico Tende.
- Vamos lá pá ! – respondi eu, sempre disposto a viver mais um momento de aventura.
Sorrateiramente nos aproximamos por trás e, sem sermos vistos, num salto relâmpago tiramos uma laranja cada um e fugimos.
- Sundo ya maieno (filho da puta)! – gritava a pobre da quitandeira.
Depois de correr uma centena de metros, Chico Tende desabou:
- Pora (porra) pá, quase que ias caindo. Se ela nos apanha, estávamos fodidos!
Desse episódio concluí que minhas habilidades de roubar tinham que ser aperfeiçoadas.

- Vamos jogar bora (bola)? O Juca e os outros estão lá no Bareizão.
E lá ia eu com meu amigo, sem sentir qualquer diferença entre nós. Nem reparava na cor negra de sua pele.
No muro do Baleizão estavam os amigos Juca, Jorge, Artur, Abílio e muitos outros. Tínhamos em comum sermos os meninos do bairro dos Coqueiros, sempre alertas para enfrentar nossos maiores inimigos: os meninos da Cidade Alta, um bairro vizinho, que de vez em quando desciam para nos bater.
- Toninho, trouxeste a bola?
- Perdi a minha.
- Mas o Jorge está com uma.
- Mas a bola dele é uma merda.
Precisávamos de meias de seda, usadas pelas mulheres, com as quais se faziam bolas mais firmes e duradouras.
Dois ou três saíram correndo e voltaram com algumas meias, furtadas de suas mães. Enrolando umas tantas, a bola do Jorge ficou com consistência suficiente para ser usada.
Depois de divididas as equipes e marcadas as traves, começava o jogo de bola.
Momentos antes eu tivera o cuidado de tirar a camisa e as sandálias para me prevenir do castigo que inevitavelmente sofreria se chegasse em casa todo sujo. Outros fizeram o mesmo. Só o Chico Tende é que não precisava tirar a roupa surrada e rota.
A certa altura, começa uma briga como era normal acontecer durante o jogo. Jorge tinha passado uma rasteira em Artur. O jogo parou.
- Pora, seu filho da mãe, magoaste meu pé – gritou Artur.
A briga parecia iminente. Juca enterrou as costas das mãos na areia vermelha e se posicionou entre os dois. Na nossa linguagem, isso significava que aquele que não batesse numa das mãos era covarde e estava com medo de lutar.
Artur foi o primeiro a bater na mão direita de Juca. Jorge era menor. Artur, bem mais forte, sempre ganhava essas lutas. Jorge hesitou em bater na mão esquerda de Juca porque estava apavorado. Sabia que ia apanhar.
Juca gritou:
- Jorge, tu bate ou não bate, pora?
Jorge não tinha outra solução senão bater. A fama de covarde era mais humilhante que alguns murros que pudesse levar.
Bateu, e a luta começou.
Jorge levou uma chapada (tapa na cara) que o irritou. Numa aparente atitude de abandono de luta, afastou-se para em seguida se atirar ao chão, agarrando as pernas de Artur na tentativa de derrubá-lo. Mas foi em vão: além de não cair, Artur ainda o chutou várias vezes. Todos se precipitaram para encerrar a luta, pois já havia um vencedor. Jorge foi embora e o jogo continuou. Terminada a brincadeira, também fui para casa.
- Filho, chegaste tarde. Onde estavas? – minha mãe perguntou.
- Conversando com o Juca ali no muro do Baleizão.
- Mas estás com os calções sujos!
- É que tropecei numa pedra e caí.
- Vai tomar banho. É hora da lição.
O balde de lata de dez litros já estava preparado com água morna, içado no teto da casa de banho.
Lavei-me rapidamente, ora puxando ora largando o fio que abria a válvula embaixo do balde. Esfregava-me com sabão macaco (sabão de coco). Vesti a roupa que me esperava em cima da cama e fui falar com minha mãe. Eram seis horas da tarde. Mais uma aula de leitura e escrita a que minha mãe me submetia diariamente. Desde meus cinco anos, antes mesmo de ir à escola, já sabia ler e escrever.
Depois do exercício, ficávamos os dois na varanda de casa, que dava para a rua, esperando que me pai chegasse do trabalho. Era a hora de regressarem os carrinhos de sorvete do Baleizão, sorveteria que ficava logo ali na esquina. A água crescia-me na boca ao pensar no sabor inconfundível de baunilha. Como fazia todos os dias, arrisquei:
- Mãe, me dá um angolar (moeda angolana) para comprar um sorvete?
- Mas ainda ontem comeste um. Não pode ser todos os dias, meu filho.
É só hoje, não peço mais – dizia beijando carinhosamente minha mãe.
Vai à cômoda do quarto e tira cinco tostões. Compra lá o teu baleizão.
Corria feliz e, em segundos, estava parando o próximo carrinho.
- Baunilha ou chocolate?
- Baunilha. Enche bem, por favor!
- Minino, não dá para encher muito porque são só cinco tostões. Se faltar, terei que pagar.
- Tá no fim do dia. Vai. O filho do dono do Baleizão, o Tárik, é meu amigo e não vai te chatear. Ganhaste muito hoje? – perguntei.
Ai, minino. Trabalho yavulo (é muito) e kitar malé (o dinheiro é pouco). O Kazumbi (alma do outro mundo) estás a trapalhar minha vida e Nzambi (Deus) não querer ajudar.
E foi nesse ambiente que transcorreu minha infância, numa dualidade gostosa: de um lado minha mãe zelosa, precavida e sempre preocupada comigo, de outro, meus amigos, numa mistura saudável de epidermes que iam do branco ao negro, cada qual me transmitindo um pouco de suas vivências familiares e seus costumes. Os negros com sua influência espontânea, impregnada de religião fetichista, que não condenava o roubo, mas o ser apanhado a roubar. O português que falavam era criticado por muitos brancos, que não lhes reconhecia o esforço para se expressarem numa língua que não era a sua. Substituíam o som representados pela letra L-ele pelo da letra R-erre que pronunciavam sem a vibração do nosso falar, e os verbos mal conjugados soavam em nossos ouvidos como sons melodiosos.

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ANTÓNIO MARCELO
Enviado por ANTÓNIO MARCELO em 02/12/2010
Reeditado em 04/08/2011
Código do texto: T2649417
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