O mistério do Sr Baulter

Gustavo Baulter encontrava-se plantado, diante de uma velha porta de madeira do século passado, no meio da Rua Augusta. Era principio de inverno na capital paulista, e como sempre, Gustavo, vestia sua velha casaca comprada num brechó das redondezas. Seus sapatos, meras imitações americanas, combinavam apenas com os botões de sua casaca, e a calça não combinava com nada. Com ar de poucos amigos, bateu na antiguíssima porta que mirara há quinze minutos.

Com muito medo, bateu. Não ouviu ninguém e nem se quer um barulho. Depois de mais cinco minutos batendo, descobriu que havia no canto superior da porta do correio, um pequeno interruptor, o qual Gustavo tocou duas ou três vezes, e depois de mais cinco minutos, ouviram-se os estalos de metal das chaves se baterem, e por fim a porta se abriu.

- O que quer jovem? Não vê que estou dormindo e são três da manhã? – disse Roberto Clast, um velho senhor que morava naquela casa há mais ou menos cinqüenta anos.

O senhor Clast era muito reservado. Uns diziam que possuía muito dinheiro, mas perdera tudo ao se casar com uma biscate que fugiu para a Europa levando tudo que pertencia a Roberto. Amargurado, vivia só. Não tinha filhos. Porém, apesar de sua solidão e isolamento social, tinha olhos para a Sophia Baulter, irmã mais nova de Gustavo. E quando a jovem mulher passou a morar junto com seu irmão, o Sr. Clast começou a freqüentar a padaria em que Sophia tomava café todas as manhãs.

- Minha irmã, seu psicopata. Foi o senhor que fez isso com ela! – exclamou Gustavo em voz baixa para que os vizinhos não ouvissem.

- Fiz o quê? Seu insolente, o quê está dizendo?

- O senhor matou minha irmã, está ela agora em minha cama morta e coberta de sangue! – o jovem estava revoltado, e com medo de um motim no bairro, evitava a voz alta.

- Como ousa! Vou agora mesmo chamar a polícia! Como me acusa de algo que em minhas faculdades mentais tenho a plena certeza de que não cometi?! – O Sr. Clast falava cada vez mais alto.

Do outro lado da rua, a Sra. Wanda, vizinha de Gustavo e Roberto, abria a porta curiosa em saber o que o Sr. Clast fazia a essa hora da madrugada fora de sua casa e conversando com alguém. Gustavo, com muito medo, disse ao senhor:

- Isso não ficará assim! – e virando-se à Sra. Wanda continuou – Não foi nada minha senhora, estou perguntando ao Sr. Clast se tinha visto a grande ratazana que passava rente a sua porta. Pode voltar a dormir.

Roberto com ar de desprezo, fechou a porta sem dizer boa-noite. A Sra. Wanda, desconfiada do acontecimento, despediu-se de Gustavo e fechou sua porta. E o Sr. Baulter andou cinqüenta metros, onde se encontrava sua casa.

Chegando, subiu direto pro seu quarto, onde se encontrava Sophia. Vestia uma camisola fina, de seda. Linda, com traços arredondados e sutis. Uma bela moça, desejada por muitos homens durante as festa e noitadas que freqüentava. Sua garganta estava cortada de tal forma, que um movimento brusco separaria a cabeça do corpo. Gustavo encontrou ao lado da cama um fio de nylon, coberto de sangue.

- Foi com isso que ele a matou – pensou Gustavo

Retirou a camisola da irmã, verificou as genitais e percebeu que ela fora estuprada. Revoltou-se, desceu as escadas, pegou um copo e o encheu de wisky. Gustavo tinha muito medo de chamar a polícia ou qualquer outra pessoa que ficasse sabendo do acontecimento. Sem saber o que fazer, ficou bebendo. Bebeu toda a garrafa e desmaiou. Amanheceu.

Ao acordar, foi direto ao banheiro. Lavou seu rosto. Olhou novamente sua irmã. Estava despida. Preparou um café e sentado na mesa da cozinha pensava em seu grande dilema. Não sabia realmente o que fazer. Chamar a polícia? Acusar sem ter provas o Sr. Clast? Chamar qualquer outra pessoa?

Ouviu-se a campainha, era o carteiro, trazia consigo o jornal de quarta-feira e uma carta misteriosa, que dizia:

“Sr. Baulter, sinto lhe informar que a faca de corte fino que o Sr. encomendou só chegará a sua casa amanhã pela manhã. Muito boa a compra de tal arsenal, ótimo para cortar carnes finas como peixes e frangos. Desculpe-me pelo incômodo. Alberto Souza.”

Afinal, quem era esse tal de Alberto Souza? Gustavo nunca ouvira falar desse homem. Mentalmente fez uma ligação direta entre a morte de sua irmã, a faca e o Sr. Clast.

- Óbvio! Iria cortar o pescoço da minha irmã com essa faca! Como houve o atraso resolveu matá-la com o fio de nylon – exclamou largando a carta no chão.

Correu para a rua em busca do carteiro. Queria saber a origem da carta, mas não o avistou mais na região.

Voltou para casa. Vestiu sua casaca. Limpou todo o sangue de sua irmã e vestiu-a com a camisola de antes. Deixou tudo arrumado, espalhou cloro no chão e por toda a casa para não levantar cheiro de defunto e assim não alarmar os vizinhos.

Trancou a casa e, pela primeira vez, trancou a segunda fechadura na parte inferior da porta.

Andou os cinqüenta metros que separavam sua casa da do Sr. Clast, chegando lá, tocou a campainha. Ninguém atendeu. Encostou-se à maçaneta. E com um leve toque, abriu a porta que se encontrava destrancada. Entrou, caminhou na sala. Era um ambiente escuro, iluminado apenas por uma fraca lâmpada. Chegou à cozinha, reparou uma grande coleção de facas e tesouras. Voltou à sala e percebeu que sobre a mesa havia uma carta lacrada, com destino ao Sr. AS de Pinheiros. Gustavo reconheceu as inicias de Alberto Souza. Um único lance de olhar pela janela que dava pra rua, percebeu Roberto chegando. Pegou a carta e correu pra se esconder no armário

- Se ele me encontrar, vai me matar – pensou – mas agora tenho certeza que foi esse crápula que assassinou minha irmã.

Gustavo tinha todos os motivos do mundo para pensar isso. Pois além de ver toda a coleção de facas, sabia que Roberto constantemente tentava seduzir Sophia na padaria. Os vizinhos já haviam comentado que Roberto a observava chegar em casa na madrugada e mesmo numa noite, parou-a para ofendê-la sobre seus amantes. Sophia nunca contara isso ao irmão, contava à Sra. Wanda que, medindo as palavras e omitindo alguns fatos, contava a Gustavo. Porém esse não julgava de tal importância, assim esquecendo depois de um ou dois dias.

Roberto voltava da padaria. Entrou, encostou-se sobre sua poltrona, devido a problemas de saúde, não bebia nada alcoólico, tomava apenas água em um copo de vidro. Acendia um cigarro e lia o que sobrou para se ler do jornal. Gostava muito das noticias de óbitos. Largou o jornal e correu para, em sua escrivaninha, escrever uma carta a Alberto Souza. Não gostava de telefone, e devido a sua idade, não possuía nenhuma intimidade com qualquer outro meio de comunicação, principalmente o virtual.

Gustavo, tremendo, saiu de fininho do armário. Tentou caminhar pela porta até que tropeçou no jornal largado no chão. Com o seu tropeço, esbarrou em um vaso que caiu no chão e fez um barulho que até as pessoas presas no trânsito das Marginais ouviram, tamanho estrondo. Roberto levantou e dirigiu-se a sala.

- O que faz aqui, seu caluniador?! Estava me espionado? Tentar me incriminar por mais uma de suas loucuras? – disse o velho

- Agora tenho certeza de que foi o senhor que matou minha irmã! Porque tal coleção de facas? Qual ligação é a sua com Alberto Souza? E que faca é essa que encomendou para corte fino?

- Não é da sua conta! Está louco?! Antes eu era caçador. Mas isso não é da sua conta. Saia imediatamente de minha casa, seu louco. Vou denunciá-lo por injuria.

Roberto correu até a porta. Gustavo, com medo do velho, correu até a cozinha, pegou uma faca e gritou:

- Fique longe de mim seu velho louco!

O capenga persistiu para que o jovem largasse a faca, aproximou-se, e com um movimento único, Gustavo esfaqueou Roberto. Caiu no chão, morto. Gustavo, aterrorizado, correu para sua casa, encostou-se em seu sofá e, de tão perturbado e confuso, acabou adormecendo.

Acordara às oito da noite, o cheiro da carniça do corpo de sua irmã impregnava toda a casa. Não poderia chamar a polícia, pois o maior suspeito fora assassinado. Não podia enterrá-la num cemitério, para não alarmar os vizinhos. Solução, Gustavo colocou sua irmã num saco de lixo preto. Jogou no saco restos de alimentos, depois levou o corpo para a casa de Roberto Clast. Lá fez o mesmo com o corpo do velho. No caminho de volta encontrou a Sra. Wanda.

- Olá Sr. Baulter! O que faz com esse saco de lixo? – perguntou a senhora.

- Nada, Dona Wanda. Estou tentando vender umas antiguidades, que encontrei em minha casa, ao Sr. Clast. Porém, não o encontrei em casa.

- Ok Sr. Baulter. Irei preparar o jantar ao meu marido. Boa noite, até logo – a senhora despediu-se com um olhar parco. Não acreditava no que Gustavo dizia e sabia que algo estranho estava acontecendo.

Chegando em casa, Gustavo percebeu que estava encrencado mais do que nunca. Nos fundos enterrou os corpos de Sophia e Roberto. Achava estranho não sofrer mais pela morte de sua irmã. Subiu ao quarto, retirou sua casaca e percebeu que faltara um pedaço de seu estofado. Mirou e viu que fora esgarçado à força. Olhou em volta da cama, limpou seu quarto, desinfetou tudo. Olhou debaixo da cama e encontrou o pedaço. E rente ao fragmento de sua casaca estava a unha do indicador esquerdo de Sophia. Não entendera porque a irmã fizera aquilo. Voltou à sala. Plena uma hora da madrugada a campainha tocou. Era Alberto Souza.

- Aqui está Sr. Baulter sua encomenda. Vim entregar pessoalmente, porque amanhã foi anunciado greve no correio.

Gustavo não entendia o que o Sr. Souza fazia plantado em sua porta, na sua frente, àquela hora e com aquele utensílio que jurava não ter encomendado.

- Mas, meu senhor, eu não encomendei nada! – exclamou Gustavo

- Claro que sim, meu bom Baulter. Encomendou semana passada e pagou em dinheiro vivo. Dizia ser útil para corte de carnes finas, e eu aqui a trouxe.

Com muita pressa, Alberto Souza, deixou o objeto na mão de Gustavo. Despediu-se e partiu. O jovem estava cada vez mais confuso. Dirigiu-se para sua escrivaninha e abriu o embrulho. Era um ótimo instrumento. No punho estavam gravadas as inicias G.B em ouro folheado. A lâmina cortou uma lasca da escrivaninha.

- Como pode. Não encomendei isso – exclamou e logo depois pensou – Se realmente paguei devo ter um recibo.

Gustavo começou a retirar todas as gavetas da mesa. Procurou no armário todos os envelopes, papéis e documentos. Numa gaveta achou um frasco. Gustavo na hora lembrou o porquê de existir aquele frasco. Era um remédio. Um forte remédio depressivo. Gustavo achou perto do frasco a carta de alta do manicômio da Vila Prudente. Junto, os recibos de pagamentos mensais de sua internação. Verdade. Gustavo já fora internado sim. Era considerado um caso de dupla personalidade. Ao sentir prazer sexual, transformava-se em outra pessoa. Para não ser preso pelo assassinato de uma menina, há dez anos atrás, fora hospitalizado no manicômio.

Estava cada vez mais desnorteado. Tentava não acreditar que pudesse ter tido uma recaída na doença. Encontrou o recibo do Sr. Souza. Realmente, estava assinado Gustavo Baulter. Um punhal no valor de duzentos e cinqüenta reais. Gustavo comprara mesmo um punhal.

Tocou-se a campainha. Era a Sra. Wanda. Ouvira barulho e queria saber se Gustavo estava bem. O jovem abriu a porta. A senhora entrou. Reparou aquela bagunça. Viu o punhal sob a mesa. Olhou a casaca de Gustavo manchada de sangue no colarinho. Virou-se para o jovem e perguntou.

- Sr. Baulter, fui até a casa do Sr. Clast e encontrei a porta aberta. Entrei, não o encontrei lá. O chão da cozinha estava sujo de sangue e uma de suas facas estava fora do lugar. Percebi também um sumiço há três dias de sua irmã. Não a vi na padaria, indo pra faculdade ou voltando de mais uma de suas noitadas. E agora me deparo com o senhor e seus sapatos sujos de terra, sua casaca com sangue, um punhal na mesa. Sr. Baulter o que está acontecendo aqui?

Gustavo olhava a senhora com um olhar vago. Com um sorriso cético e sarcástico murmurou:

- Há horas, minha querida “Wandinha” que me sinto estranho. Sinto-me diferente. Ajo de forma estranha. Tem vezes que não consigo controlar meus impulsos. Sabe o que eu acho? Que a senhora encontrou um louco. E esse sou eu!

A senhora deu dois passos para trás. Virou-se e correu até a porta. Gustavo a segurou pelo braço.

- Socorro! Socorro! – gritava a senhora

-Cala-te velha intrometida. Isso é o que se tem por cuidar da vida alheia – Gustavo tentava tampar a boca da velha com a mão.

Não precisando fazer muita força, levou-a até seu quarto, amordaçou-a e amarrou-a na cama com tiras da camisola de Sophia. Gustavo voltou para a sua sala. Arrumou todos os papéis e documentos. Foi até a cozinha e bebeu um copo de wisky. Ascendeu um cigarro e arrumou uma mala. Colocou apenas duas camisas, uma calça jeans e um par de cuecas e meias. Voltou à sala, largou lá a mala. A casa estava toda arrumada. Pegou o seu punhal. Passou álcool e subiu até seu quarto. Lá encontrou a senhora chorando e tentando se soltar. Olhou à senhora e disse em voz meiga e suave:

- É mais forte que eu! Não posso evitar!

Encravou a faca do pescoço. Girou a faca na garganta e um esguicho de sangue escorreu no rosto de Gustavo. Retirou o punhal, desceu as escadas e foi até a cozinha. Lá limpou a faca com álcool e sabão. Limpou seu rosto e penteou os cabelos. Voltou ao quarto.

- Pelo menos essa velhota não fez muita lambança em meu dormitório – pensou sorrindo ironicamente.

Pegou em seu guarda-roupa uma maleta. Nela continha todas as suas economias mais as de sua irmã. Uma soma total de quase sessenta mil reais. Desceu com a maleta. Desligou as luzes, saiu de casa e trancou as duas fechaduras. Estava fora de sua casa com as duas malas. Pegou a chave e jogou-a no bueiro, na sarjeta.

Caminhou e partiu.

Uns ter-no-iam visto na Estação da Luz. Outros se quer souberam de sua existência.

Caique Franchetto
Enviado por Caique Franchetto em 18/04/2010
Código do texto: T2204673
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