A linha
Suas mãos balançavam no ar, farfalhava o vestido verde, bebia uma sequencia incontável de copos de café, enquanto percorria o espaço livre do quarto de um lado ao outro. Era uma ansiedade besta, como se algo pudesse acontecer de novo ou alguém empurrasse a pesada porta, com a expressão dura e repreensiva.
Diferentemente dos moradores daquela avenida, Joana se achava numa casa cercada, entre dois blocos grandes de prédios recentes de quinze andares cada um. Uma casa modesta, mas com o leve toque de refinamento do século retrasado. E com a morte de sua avó, única parenta viva até o último mês, ela se sentia presa à residência secular, onde quadros empoeirados e relógios cucos emolduravam a parede, sob a luz forte do verão.
O cansaço tomou-lhe a alma. Passara o último domingo empacotando e embrulhando pertences antigos. Como não possuía admiradores nem queridos amigos, vivia sozinha. Joana aparentava mais idade do que realmente possuía. Descuidada e com o tempo e o trabalho sempre fora de controle, perdeu a juventude e a vaidade atrás do sustento diário, vivendo o drama da cidade grande, onde a faixa de poluição, sujeira e pobreza atrelava-se à vida das pessoas e transformava tudo em caos.
Exausta e ao mesmo tempo aliviada, pensou que toda lembrança ruim seria carregada com os destroços e entulhos daquela casa velha e pesada do passado cheio de desgraças e gritos. Mas não era isso que importava, afinal de contas, o que tinha de ter acontecido já havia sido.
Olhando o teto, encarando o papel de parede descascado, as flores do desenho desbotando com o tempo, Joana pôs-se a lembrar de sua última conversa com a avó.
- Sabe, eu sei que você se colocou contra da última vez que tocamos nisso, Joana. Mas está na hora de vender essa casa.
Joana estava calada, tentando entender aquilo.
- Por muito tempo, vivi minha vida aqui, vi meus filhos crescerem, nascer um imenso amor de nossa família. Porém, muito do que nasceu também teve de partir – disse pesarosa. – E o que restou disso somos nós duas. Estamos sozinhas no mundo, minha querida. Mudaremos-nos em breve para um lugar amplo. Disseram que o terreno é valioso, querem pagar um alto valor.
Mas isso não aconteceu para as duas. Joana evitava reviver lembranças do funeral recente, onde sua avó descansava numa tumba profunda. Uma cerimônia triste, depressiva e com um pequeno buquê que ela carregou sozinha, enquanto fantasmas do passado sentavam sob a lápide e esperavam para que o mundo dos mortos fosse invadido pela presença da distinta senhora.
E nisso, os meses correram e ela se encontrava ali parada sobre a cama de casal, analisando de olhos fechados o seu passado, as rugas apertando, os pés de galinha ganhando marca, mas não se arrependia do que fez.
Foi quando caiu num sono profundo, que pôde resgatar uma lembrança de um passado recente. Uma lembrança clara, como uma bebida transparente, que não deixava evidente suas substâncias e segredos. Uma memória evidente, real, como a penumbra de um quarto de uma adolescente doente, que os vizinhos sentiam pena, afogando os namoros perdidos, as decepções da vida, sangrando por dentro e vigiando tudo a sua volta com seus olhos felinos. Um baque surdo, a escuridão cada vez mais presente no alvorecer do dia.
Evidentemente, tudo passara de um sonho. Tolo, sim. Acordou assustada, no começo da noite, gritando asneiras para ninguém. Joana suava gotas frias e, por um segundo, pensou estar acompanhada na casa. Naquela casa velha e com ranhuras na madeira desgastada, no pó acumulado durante as semanas que se seguiram. Mas que bobagem aquilo tudo. Se deixar apossar por um pesadelo sem sentido...
Levantou-se, não permitindo o nervosismo retornar, lavou o rosto sem olhar no espelho. Com os olhos cansados, tomada de certa preguiça da sua folga do dia, procurou o controle remoto e ligou no telejornal da noite.
De fato, tudo estaria acabado em alguns dias. Se tornaria passado e ela poderia desfrutar um pouco do que a vida havia tirado dela.
Como um passe de mágica, as situações foram se encaixado à favor de Joana. A casa de sua avó veio abaixo, embolsou o dinheiro do terreno valioso e dado certo desespero que lhe abateu nas noites de inverno, pressentiu que não seria justo permanecer naquela cidade. O passado se fazia lá, o mal eminente, silencioso.
Pois, então, girou as chaves e ganhou estrada em poucos minutos.
Estava a quilômetros de sua cidade quando aconteceu. Flashes e imagens desconexas voltavam à sua mente em frações de segundos, rapidamente. Um drink, uma noite amável, risos e abraços, despedidas e boa noites. Joana andando em direção à rua, rindo de si mesma, pensando no tempo suficiente para um veneno ativar no corpo de uma pessoa. Não muito, claro. Sendo idosa, menos ainda. O sangue fervia em suas veias, pulsando e o coração saltando à garganta tamanha a excitação que seu feito lhe causava. Um crime perfeito! E ela, uma perfeita assassina bem-sucedida, uma incansável e astuta arquiteta de mortes. Fora fácil demais deixar que alguém se confundisse e ganhasse a culpa daquilo tudo e acumulasse anos dentro de uma jaula. Não sentia remorso. Ao contrário, sentia-se com poder, com uma pontada de alegria, endinheirada. E era isso que importava para ela. Seus inimigos não ririam mais na sua cara. Sua vida passaria do tédio e escuridão para algo novo, impressionante e iluminado que a aguardava no fim daquela trilha cinza de asfalto, no fim de uma linha.
Era o fim da linha.