Escuridão minha
Não conseguia dormir. Mais uma vez liguei a televisão e nada além daquele programa. Desliguei-a. Fui à janela. Na rua nada. Apenas um carro estacionado e o vento. Olhei o relógio. Meia hora passada. Peguei um livro, mas não queria ler. Ouvi uma lata de lixo cair na rua. Finalmente algo rompeu meu momento pessoal, íntimo. Corri à janela e mais uma vez pude vê-lo. Imundo. Bêbado. Mal conseguia se apoiar nas pernas. Estava deitado, encostado num poste. Pude observar seu rosto e percebi nele um riso discreto. “Como uma criatura assim ainda tinha a pretensão de sorrir?”. Não importa. Importa que não sou dado a sorrisos. Não sorrisos verdadeiros. Apenas aqueles que solto nas reuniões familiares ou para agradar a vizinhança.
Deixei o bêbado de lado e fui para a cama. Fechei os olhos, mas a lembrança, a figura do bêbado me incomodava. Mais uma vez não pude dormir. Sentei-me. A irresistível tentação de olhá-lo pela janela novamente apossou-se de mim. Levantei e olhei. Ele permanecia imóvel com o mesmo riso sinistro no rosto.
“Isso não pode ficar assim”, pensei. “Ele tem que pagar pelo que está me fazendo”. Não conseguia dormir e a presença do bêbado era a responsável por isso. Fui ao banheiro, abri o armário. Uma infinidade de remédios. Dizem que a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem. Bastaria escolher a combinação certa e poderia dormir tranquilamente. Peguei alguns frascos e os levei para a cozinha.
Peguei um copo, coloquei água nele. Da janela da cozinha o bêbado era ainda mais nítido. Aproximei-me do vidro e pude perceber sua roupa com detalhes. Era suja. Possuía alguns rasgados. Isso confirmava que aquela criatura estava impregnada de uma sujeira que ultrapassava seu corpo. O pedaço de cobertor que trazia na mão revelava o esforço do bêbado em enfrentar a noite. “Que esforço? Ele nem deve pensar nisso. Aquele corpo é um túmulo cheio de vermes e drogas, no qual a vida já se extinguira no momento em que se entregou ao vício”. Joguei a água do copo fora. Olhei os frascos de remédio. Seria injusto desperdiçar algo que me custou caro. Aquele bêbado era para mim como um rato, e como um rato deveria morrer.
Fui até a despensa. Abaixei-me e retirei uma caixinha que ficava guardada embaixo do armário. Abri-a. Sentado no chão, lembrei-me que mamãe havia me dado aquele veneno para matar os ratos que apareceram quando a casa estava sendo reformada. Senti gratidão pelo presente de mamãe. Sem saber ela me dera a solução para a minha insônia.
Voltando para a cozinha, abri a geladeira e enchi o copo de leite. Coloquei cinco grãos do veneno no leite. Achei pouco. Coloquei mais cinco. Peguei a colher e mexi o líquido. Enquanto mexia, olhei mais uma vez para a janela. Pensei em acender a luz, mas algum vizinho poderia perceber. Preferi, então, continuar apenas com a claridade da rua. “Será que conseguiria cometer tal ato? Afinal de contas, um professor renomado, adorado pela família, admirado pela vizinhança, deveria ao menos refletir sobre um ato como este”. Não refleti. Não gosto do papel que me foi dado.
Abri a porta. Um vento frio entrava sob meu pijama. Olhei para os lados e não vi ninguém. Cheguei perto do bêbado e percebi que ele havia derrubado minha lata de lixo. “Desgraçado. Amanhã terei de lavar a calçada”. Parei e senti o odor que vinha daquele homem. Por alguns instantes senti um arrepio, gostei daquele cheiro, que era uma mistura de lixo, álcool e do suor que aquele homem trazia preso a si, na sua sujeira. Inspirei o ar profundamente, para aproveitar um pouco mais aquele odor, quando um pensamento veio: “Como posso gostar disso?” Tentei não pensar. Observei os detalhes do bêbado. A barba deveria estar infestada de piolhos, as unhas sujas revelavam dias e noites sem o contato com a água. “Meu Deus, esse homem é o oposto de mim. Ele sou eu, e por isso, devo matá-lo! Ele é a parte que quero esconder!”
Segurei o copo com firmeza com as duas mãos. Com o pé sacudi o bêbado, que se mexeu, mas não acordou. Chutei-o com mais força e ele abriu os olhos. Um medo me tomou, mas não consegui deixar de encará-lo. O bêbado, levantando vagarosamente a cabeça olhou-me e abriu um sorriso. Aquele sorriso revelou que embaixo daquele boné vermelho se escondia uma boca sem dentes. Tive a certeza de que o bêbado era eu, pois seu sorriso era verdadeiro, singelo. Por um instante, pensei em poupá-lo da morte, mas era tarde. O sorriso do homem não me despertou piedade, e sim ódio. “Como aquela parte de mim, tão maltratada, tão surrada pela vida, sorria verdadeiramente?” Eu precisava dormir, e para isso, deveria acabar com aquela situação depressa. Ofereci o leite.
O homem, tentando se sentar, apoiou as mãos no chão e ergueu-se um pouco. Eu, com o copo estendido, odiava aquela lentidão, e com o olhar, implorava para que ele bebesse o leite o mais rápido possível. Ao pegar o copo, o bêbado segurou um dos meus braços. Assustei. Senti aquela mão grossa, áspera. Ele disse sorrindo:
-- Ainda bem que existem pessoas boas neste mundo! Deus lhe pague pela sua generosidade! - o bêbado disse estas palavras e bebeu o leite de uma só vez, deixando vir à tona a fome de quem há muito não comia nada.
Abri um dos olhos e pude ver que o sol já estava alto. Fazia tempo que eu não dormia tão bem. Sentei-me na cama, espreguicei-me. Fui até a cozinha. Abri a geladeira. Foi então que ouvi algumas pessoas conversando na minha calçada. Cheguei até a janela e vi o carro da polícia. Olhei para o poste e não vi vestígio do bêbado. “Será que ele havia escapado?” Vi que o policial vinha em direção à minha casa. Esperei que ele chamasse, abri a porta:
-- Boa tarde!
-- Boa tarde! – respondi.
-- Sinto muito pelo o que aconteceu na sua porta senhor!
-- O que aconteceu? – perguntei.
-- Sabe aquele bêbado que vivia nas ruas do bairro? Ele foi encontrado morto aqui na sua calçada!
Respirei, mesmo que na alma, aliviado:
-- Morreu?!? Como assim?
-- O senhor sabe. Drogas, bebidas, não há quem agüente uma vida assim! – o policial disse isso encostando-se à parede.
-- Mas por que não me acordaram? – insisti.
-- Sua vizinha achou melhor não lhe incomodar com isso. Eu vim aqui lhe contar porque o vi pela janela e achei que fosse conveniente.
Na tentativa de encerrar rápido aquela conversa, chamei o guarda para que entrasse.
-- Não, tenho que ir, fica pra outra vez! Mas de qualquer forma, peço-lhe desculpas pelo incômodo! Passar bem!
O guarda apertou minha mão e se foi. A empregada da vizinha varria a casa da frente. Chamei-a:
-- Oi, tudo bem? Queria um favor seu. Será que você varreria meu passeio? Eu lhe pago.
A mulher olhou a lata de lixo virada e sorriu:
-- Que isso! Eu limpo essa bagunça em dois minutos! Não precisa pagar.
Disse isso e já saiu juntando o lixo do passeio. Agradeci, fechei a porta e fui para a cozinha preparar algo para comer. Enquanto fatiava o presunto fiquei olhando aquela mulher juntando o lixo. Aproximei-me da janela e me irritei com a submissão alegre dela, que assoviando, juntava aquela sujeira. Vi nela outra parte de mim que queria deixar escondida.