Lembranças perdidas.
Era um dia quente e quieto, quando eu havia acordado sem nem mesmo saber meu nome.
Levantei-me da cama afim de pegar um copo de água e me acalmar. Mas para a minha surpresa, a porta do quarto estava trancada.
Não era uma porta qualquer, pois nela havia uma pequena janelinha de vidro com a qual podia se ver o lado de fora.
O que era aquilo afinal?
Não consegui me conter e acabei gritando muito alto. Não demorara muito tempo e uma mulher vestida de branco abrira a porta.
-Jéssica, que bom que acordou!
Jéssica? Esse era meu nome? O que afinal havia acontecido comigo?
Olhei para os olhos daquela jovem moça que talvez fosse uma enfermeira.
-O que esta havendo?.-Murmurei.
Ela simplesmente sorriu e sentara na cama.
-Você precisa descansar, deite-se.
Eu não me sentia cansada, então resolvi não obedecê-la.
-Onde estou?
-Jéssica, se você não se deitar eu terei de te dar um calmante.
Rendendo-me ao olhar sério e surpreendentemente ameaçador daquela mulher de branco, eu me deitei.
-Agora você irá me contar?-Desafiei-a, mas percebi que aquilo foi um erro.
-Por hoje só posso lhe informar que sou uma médica, qualquer coisa que precisar é só me chamar.
Acabei fazendo uma careta com a resposta.
-Onde estão meus pais?Eu tenho pais, certo?
A médica apenas sorriu.
-Descanse Jéssica, e fique quietinha ok?
A médica então me dera às costas, deixando-me sozinha naquele quarto branco e sem vida.
Quando verifiquei que ninguém me observava, levantei-me da cama e fui novamente em direção á porta, a fim de descobrir o que era aquele lugar.
A porta estava aberta, talvez a médica se esquecera de trancar.
Sorri com a idéia de sair daquele quarto vazio e inútil, então comecei a andar em um corredor escuro e silencioso.
Havia vários quartos trancados, lembrava vagamente um hospital psiquiátrico, e a cena não me era estranha. Eu estava recuperando minha memória?
Suspirei profundamente ao caminhar em direção ao fundo do corredor escuro.
Foi quando vi uma pequena luz amarela ao caminhar mais adiante. Eu sorri ao perceber que não havia ninguém nela, pois não ouvia vozes.
Quando finalmente cheguei, soube que era uma sala, talvez uma sala de reunião. Mas o que realmente havia me chamado a atenção, fora um folheto pendurado na parede perto da lareira a cujo fogo iluminava a sala.
HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Eu tive de ler duas vezes para acreditar em meus próprios olhos. Um hospital psiquiátrico?
Suspirei profundamente e me virei em direção ao corredor, mas dessa vez eu não estava sozinha.
Uma mulher vestindo no que parecia um pijama, se aproximava de mim.
Os dentes dela eram amarelos profundos, os cabelos eram negros e compridos, pareciam que nunca haviam sido cortados.Ela aparentava ter cinqüenta anos.
-Olá Jéssica, que bom que acordou!
Eu olhei novamente para os olhos indecifráveis daquela mulher á minha frente e sorri como uma reação automática.
-Já me falaram isso antes.-murmurei, sem me preocupar em ser educada.
A mulher então fitou-me nos olhos.
-Ah! Sim, é você sim bem ai no fundo Jéssica.
Foi ai que lembrei novamente que estava em um hospício.
-Sou Helena lembra-se de mim?
-Não.-Respondi com indiferença.
-Certo, eu sabia que você não iria conseguir se lembrar, então tomei a liberdade de guardar sua memória. Você sabe ao menos quantos anos você tem?
Naquela hora tentei lembrar de minha própria imagem. Não fora totalmente inútil pois a imagem que aparecia era a de alguém com doze anos.
-Doze.-Respondi á ela calmamente, mas esta fizera uma careta.
-O que fizeram com você?
A mulher então começou a vasculhar algo em uma bolsinha que trazia consigo.
-Tome, use isso, você saberá por você mesma.
Ela me dera um pequeno espelho de ferro e sorriu.
Eu hesitei um pouco antes de olhar pra mim mesma no espelho, pois comecei a ficar com medo da pequena surpresa que teria.
Com um breve suspirar, eu então olhei. Uma garota de cabelos castanhos e compridos havia aparecido. Ela tinha olhos esverdeados assim como eu havia visto em minha pequena lembrança. Mas o rosto não era de alguém de doze anos, pois era de alguém de vinte.
Foi um grande choque, por mais que eu vasculhasse em minha memória, eu não conseguia me ver como uma garota de vinte anos.
-O que aconteceu comigo?
Helena agora me olhava seriamente.
-Ora, você matou varias pessoas achando que estas fossem te matar, então te trouxeram para cá.
Eu suspirei vagamente e tentei achar meu lado obscuro, mas não me veio nada á mente.
-Como eu poderia ser essa psicopata que acha que as pessoas vão matá-la?
E Porque não me lembro disso?
Helena dera um pequeno sorriso.
-A falha de memória é um experimento que esse hospital tem, eles usaram você como cobaia depois que você matou uma pessoa daqui.
-O que?.-Eu fiquei sem palavras e sem ação.
-Sim, e logo que você chegou nós ficamos amigas, e pelo que parecia você não me via como uma ameaça.
Helena sorriu divertidamente.
-Uma pena que tiraram sua lembrança.
Helena ficara quieta e imóvel.
-O que foi?-Murmurei.
-Tome, talvez comece á se lembrar.
Helena havia me dado um pequeno caderno preto com o qual uma caneta azul estava pendurada.
-Ele é seu, você me deu antes de ser um experimento.
Eu então comecei a escutar passos vindos em nossa direção.
-Helena, você esta andando de novo no meio da noite?
Helena olhou-me com ar de desprezo.
-Essa enfermeira sempre me acha.
Sem esperar que a enfermeira me visse, eu guardei o caderno no bolso que existia em minha calça.
-Helena, não sabia que estava com companhia.
Eu então notei que o olhar da enfermeira era de medo e hesitação.
-Jéssica, como saiu de seu quarto?
Então senti uma mão fria e ameaçadora pegando em meus braços. Eu não sabia se eu já havia sentido aquela sensação de pânico antes, pois sentia uma ameaça vinda daquela mulher de branco.
-Jéssica, acalme-se, ela vai te levar até seu quarto.
Helena disse calmamente segurando minha outra mão. Foi quando percebi que o medo do que estava acontecendo era irracional, então deixei que a enfermeira me guiasse.
-Eu já volto para te buscar Helena.
Quando havíamos chegado no quarto, a enfermeira apenas esperou que eu deitasse, não havia sorriso em seu rosto.
-Jéssica, dessa vez você vai ficar ai?
O que ela estava fazendo? Tratando-me como criança? Pelo que eu acabara de saber, eu já estava nos vinte anos.
-Sei cuidar muito bem de mim.-Disse com indiferença.
-Se você soubesse, não estaria aqui.-Ela disse ainda fitando-me.
Como eu não queria mais discutir, deitei-me novamente com os olhos abertos.
As luzes do quarto então se apagaram quando ouvi a porta se trancar.
Peguei o pequeno caderno que havia escondido no bolso e comecei ler com um enorme esforço, pois o quarto estava muito escuro.
A cada palavra, a cada momento que eu lia, eu ficava mais ansiosa.Era um diário escrito por mim mesma, contando em resumo minha história.
Até os dozes anos eu era uma garota feliz segundo estava escrito, mas havia acontecido uma tragédia aos meus treze anos.
Havia acontecido um assassinato dentro do pet shop que eu estava e eu não consegui fazer nada.
Quatro pessoas haviam morrido naquele dia por esfaqueamento, e a única que conseguiu fugir havia sido eu.
Escrevi que nunca mais confiaria em ninguém, nunca mais recuaria, nem que para isso tivesse que matar.
Fugi de casa e comecei a viver sozinha para aprender a viver só com o instinto de sobrevivência.
-Ah!.-Gritei, eu estava lembrando.
Varias imagens apareciam em minha mente, inclusive a das pessoas sendo esfaqueadas.
Comecei a chorar e a bater em meu travesseiro, eu estava coberta de razão desde o inicio e os médicos queriam tirar isso de mim.
Gritei mais alto e joguei o travesseiro na porta.
-Jéssica, o que aconteceu?
A médica então havia aparecido em meu quarto, os olhos assustados.
-Você, o que pensa que esta fazendo comigo sua hipócrita! Você é como todas as outras pessoas do lado de fora.
-Jéssica, eu não quero ter de chamar os enfermeiros para te dar uma medicação, então me ouça.
Eu então me sentei na cama, ainda com o ódio em meu corpo. Podia sentir que era capaz de matar novamente.
-Jéssica, queríamos que você esquecesse para o seu próprio bem, para que não sofresse mais. Esta segura aqui, eu juro á você esta bem?
Ela então me olhou hesitante, esperando talvez alguma reação de ameaça. Mas ela dera um sorriso e me abraçou.
-Aqui é a sua casa.
Meus olhos continuavam a lacrimejar com insistência, mas dessa vez, eram lagrimas de uma pequena esperança que surgia, pois naquele momento, eu soube que não precisaria mais matar, não precisaria mais ter de viver com desconfiança, pois nos olhos daquela mulher que me abraçava eu havia visto algo com a qual apenas vi com meus pais. Havia visto alguém que se sacrificaria para salvar uma vida.