Quando Pepê desapareceu
O desaparecimento de Maria da Penha, mais conhecida como Pepê, da casa do Padre Anselmo, sem deixar pistas, mas deixando muitas sombras, ocorreu assim sem mais nem menos, de um dia para o outro. Foi um acontecimento marcante na vida do pequeno povoado, uma simples parada de trem. A partir desse fato tudo passou a ser referido como antes ou depois, pelo menos em relação à história mais recente, uns anos antes, outros depois.
Eu me lembro bem daqueles dias que se sucederam porque por alguns momentos participei da história. Estava chegando de trem depois de uma ausência em que me tornara irreconhecível. Saíra dalí criança e voltava só então, mulher feita. Mal o trem virou na curva apitando solenemente e um bando de moleques que o esperavam como eu fizera muitas vezes, começou a apontar com as mãos para o vagão onde eu estava, atendendo ao comando de um primeiro e gritando: É ela! É ela! É ela! Onde? Onde? ao mesmo tempo em que dispararam como se estivessem disputando uma corrida com o trem, corrida que venceram embora chegassem à estação esbaforidos, praticamente sem fala, mas apontando os dedos em minha direção. As pessoas que estavam nas janelas e portas de suas casas, a beira linha, os acompanharam, tão esbaforidas quanto. Sendo a única mulher no vagão quase vazio fiquei deveras susrpres imaginando ter me tornado uma celebridade apenas por ter escrito alguns contos melosos em revistas femininas de circulação nacional. Mas a glória e o espanto duraram poucos minutos, pois assim que me viram descer do trem da maneira mais digna possível, como o faria uma pessoa de sucesso, eles se desinteressaram de mim. Eu não era ela. Era apenas uma desconhecida ou apenas uma reconhecida e isso lhes abateu o ânimo e foram se afastando lentamente, imersos em suas conversas, junto com o trem que partia. Coube a minha tia, que me esperava na estação, contar tudo o que estava acontecendo.
Eu estava de volta para passar uma temporada de fim de romance doido e doído e para ajudar no esquecimento mergulhei fundo nos acontecimentos da cidade. Eu não me lembrava de Pepê, foi minha tia quem refrescou minha memória. Quando o Padre Anselmo resolvera abrir mão de sua residência na sede do Município e ir viver ali naquele pequeno distrito, ninguém entendeu. Mas gostaram da idéia de ter uma pessoa importante ali, cobrindo-o de mimos. Ele passou a ocupar uma pequena casa junto a Igreja e ao Cemitério, mas um pouco distante do centro do povoado, região praticamente deserta. Ninguém queria morar perto do cemitério. Logo trouxe a mãe, uma empregada, Ludovina e a filha dela, Pepê. Eu nunca tinha visto na vida uma mulher tão feia como Ludovina, uma mulata sem cor definida, o rosto coberto de acne e manchas esquisitas, uma boca enorme que vivia rindo, olhos estranhos que pareciam estar pulando para fora do rosto. Como vivia com um turbante na cabeça diziam que não tinha cabelos. Era tão feia que logo se transformou no bicho papão da cidade. Não cheguei, porém a conviver com Pepê, uma menina quase de minha idade porque a falta de escolas para mim levou meus pais a mudarem-se para uma cidade maior e eu nunca mais tinha voltado, até então.
Tomei conhecimento da história enquanto caminhamos em direção a casa de minha tia, um carregador atrás de nós, levando a mala que indicava uma longa visita. A mãe do padre viveu pouco tempo e foi enterrada no cemitério junto a Igreja. Ludovica e Pepê continuaram a viver em companhia do Padre embora no começo todos estranhassem um Padre vivendo sozinho com uma mulher que nem era sua parente e uma criança. Mas logo se acostumaram e tiraram a malícia da cabeça porque a mulher era tão feia que duvidavam que alguém tivesse coragem de se deitar com ela. Os mais maliciosos diziam que isso não tinha a menor importância, afinal Ludovina tinha uma filha. Mas esses também foram se calando e o tempo passando. Pepê já era uma mocinha. Embora muito estranha, calada e quieta em seu canto, só cuidando das coisas da Igreja, possuía uma beleza intrigante. Parecia-se mesmo comigo, disse minha tia, e eu fiquei toda sestrosa imaginando também ter uma beleza intrigante. Quando Ludovica morreu o Padre a enterrou no mesmo túmulo de sua mãe. Foi nessa ocasião que ele construiu um verdadeiro Mausoléu, todo de mármore, com três gavetas, sendo uma subterrânea e duas na superfície. Dizia que a terceira estava destinada a ele. O túmulo era tão bonito que vinha gente de fora para visitar. Ele se destacava das outras moradias eternas, geralmente apenas um espaço coberto por cimento ou então por flores antigas. Novamente começou o falatório, pois não achavam adequado que um padre, embora já fosse um velho, continuasse ali morando sozinho com uma mocinha de uma beleza intrigante, repetiu minha tia. Ele recusou obstinadamente e a vida seguiu seu caminho, cheio de desvios. E agora a moça desaparecera por completo.
Foram dias e noites de suspense. Pepê foi procurado em todos os lugares possíveis. Os policiais da sede do Município e da Comarca se aquartelaram ali e reviraram cada palmo de terra. O pequeno rio que passava nos fundos da casa de minha avó, a lagoa onde os meninos nadavam pelados em meu tempo de menina, tudo foi esmiuçado com a ajuda do Corpo de Bombeiros que veio de longe. Nada. Fazendas visitadas. Os maquinistas e todos os ferroviários que trabalharam nos dias do sumiço foram interrogados. O dono do único carro que existia no povoado e que às vezes era utilizado como táxi foi interrogado. Um jovenzinho que morava com a mãe doente e com quem Pepê andava de namoricos foi interrogado á exaustão. Tinha sido o último a ser visto com ela na tarde anterior, andando na linha de trem. Ela, com seu vestido de bolinhas vermelhas que também estava desaparecido. Pepê tinha sumido sem deixar rastros. Na ocasião todos nos tornamos um pouco detetives, esboçando teorias e participando de buscas. Inclusive eu, acompanhada do rapaz mais bonito do lugar, com covinhas no rosto e olhos verdes. Tudo sobre a chefia do Padre Anselmo, o homem mais inteligente da região e que se mostrava incansável e desconsolado. Quando decidi ir embora, já com o coração mais leve, tudo estava voltando ao normal. Fui e nunca mais voltei. Esqueci o assunto.
Minha tia morreu e eu tive que novamente voltar ao povoado, agora uma pequena cidade independente e com a população dobrada. Voltei para colocar em ordem os assuntos dela que há muito morava com meus pais e deixara a casa abandonada como herança para mim. Quem foi me buscar na Estação foi o meu companheiro de investigação no desaparecimento de Pepê, agora um sólido advogado, mas com os mesmos olhos verdes e covinhas no rosto que me encantara. Foi me buscar de carro e ia me hospedar no hotelzinha de sua propriedade como convidada, falou ele. Uma aliança brilhava em sua mão esquerda e ele disse, como se desculpando por não ter me esperado: agora tenho três filhos. E continuou: - Lembra-se da última vez que esteve aqui? Confirmei com a cabeça e ele continuou: Pois acharam Pepê. Ela apareceu, finalmente.
Agora estou aqui, no cemitério, assentada no túmulo construído pelo Padre Anselmo para ser sua última morada, olhando a cidade que cresceu lá embaixo e escrevendo esta história.
Depois que Pepê se foi o Padre definhou aos poucos. Adoeceu. Um outro Padre, residindo na Sede, ocupou o seu lugar. Padre Anselmo deixou de realizar suas obrigações e mal e mal rezava um terço na Igrejinha, de vez em quando. Mas enquanto pôde andar ia todos os dias ao cemitério e cuidava daquele estranho mausoléu como se fosse o seu único bem. Estava sempre limpo e florido. Há uns cinco anos tornou-se completamente inválido passando os dias na cama como um morto vivo. E o túmulo abandonado cobriu-se de sujeiras e foi esquecido. Até que a semana passada morreu. O Prefeito deu ordem ao coveiro para que preparasse o túmulo, queria fazer uma cerimônia pomposa de despedida ao Padre. Ficou todo limpo e florido outra vez e todos rumaram para o cemitério para enterrar o Velho Padre. O mausoléu tinha sido construído sobre o local onde a mãe do padre tinha sido enterrada, de modo que as duas gavetas colocadas na superfície pudessem ser retiradas totalmente do interior, puxadas para fora. Como Ludovica tinha sido colocada na primeira gaveta ao res do chão, iam agora colocar o Padre na última. Foi um pouco demorado porque a gaveta estava emperrada pelo desuso, mas enfim ela começou a se movimentar e a ser puxada para fora. Foi aí que tudo aconteceu: na gaveta presumivelmente vazia estava um esqueleto que mantinha ainda incólumes os longos cabelos negros e o vestido de bolinhas vermelhas que Pepê usava no dia em que desapareceu. Um mistério tinha sido desfeito, mas a verdade continuaria para sempre escondida.
O desaparecimento de Maria da Penha, mais conhecida como Pepê, da casa do Padre Anselmo, sem deixar pistas, mas deixando muitas sombras, ocorreu assim sem mais nem menos, de um dia para o outro. Foi um acontecimento marcante na vida do pequeno povoado, uma simples parada de trem. A partir desse fato tudo passou a ser referido como antes ou depois, pelo menos em relação à história mais recente, uns anos antes, outros depois.
Eu me lembro bem daqueles dias que se sucederam porque por alguns momentos participei da história. Estava chegando de trem depois de uma ausência em que me tornara irreconhecível. Saíra dalí criança e voltava só então, mulher feita. Mal o trem virou na curva apitando solenemente e um bando de moleques que o esperavam como eu fizera muitas vezes, começou a apontar com as mãos para o vagão onde eu estava, atendendo ao comando de um primeiro e gritando: É ela! É ela! É ela! Onde? Onde? ao mesmo tempo em que dispararam como se estivessem disputando uma corrida com o trem, corrida que venceram embora chegassem à estação esbaforidos, praticamente sem fala, mas apontando os dedos em minha direção. As pessoas que estavam nas janelas e portas de suas casas, a beira linha, os acompanharam, tão esbaforidas quanto. Sendo a única mulher no vagão quase vazio fiquei deveras susrpres imaginando ter me tornado uma celebridade apenas por ter escrito alguns contos melosos em revistas femininas de circulação nacional. Mas a glória e o espanto duraram poucos minutos, pois assim que me viram descer do trem da maneira mais digna possível, como o faria uma pessoa de sucesso, eles se desinteressaram de mim. Eu não era ela. Era apenas uma desconhecida ou apenas uma reconhecida e isso lhes abateu o ânimo e foram se afastando lentamente, imersos em suas conversas, junto com o trem que partia. Coube a minha tia, que me esperava na estação, contar tudo o que estava acontecendo.
Eu estava de volta para passar uma temporada de fim de romance doido e doído e para ajudar no esquecimento mergulhei fundo nos acontecimentos da cidade. Eu não me lembrava de Pepê, foi minha tia quem refrescou minha memória. Quando o Padre Anselmo resolvera abrir mão de sua residência na sede do Município e ir viver ali naquele pequeno distrito, ninguém entendeu. Mas gostaram da idéia de ter uma pessoa importante ali, cobrindo-o de mimos. Ele passou a ocupar uma pequena casa junto a Igreja e ao Cemitério, mas um pouco distante do centro do povoado, região praticamente deserta. Ninguém queria morar perto do cemitério. Logo trouxe a mãe, uma empregada, Ludovina e a filha dela, Pepê. Eu nunca tinha visto na vida uma mulher tão feia como Ludovina, uma mulata sem cor definida, o rosto coberto de acne e manchas esquisitas, uma boca enorme que vivia rindo, olhos estranhos que pareciam estar pulando para fora do rosto. Como vivia com um turbante na cabeça diziam que não tinha cabelos. Era tão feia que logo se transformou no bicho papão da cidade. Não cheguei, porém a conviver com Pepê, uma menina quase de minha idade porque a falta de escolas para mim levou meus pais a mudarem-se para uma cidade maior e eu nunca mais tinha voltado, até então.
Tomei conhecimento da história enquanto caminhamos em direção a casa de minha tia, um carregador atrás de nós, levando a mala que indicava uma longa visita. A mãe do padre viveu pouco tempo e foi enterrada no cemitério junto a Igreja. Ludovica e Pepê continuaram a viver em companhia do Padre embora no começo todos estranhassem um Padre vivendo sozinho com uma mulher que nem era sua parente e uma criança. Mas logo se acostumaram e tiraram a malícia da cabeça porque a mulher era tão feia que duvidavam que alguém tivesse coragem de se deitar com ela. Os mais maliciosos diziam que isso não tinha a menor importância, afinal Ludovina tinha uma filha. Mas esses também foram se calando e o tempo passando. Pepê já era uma mocinha. Embora muito estranha, calada e quieta em seu canto, só cuidando das coisas da Igreja, possuía uma beleza intrigante. Parecia-se mesmo comigo, disse minha tia, e eu fiquei toda sestrosa imaginando também ter uma beleza intrigante. Quando Ludovica morreu o Padre a enterrou no mesmo túmulo de sua mãe. Foi nessa ocasião que ele construiu um verdadeiro Mausoléu, todo de mármore, com três gavetas, sendo uma subterrânea e duas na superfície. Dizia que a terceira estava destinada a ele. O túmulo era tão bonito que vinha gente de fora para visitar. Ele se destacava das outras moradias eternas, geralmente apenas um espaço coberto por cimento ou então por flores antigas. Novamente começou o falatório, pois não achavam adequado que um padre, embora já fosse um velho, continuasse ali morando sozinho com uma mocinha de uma beleza intrigante, repetiu minha tia. Ele recusou obstinadamente e a vida seguiu seu caminho, cheio de desvios. E agora a moça desaparecera por completo.
Foram dias e noites de suspense. Pepê foi procurado em todos os lugares possíveis. Os policiais da sede do Município e da Comarca se aquartelaram ali e reviraram cada palmo de terra. O pequeno rio que passava nos fundos da casa de minha avó, a lagoa onde os meninos nadavam pelados em meu tempo de menina, tudo foi esmiuçado com a ajuda do Corpo de Bombeiros que veio de longe. Nada. Fazendas visitadas. Os maquinistas e todos os ferroviários que trabalharam nos dias do sumiço foram interrogados. O dono do único carro que existia no povoado e que às vezes era utilizado como táxi foi interrogado. Um jovenzinho que morava com a mãe doente e com quem Pepê andava de namoricos foi interrogado á exaustão. Tinha sido o último a ser visto com ela na tarde anterior, andando na linha de trem. Ela, com seu vestido de bolinhas vermelhas que também estava desaparecido. Pepê tinha sumido sem deixar rastros. Na ocasião todos nos tornamos um pouco detetives, esboçando teorias e participando de buscas. Inclusive eu, acompanhada do rapaz mais bonito do lugar, com covinhas no rosto e olhos verdes. Tudo sobre a chefia do Padre Anselmo, o homem mais inteligente da região e que se mostrava incansável e desconsolado. Quando decidi ir embora, já com o coração mais leve, tudo estava voltando ao normal. Fui e nunca mais voltei. Esqueci o assunto.
Minha tia morreu e eu tive que novamente voltar ao povoado, agora uma pequena cidade independente e com a população dobrada. Voltei para colocar em ordem os assuntos dela que há muito morava com meus pais e deixara a casa abandonada como herança para mim. Quem foi me buscar na Estação foi o meu companheiro de investigação no desaparecimento de Pepê, agora um sólido advogado, mas com os mesmos olhos verdes e covinhas no rosto que me encantara. Foi me buscar de carro e ia me hospedar no hotelzinha de sua propriedade como convidada, falou ele. Uma aliança brilhava em sua mão esquerda e ele disse, como se desculpando por não ter me esperado: agora tenho três filhos. E continuou: - Lembra-se da última vez que esteve aqui? Confirmei com a cabeça e ele continuou: Pois acharam Pepê. Ela apareceu, finalmente.
Agora estou aqui, no cemitério, assentada no túmulo construído pelo Padre Anselmo para ser sua última morada, olhando a cidade que cresceu lá embaixo e escrevendo esta história.
Depois que Pepê se foi o Padre definhou aos poucos. Adoeceu. Um outro Padre, residindo na Sede, ocupou o seu lugar. Padre Anselmo deixou de realizar suas obrigações e mal e mal rezava um terço na Igrejinha, de vez em quando. Mas enquanto pôde andar ia todos os dias ao cemitério e cuidava daquele estranho mausoléu como se fosse o seu único bem. Estava sempre limpo e florido. Há uns cinco anos tornou-se completamente inválido passando os dias na cama como um morto vivo. E o túmulo abandonado cobriu-se de sujeiras e foi esquecido. Até que a semana passada morreu. O Prefeito deu ordem ao coveiro para que preparasse o túmulo, queria fazer uma cerimônia pomposa de despedida ao Padre. Ficou todo limpo e florido outra vez e todos rumaram para o cemitério para enterrar o Velho Padre. O mausoléu tinha sido construído sobre o local onde a mãe do padre tinha sido enterrada, de modo que as duas gavetas colocadas na superfície pudessem ser retiradas totalmente do interior, puxadas para fora. Como Ludovica tinha sido colocada na primeira gaveta ao res do chão, iam agora colocar o Padre na última. Foi um pouco demorado porque a gaveta estava emperrada pelo desuso, mas enfim ela começou a se movimentar e a ser puxada para fora. Foi aí que tudo aconteceu: na gaveta presumivelmente vazia estava um esqueleto que mantinha ainda incólumes os longos cabelos negros e o vestido de bolinhas vermelhas que Pepê usava no dia em que desapareceu. Um mistério tinha sido desfeito, mas a verdade continuaria para sempre escondida.