O TEMPO E A LUZ
“A luz é o sorriso da alma”
Sir Herzog Izael (1756-1806)
Pedro Beato abriu os olhos. O clarão matinal ofuscou sua visão. Permaneceu estático por alguns segundos. Olhou a sua volta, estava coberto por sangue. Os móveis do desmantelado quarto perfaziam um amontoado, indicando atividade truculenta. Roupas reviradas pelo chão. Tomado por súbito, sentiu um revólver preso entre os dedos. O pavor dominou todo seu corpo. Uma profusão de incógnitas o fazia incompreender o momento. Apurou a memória tentando lembrar-se de algo que suscitasse alguma pista. Sua mente estava desprovida de memória. Poderia tratar-se de amnésia, mas a tese logo foi descartada, lembrava-se do próprio nome e de vários acontecimentos anteriores, apenas havia uma lacuna no intervalo de segundos.
Ainda trôpego, levantou-se, deu alguns passos até a porta de entrada que estava entreaberta. Temeroso, Pedro Beato empurrou a porta e arriscou um olhar. O que viu o deixou pasmo. Estava no centro de um acontecimento único. O mundo estava dividido em dois. Do lado direito o fogo a tudo consumia. Visto por uma imaginária linha divisória, o lado esquerdo se parecia com uma tela pintada com exuberantes cachoeiras em harmonia com o canto dos pássaros.
- Papai, me ajude!
Encafifado, Pedro Beato ouviu a voz de criança suplicando ajuda. Sem tempo para raciocinar, projetou-se de encontro à cortina de fogo. Quando transpôs a barreira de chamas, rolou pelo chão e certificou-se que estava numa cidade empoeirada. Olhou para a larga avenida cercada por casas. Voltou-se, o fogo havia se extinguido. A cidade estava em silêncio. O suor frio lhe cobria a enrugada face.
- Papai, me ajude!
Novamente o pedido de socorro, agora com alarmante sonoridade. Pedro Beato seguiu o som, acreditando tratar-se de um menino. De repente, o sol matinal tombou sonado, cedendo lugar à desbotada lua.
- Papai, me ajude!
“Praga de voz que não aparece”! – gritou Pedro Beato enquanto tentava adivinhar o paradeiro do garoto. Recobrando a memória que estava carente de lembranças, Pedro Beato sentiu o passado lhe sacudir num Flash de imagens distorcidas. Algo o impeliu a virar-se e viu o autor da voz:
- Papai, me ajude!
- Estou aqui mas não sou seu pai – afirmou Pedro beato receoso.
O garoto era sua própria imagem. Não, tudo aquilo não estava acontecendo, deveria estar em meio a um pesadelo.
- Você – disse Pedro Beato apontando para o garoto – é uma invenção de minha mente, não existe.
O garoto deu alguns passos. Agora era um rapaz. Cruzou os braços para trás, deu meia volta e encarou a Pedro Beato.
- Quem sou eu agora? – perguntou o garoto.
- Pouco importa quem seja – respondeu Pedro Beato sacudindo os ombro.
- Olhe para mim.
Pedro Beato olhou e sentiu o passado lhe beijar o coração, estava vendo seu pai.
- Papai...
A figura se transformou num anão e sentou-se numa caixa de madeira. Olhou para a escuridão e disse:
- Que se faça luz!
Novamente o sol matinal nasceu com todo seu esplendor. Pedro Beato estava estático. Estaria ele diante do próprio Deus?
O anão acendeu um cigarro e olhou fixamente para Pedro Beato.
- Pode falar, não é para isso que está aqui? – salientou o anão.
- Vim até aqui seguindo a voz.
- Seguiu o eco de tua própria voz. Sabe muito bem disso.
- Porque o sangue, a arma, este lugar?
- Está vendo um orifício em sua fronte?
Pedro Beato tateou o osso frontal, sentiu a sobrancelha e correu a mão até o couro cabeludo. Uma enorme cavidade lhe chamou a atenção. Agora se certificara de que se tratava de um projétil disparado pela arma.
- Você cometeu suicídio e estava tentando voltar ao inicio da reencarnação para reverter o momento. Por isso está aqui.
Pedro Beato ficou estarrecido com a revelação.
- A você foi concedido o direito de retornar dez vezes. O que chamo de existências infrutíferas.
O anão se transformou numa idosa mulher, depois, num paraplégico. Pedro Beato reparava as consecutivas alterações com uma ponta de preocupação e viu o paraplégico se transformar num cego. A rapidez verificada nas transformações era espantosa. Encarou o cego e notou que estava olhando para uma criança chinesa. Pedro Beato fechou os olhos por um segundo, quando novamente os abriu, assustou-se com a musculosa figura de um guerreiro viking e finalmente enxergou a definitiva imagem de um anjo. Numa flexão de asas, o anjo se dirigiu para Pedro Beato e disse:
- O estarrecimento precede a inquietação da alma.
- Qual o sentido dessas aparições – perguntou Pedro Beato, apreensivo quanto à resposta.
- Você incorporou essas matérias ao longo de dez reencarnações. Para cada existência existe um propósito a ser buscado.
- Eu direcionei todas as reencarnações. Não é uma questão de mérito, e sim, fruto de minha absoluta sabedoria que suplanta qualquer tese.
- Ah! A dita tese do absolutismo concreto e inefável? Uma vez superior, o que busca nesta pretensa volta?
- Este é o parâmetro da questão. Exijo que minha aura seja dissipada para que minha alma inexista para essas fortuitas voltas.
- Alma é inextinguível.
- Se assim o fosse, a população mundial teria cem bilhões de pessoas.
- Apenas algumas almas retornam ao plano material. Algumas vagueiam num aprendizado, outras compõem o exercito de anjos.
- Exército? Com quem travam batalhas?
- Combatemos espíritos desprovidos de luz que semeiam o mal.
- Seriam almas dissidentes que se cansaram do tal “aprendizado”?
-Seria enfático afirmar o que não tem diretriz.
- Devo concluir que sou uma cobaia testando conhecimentos?
- Você busca a luz.
- simplesmente o seu criador poderia aniquilar todos os espíritos maléficos que não condizem com as normas celestiais.
- O amor não segue normas, não é determinado pelos atos, precisa ser praticado e compartilhado.
- Presumo que onde me encontro é o apocalipse, o fim dos tempos ou o reino de Deus?
- Você está virando a página de seu livro da vida. Poder ser o prólogo ou epílogo.
O enfadadiço diálogo acrescia ódio Pedro Beato.
- Fim ou recomeço! – assentiu Pedro Beato, coçando o crânio e sentindo os dedos umedecidos pelo sangue em processo de coagulação.
O anjo nada respondeu.
- Pra mim chega. Não tenciono zanzar por ai, atravessando eras para mais uma estafante existência. Tenho certeza absoluta que meu caminho não é este, minha existência é um descompasso.
- A certeza é o início das pretensões. Um espírito sem luz tende a obscurecer seus semelhantes.
- Estou decidido a romper com tudo.
- Que assim seja. A você foi legado o direito de optar entre o sim e o não.
Irredutível, Pedro Beato viu escorrer da face do anjo, solitárias lagrimas. Olhou para o céu e viu o azul desbotar e a luz quedar desanimada. Da penumbra fez-se treva.
A escuridão abraçou o mundo de Pedro Beato. Era o único ser na imensidão do nada.
-Teria eu vencido o apocalipse ou continuo a ser um mero instrumento de diminuta concepção?
Pedro Beato acendeu um cigarro e viu a chama lentamente se apagar. Olhou a brasa se acabrunhar e pensou:
- Mal pressagio ou tabaco de procedência duvidosa?
A solidão era bem vinda. Agora Pedro Beato tinha seu próprio mundo.
- Nenhum olhar é capaz de soluçar meu coração. O abandono contribuiu para meu crescimento e nada nulificará minha próxima existência.
Pedro Beato percebeu que tudo estava muito calmo para ser o apocalipse, esperava um cataclisma de incalculável proporção. Então o que traduzia tudo aquilo, o encerramento de sua alma sem a indumentária do cerimonial do fim dos tempos? Não se enxergou, havia aprendido que almas rebeladas não possuíam auras.
- Então este é o término de tudo, sem nenhuma cerimônia?
Estava como sempre quisera; alma sem aura, mapeando o próprio curso existencial. Estava pondo em prática a ferocidade de seu ceticismo e sabia que era uma maneira de esquivar-se do que lhe fosse imputado, possibilitando a busca por alternativas que resultassem em avanços por outros planos.
- Que surjam as criaturas das sombras - ordenou Pedro Beato.
Milhares de vultos se aproximaram. Olhavam para Pedro Beato e externavam todo o ódio acumulado. Em segundos se afastaram, algo os fez recuar. Havia um escudo separando-os do enviado ser.
Pedro Beato não estava entendendo. Sua presença era repugnante, ele se sentia hostilizado, não era bem vindo no mundo das trevas. Enquanto gravitava pela indignação, viu um clarão iluminar seu rosto; a claridade vinha detrás. Então se apercebeu tratar-se de sua aura, que novamente adquirira luz, ou sempre estivera iluminada.
Sem perceber, disse:
- Que se faça luz onde a memória se perdeu!
Levado por uma força que fugia a seu controle, regrediu ao tempo e estava deitado em sua cama, com o revolver apontado para sua fronte. Mirou e puxou o gatilho. O estampido do projétil atingiu a parede. Ele desviara o inicial instinto do suicídio. Olhou à sua volta, o sangue que antes impregnara o aposento, estava desaparecendo. A alvura da indumentária indicava ausência de resíduos sanguíneos.
Ainda com a arma em punho, deus alguns passos, abriu a porta de entrada e olhou para o mundo. Crianças brincavam de amarelinha. Um gari retirava a sujeira das ruas. O transito caótico ilustrava o dia-dia. Pedro Beato sentiu-se dominado por um estado de graça nunca antes presente. Admirou a vida, agradeceu a continuação de sua existência e comemorou a volta, abrindo um tinto e sorvendo a fragrância das uvas.
- Criei meu próprio abismo e nele emoldurei todos os percalços que me acompanharam nas existências anteriores. Aprendi lições que servirão de alimento para podar a captação de auras negativas. Abraço doces emoções e absorvo a magnitude da vida. Agora, na plenitude que me compete a longa caminhada; estou reinventando-me.
Pedro Beato viu um reboliço movimentar a rua. Uma troca de tiros entre policiais e bandidos. De repente uma bala perdida o atingiu, ele levou a mão à fronte sentiu o impacto do projétil e viu o sangue jorrar. Ainda com a arma em punho, arrastou-se até sua cama e contemplou o sangue tingir as roupas. Deitou-se. Viu a aura se apagar e a alma levitar separando-se da matéria. Era o pêndulo da existência que denotava o descompasso e anunciava mais uma passagem a outro estágio espiritual. Sua visão tornara-se difusa. Era como se a lente da vida estivesse desfocada. Viu um anjo ajustar o foco do tempo e uma imensa luz branca se fez brilhar. Enfim, a paz ceifava um cronológico sistema de animosidades. Pedro Beato viu a vida acontecer com o clarão da esperança.