UM FANTASMA A CAVALO
Quando éramos pequenos, eu meu irmão e nossa irmã, morávamos com nosso pai e madrasta em uma chácara, numa casa construída pelos portugueses provavelmente ainda no século XVIII, no fundo da Vila Planalto, que era então rural, quatro ou cinco quilômetros a leste do cento do Município de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Nessa mesma casa também moravam nossos avós paternos com nossos tios. Por volta do tempo em que se passa esta história, eu tinha em torno de dez anos de idade, sendo minha irmã um ano e dois meses mais velha e meu irmão um ano e nove meses menor.
A casa era enorme e tinha as portas e janelas muito altas e o teto mais alto ainda. Da grande porta de madeira da frente, no meio da parede frontal, a norte, adentrava-se a uma grande sala, que ocupava a metade esquerda do corpo principal da construção. Em cada um dos cantos dessa sala diziam que tinham sido velados defuntos. Por isto, quando, com muita hesitação, andávamos nela à noite, levávamos o lampião na frente, para ver primeiro se não haveria algum fantasma. Ou então, somente íamos a ela na presença de um adulto ou de um de nossos tios menores, que eram maiores que nós. Eu, pessoalmente, não gostava de andar na sala com as lamparinas e candeeiros da avó, que chamávamos velas, pois sabia que os mortos eram velados com velas.
Nesse tempo a sala era ocupada por nossa cozinha e sala de estar, tendo um pequeno quarto na extremidade oposta, separado da sala por um guarda-roupas e cobertores.
A direita da porta da entrada havia um grande dormitório, cuja janela estava para frente da casa. Neste dormia nosso pai com sua esposa. Após este, havia um outro, pouco menor, onde dormíamos, eu, meu irmão e nossa irmã. A Janela deste quarto abria para o oeste e sua porta devia estar há uns seis metros da porta da frente da casa. A partir do final da sala, um corredor conduzia ou final do corpo principal da casa, desembocando num corredor transversal, formado pela casa principal e a casa menor. O primeiro corredor era ladeado por dois outros quartos imensos. No da esquerda eram os aposentos dos nossos avós, onde também dormiam nossas tias pequenas, e no da direita dormiam nossos quatro tios solteiros.
Do segundo corredor se tinha acesso à cozinha da vó, na casa secundária, cujo comprimento era igual a largura da casa principal e a largura devia ser de uns quatro metros. Essa casa era dividida em duas cozinhas grandes e o forno de pão. Uma das cozinhas tinha o fogão a lenha, os armários e a mesa. A outra, tinha o fogão de lenha comprida, a talha, um paneleiro de panelas pesadas, coisas secando, ração para os bichos e outros utensílios. Numa outra peça ao lado esquerdo dessa cozinha estava o forno de pão e as lenhas.
À noite não ficávamos na sala da frente, onde era nossa cozinha, mas ficávamos com os avós e os tios na cozinha grande, saindo de lá apenas para dormir, indo os três juntos para o quarto com o lampião na frente. Jamais dormíamos com luz, mas não gostávamos de dormir a sos.
Nosso pai e sua mulher faziam um curso de costura de calçados no centro e retornavam por volta de vinte e duas horas, quando o vô e a vó também já estavam dormindo. Todavia, quando conseguiam entrar, muitas vezes já eram quase vinte e três horas. Eu e meus dois irmãos sempre fomos bons de cama, dormindo logo um sono profundo. Então eles batiam na porta da frente até quase derrubá-la, indo depois chamar e bater na janela do nosso quarto. Entretanto, somente acordávamos depois que o pai quase tinha quebrado a mão. Então eles entravam reclamando da dificuldade em nos acordar.
Incomodado por deixar nosso pai na rua, determinei-me a não mais permitir que tal ocorresse. Para tal, decidi que ficaria acordado esperando até que chegassem, o que fiz já na noite seguinte. Pus-me sentado na soleira da porta da frente, com ela fecha nas minhas costas, pois não iria ficar na sala só, tampouco facilitar que algum fantasma de dentro viesse por detrás de mim.
Na minha frente, sobre mim e ao redor, a densa escuridão, sem luz de fora ou lâmpada da estrada. Apenas o céu muito estrelado e os vultos do arvoredo à frente, contrastado pelo clarão da cidade vizinha elevado acima do horizonte. O silêncio tenebroso era rompido por um ou outro grilo. Ao meu lado, a inércia era quebrada pelo resmungar doBarão, um cachorrinho fox companheiro do vô, que tinha me mordido no passado, mas agora era meu amigo. Todas as noites que esperei ele permaneceu junto a mim até meu pai chegar.
Do topo da lomba, há uns cem metros à frente, ouvi um galope de cavalo dirigindo-se a mim. Procurei ver entre o arvoredo um vulto descendo a estrada a cavalo. A rua continuava passando a oeste da propriedade, há distância de uns cinqüenta metros da casa. Impedido pelo arvoredo à frente, esperei para ver o Gumercindo passando a galope pela rua ao lado, dirigindo-se à sua chácara ao fundo da nossa. Todavia, quando chegou à altura de nossa cancela, há uns quarenta metros de mim, o ruído do galope cessou e, segundos depois, vi as patas dianteiras de um cavalo branco aterrissar de um salto que teria dado sobre a cerca pouco antes da cancela. E seguiu dali entre os clarões do arvoredo, galopando rumo a leste, montado por um cavaleiro completamente branco, cuja longa e alva capa planava no vazio.
Ao ver a invasão, o Barão saiu em perseguição, latindo aos pés da montaria, que desceu um pequeno desnível, passando bem visível por um estreito campo, seguindo depois para o olho-de-boi, pois se precipitou pela inclinação abaixo.
Paralisado, vi o Barão retornar resmungando e pôr-se novamente enrodilhado ao meu lado. Fiquei feliz por não estar sozinho naquele momento, sabendo que se o cachorro tinha visto não seria fantasma.
Para meu alívio, dez minutos depois meu pai chegou. Então contei-lhe o acontecido. Ele aconselhou-me a verificar as marcas de patas de cavalo no terreno no dia seguinte. Ao levantar bem cedo, verifiquei antes que não tinha chovido durante a noite. Procurei as marcas de cavalo nas proximidades e no percurso que o cavaleiro teria feito. Todavia, não encontrei nenhuma pegada em toda a chácara.
Wilson do Amaral