Cemitério Russo
Havia uma crença coletiva de que o fim do mundo viria de forma súbita, talvez causado por algum asteróide se desgarrando do cinturão entre Marte e Júpiter, ou alguma explosão nuclear, resultado daquelas guerras insanas que os humanos adoram empreender, ou simplesmente os céus se abrindo e, um a um, os quatro cavaleiros do Apocalipse devastando a terra e a chegada do Anticristo e da besta com sete cabeças, dez chifres e dez diademas.
O fim do mundo seria um marco, assim como havia sido a extinção dos dinossauros; haveria uma cisão e, se alguém sobrevivesse (ou alguma futura civilização inteligente resolvesse reescrever a História), haveria uma data evidente e incontestável, na qual poderíamos anotar em nosso calendário — “eis o dia do fim do mundo, e, aqui, o dia seguinte a ele, quando começamos a reconstruir o planeta”.
Mas não foi assim.
A China, com seus bilhões de habitantes, sempre foi um celeiro para as doenças mais bizarras da Humanidade. Seus precários hábitos higiênicos contribuíam para que qualquer gonorréia ou conjuntivite se tornassem epidemias, mas, daquela vez, suspeitava-se que a enfermidade não era natural — não apenas alguma mutação duma das patologias já conhecidas —, mas alguma aberração criada em laboratório, quem sabe um malfadado projeto de arma biológica.
A batizada HR7 possuía os sintomas iniciais duma mera gripe: dores-no-corpo, cefaléia, fraqueza, ardência nos olhos e febre. Todavia, agravava-se nos dias seguintes, vômito, sangramento gengival, convulsões e desmaios. Após uma quinzena, falência múltipla dos órgãos e óbito.
O governo chinês tentou abafar o caso, mas e-mails espalharam as notícias. Em poucos meses, jornais divulgaram as primeiras estatísticas, mais de dois milhões de pessoas já haviam sido infectadas pela HR7, e havia algumas suspeitas de contágio na Coréia do Norte, na Tailândia e no Vietnã.
No entanto, tais advertências chegaram tarde demais. Num mundo globalizado, alguém espirra no Japão e lenços são oferecidos no Canadá.
Um clima de histeria coletiva se instaurou, conseqüência principal do modo de transmissão da doença: contato físico, pelo ar, pela água, através de alimentos; não havia proteção. Estar na presença de alguém enfermo era sinônimo de contágio.
Quando a pandemia já era um fato, os governos declararam estado de emergência, cidades inteiras foram isoladas, numa tentativa desesperada de limitar as terríveis conseqüências do HR7, mas isto nada adiantou, os próprios militares e especialistas envolvidos nestas operações também adoeceram e, num curto espaço de meses, não havia médicos e cientistas vivos que pudessem contribuir para dirimir a doença.
Religiões apocalípticas, messiânicas, oferecendo redenção se proliferaram e proliferaram também a enfermidade. Pessoas entravam sãs nas igrejas e morriam quinze dias depois — pelo menos, iriam para o Paraíso.
Vladimir tinha dezesseis anos quando assistiu a reportagem, na NTV Novosti, anunciando as mortes na China. Dificilmente ele se lembraria do comentário maldoso que realizou naquele dia:
— Bem que aqueles chineses imundos poderiam ser varridos do planeta.
Esta raiva derivava da sua derrota no torneio mundial de xadrez para um brilhante enxadrista taiwanês, um rapazola chamado Yeung. Pouca importância havia sido dada, neste resmungo de Vladimir, quanto à nacionalidade das vítimas: chinês ou taiwanês, qual a diferença?
Ingenuidade do jovem, pois algum tempo depois, a Rússia também passou a contabilizar seus mortos; inicialmente na Província de Khabarosk, na região fronteiriça com a China, mas logo surgiram casos em Omsk, Kursk, Novgorod, São Petersburgo e Moscou.
Assim, não apenas chineses imundos morriam, mas até parentes de Vladimir. Faleceu um tio do interior, uma prima, o marido da irmã, a irmã, a mãe e o pai. Dia após o outro, Vladimir sepultava algum de seus caros.
Recebeu uma carta do avô, agonizando em Zelenogradsky, a nordeste de Moscou, que lhe ordenava:
— Fuja, Vlad! Todos vamos morrer!
Havia sido este seu avô quem o levara, num domingo de verão, para conhecer um abrigo nuclear nos subterrâneos da capital. Ex-burocrata do partido comunista, o avô lhe contou que várias vezes, durante sua carreira, ele teve de se refugiar no subsolo, por causa de falsos alarmes de ataque nuclear. A mensagem de “Fuja!”, vindo dele, era clara — “esconda-se no abrigo”.
Vladimir apanhou uma lanterna, pilhas, alguns gibis da sua coleção de X-Men, seu tabuleiro de xadrez e um livro de aberturas. Encontrou a entrada do abrigo , acionou o antigo elevador e imergiu na escuridão das profundezas, a trinta metros abaixo do solo.
O abrigo era gigantesco, um labirinto de corredores, câmaras, salões, depósitos, espaço projetado para refugiar duas mil pessoas por alguns bocados de meses. Mas Vladimir estava sozinho, amedrontado, desorientado.
Explorou algumas galerias, encontrou um alojamento confortável e descobriu onde ficava o depósito, assim poderia obter um estoque quase infindo de pilhas e alimentos enlatados (muitos com data de vencimento de 1989). Deitou-se e leu seus gibis, depois, ensaiou algumas aberturas e variações da Ruy López e giouco piano. Adormeceu, acordou, e mais um dia se passou; na verdade, a noção de tempo de Vladimir rapidamente desapareceu, sem a luz do sol como indicador.
Foi por volta do quarto ou sexto dia que Vladimir ouviu espirros, tosses e lamentos. Os sons ricocheteavam pelas paredes das galerias e alcançavam seu quarto. Aparentemente, Vladimir não havia sido o único a descobrir o abrigo, outras pessoas, várias outras pessoas, também poderiam estar ocupando aquele complexo.
Munido de sua lanterna, o rapaz buscou a fonte do barulho. Abriu portas, vagou, percorreu inúmeras vezes os mesmos corredores (ou seriam outros?) e teve a impressão de que estava chegando perto.
O som aumentava, e com ele crescia também um odor fétido, semelhante àquele quando seu gato Rasputin desapareceu e, quase um mês depois, foi encontrado preso sob a geladeira, decomposto.
Vladimir abriu uma porta (as lamúrias provinham do outro lado) e encontrou um inferno de pessoas, amontoadas sobre as outras, pústulas sobre seus corpos, escarrando, tossindo, convulsionando, olhos fundos, membros retorcidos... O rapaz teve engulhos, afastou-se e tapou as narinas com a gola da blusa. Todos ali morriam e, se as prédicas fossem verdadeiras, se os diagnósticos fossem confiáveis, Vladimir também morreria em breve. Ninguém, mas ninguém mesmo se aproximava da peste sem ser afetado.
O vento soprou, a neve cobriu a cidade morta, o degelo, as flores, o sol. Quantas vezes a monotonia da mudança não voou sobre Moscou e sobre o mundo?
As cidades, antes superpopulosas — automóveis, escritórios, aluguéis e mercados —, agora eram silêncio apenas. Os edifícios ruíram, foram recobertos por vegetação, pelo pó, pelo gelo duma nova glaciação. Os rastros da Humanidade foram varridos, soterrados pelo amanhã.
Dez mil anos se passaram, Glitzni, chefe duma equipe de arqueólogos, havia feito uma descoberta memorável, algo que o incluiria nas galerias de grandes pesquisadoras da História.
Segundo a tradição oral, os seres humanos haviam dominado o planeta antigamente, mas uma doença dizimara quase a totalidade da raça. Alguns grupos se refugiaram nos recônditos da terra, isolando-se, salvando-se, assim, da extinção. A Humanidade se reergueu a partir do zero, redescobrindo a civilização desde o básico: agricultura, tração animal, escrita, arte, maçonaria, cerâmica, navegação, energia a vapor, Astronomia, Física Quântica, Filosofia.
Havia estes relatos sobre o passado remoto, mas, até o momento, nenhuma evidência. Contudo, escavações encontraram vestígios desta antiga civilização — uma cidade, com ruas, edifícios, teatros, praças.
O governo se entusiasmou com a descoberta, liberou mais fundos e disponibilizou o equipamento mais moderno ao projeto. Glitzni era a celebridade da vez.
As escavações atingiram extratos mais profundos, descobriram galerias subterrâneas, um engenhoso sistema de saneamento urbano e de transporte. Foram mais fundo, e este foi o verdadeiro achado.
Edifícios e artefatos eram muito estimulantes, mas cadáveres, ossadas, algo ainda mais extraordinário.
Descerraram a porta do abrigo nuclear e o bafo podre pôde deixar seu túmulo. Glitzni e seus colegas encontraram quase trezentas ossadas, sepultadas neste imenso cemitério; entre elas, estava a de Vladimir.
Ao chegar em casa, Glitzni recebeu um telefonema de Aaapnor, seu assistente imediato.
— Estou muito doente, Glitzni, acho que peguei um resfriado, não poderei comparecer às escavações amanhã.
Glitzni também se sentia assim; tomou um remédio para aplacar a febre. Recordou-se da descoberta de dias atrás, a pilha de ossadas, e temeu que talvez houvessem desencavado algo terrível.
Sobre sua escrivaninha estava o envelope que recebera naquela manhã — a tradução dum manuscrito encontrado em sítios arqueológicos no litoral de Amrka —, trabalho dum velho conhecido de faculdade.
Apesar da vista embaçada, da dor muscular, do cansaço, Glitzni leu os primeiros parágrafos da tradução:
"Havia uma crença coletiva de que o fim do mundo viria de forma súbita, talvez causado por algum asteróide se desgarrando do cinturão entre Marte e Júpiter, ou alguma explosão nuclear, resultado daquelas guerras insanas que os humanos adoram empreender, ou simplesmente os céus se abrindo e, um a um, os quatro cavaleiros do Apocalipse devastando a terra e a chegada do Anticristo e da besta com sete cabeças, dez chifres e dez diademas.
O fim do mundo seria um marco, assim como havia sido a extinção dos dinossauros; haveria uma cisão e, se alguém sobrevivesse (ou alguma futura civilização inteligente resolvesse reescrever a História), haveria uma data evidente e incontestável, na qual poderíamos anotar em nosso calendário — “eis o dia do fim do mundo, e, aqui, o dia seguinte a ele, quando começamos a reconstruir o planeta”.
Mas não foi assim."