Problemas domésticos

 

Naquele dia, ao chegar em casa, percebi logo que as coisas não estavam correndo bem (o que diga-se de passagem não era surpresa). Sarina estava agitada, nervosa:

- Nem pense em trocar de roupa. Acabou a comida do Dentão e você vai direto no açougue trazer mais.

- Não acredito. Da última vez eu trouxe uma carcaça de búfalo... já acabou?

- Isso já faz três dias.

- Bem, então vou pelo menos tomar um banho...

- Nem pense nisso. Os estoques não andam muito bons e o bicho já está nervoso. Lembre-se do que aconteceu com os Daltons. Deixaram o megalossauro deles sem comer e ele devorou o carteiro.

Suspirei e cheguei à conclusão de que teria mesmo de dar meia volta e ir no açougue. Se alguém está pensando em por que é que eu não sugeria à Sarina em ir ela própria, só tenho a responder: você pergunta isso porque não a conhece... se eu fizesse uma tal sugestão a resposta haveria de ser uma cantilena assim: "Mas o que! Você pensa que eu não tenho o que fazer? Só para programar o robô faxineiro, a robota costureira, a robota cozinheira, o robô lavador de pratos e o holovideo, sabe quanto tempo eu gasto?" Bem, eu não sabia e nem queria saber, por isso preferi ficar calado.

Acoplei o vagão frigorífico ao meu over e parti em direção ao açougue do Saldanha, pensando com meus botões: o que adiantava termos resolvido não ter filhos por questão de economia, se gastavamos sustentando um réptil o que daria para três faculdades?

Desde que a engenharia genética, utilizando fósseis congelados, lograra reproduzir em nossos dias dinossauros vivos, tornou-se moda - especialmente nas cidades mais perigosas, como o Rio de Janeiro - ter um desses bichos como cão de guarda. No combate aos assaltantes são muito mais eficientes e assustadores - ainda que, por manipulação genética, todos os dinossauros sejam agora de tamanho limitado, evitando-se, por razões óbvias, o porte gigantesco.

A posse desses animais porém é extremamente problemática. Para início de conversa eles não se afeicoam aos donos e são por demais estúpidos para aprender seja o que for. Não é permitida a sua presença em edifícios de apartamentos e outros imóveis comuns, mas só naqueles dotados de espaço ao ar livre. Durante o dia ficam em casinhas reforçadas e à noite são soltos dentro dos limites (cercas, muros e portões) da propriedade. Tudo tem que ser bem forte, inclusive as portas da casa. Se um saurio desses conseguir invadir a sua residência não vai adiantar muito gritar-lhe: - Ei, eu sou o seu dono!

De fato, sendo quase desprovidos de inteligência, eles praticamente se resumem a bocas e estômagos: o resto é complemento. Você, que não cria dinossauro algum, talvez não imagine quanto custa sustentar um único. Eles são insaciáveis. Eu jamais teria colocado um alossauro de um metro e oitenta em minha casa se a minha esposa não me tivesse obrigado a isso. Mas ela sempre quer estar na moda...

Detalhe agravante é que os psicodinos, sem os quais não se pode controlar um dinossauro carnívoro, são caríssimos e exigem manutenção igualmente cara. Cada psicodino é adaptado às ondas cerebrais de um dinossauro particular. Assim os assaltantes evitam as propriedades guardadas por tiranossauros e outras répteis antediluvianos: cada um deles, adulto, aguenta facilmente uma dúzia de balas calibre 45, tão escasso é o seu sistema nervoso. E ainda é capaz de despedaçar uma quadrilha inteira. Não adianta trazer um psicodino para o assalto, pois eles são individuais e é quase impossível ajustar um para determinado bicho, fora de um laboratório com recursos científicos (evidentemente o bicho só é vendido com o seu psicodino próprio: outro exemplar, de reserva, fica no cofre da Dinobrás).

Cheguei ao açougue e, tendo deixado o overcraft no parque de estacionamento, senti-me um verdadeiro pafúncio. A fila era quilométrica e a maioria dos fregueses levava ajudantes ou robôs-criados. O panorama em outros açougues, naquela tarde de sábado, não devia ser muito melhor. Havia muitos dinossauros na cidade, todos eles com fome.

Eu tinha uma preocupação e resolvi que era hora de ligar para Sarina pelo celular. Fiz a ligação, ela atendeu e eu expliquei:

- Sarina, eu vou demorar porque a fila aqui está grande, muito grande. Faça o seguinte, por favor: pegue toda a carne que houver em casa, inclusive o peixe e a galinha, e jogue tudo para o Dentão.

- O que? Você quer que eu dê a NOSSA comida a ele? Você tem merda na cabeça ou o que?

- Escute, meu bem - falei, hipocritamente - eu vou reabastecer para nós também. O que eu não quero é que o bicho fique furioso.

- O que é que você quer dizer?

- Não se lembra? O nosso calabouço prende um dinossauro em circunstâncias normais. Mas se o bicho estiver sem comer há várias horas vai ficando furioso e com o sangue cheio de adrenalina. Em tais circunstâncias ele é bem capaz de arrebentar a porta ou a parede, por mais reforçadas que sejam. Você correria perigo.

- Ué, mas foi você mesmo que instalou...

- Entendeu? Ele tem que comer agora mesmo! A nossa comida não é muita mas dá para enrolar até que eu chegue. E dessa vez vou levar duas carcaças de búfalo. Mais do que isso o vagão não aguentar!

- Está bem! Faça o melhor que puder que eu vou jogar a comida.

Duas horas depois - e eu nem tinha almoçado! - consegui chegar em casa. Ao pousar, porém, na pista da garagem, o meu over foi atacado por um colosso cheio de dentes pontiagudos, que sobressaiam de uma boca colossal.

Toda a comida disponível não pudera certamente aplacar a fome do Dentão.

Felizmente o over era forte demais para poder ser arrombado facilmente. Assim, liberei o vagão e levantei vôo; o alossauro, depois de tentar sem sucesso arrombar o metal para chegar à carne, lançou-se contra o portão e, num frenesim de loucura, conseguiu arrebenta-lo e escapar. Não tive outro remédio senão acionar o alarma contra saurios, que todo veículo deve ter. A carreira de gastrônomo do Dentão certamente iria agora chegar ao fim: a polícia possui armas capazes de derrubar essas feras.

Fui procurar o que restava da Sarina, e não era muita coisa. É uma pena, querida, pensei. Pena que os psicodinos possam às vezes dar defeito - sobretudo quando alguém mexe neles previamente. Pena que eu tenha precisado gastar tanto dinheiro - melhor dizendo, tanto crédito - para alimentar um dinossauro que acabou de fugir e logo será morto. Apesar do favor que ele me fez, nada posso fazer para ajudá-lo.

 

Rio de Janeiro, 9 de maio de 1993.

 

imagem freepik.

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 12/10/2024
Reeditado em 13/10/2024
Código do texto: T8171767
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