Carta a um Amor do Passado
Esse conto foi escrito e publicado aqui originalmente em junho de 2016.
Depois que você partiu muita coisa mudou meu amor. Eu nunca mais fui a mesma.
Em todo este tempo longe de você sonhei em trazê-lo novamente para junto de mim. A saudade, essa palavra tão bela e tão dolorida, me corroía por dentro.
Com o tempo fui ficando melhor, de início era muito difícil. Entenda, meu corpo estava velho e cansado, quase tão cansado quanto o seu quando partiu. Pensava que iria passar o resto dos meus dias assim, morrer só e fragilizada. Mas então as pequenas revoluções pelas quais passávamos iam operando seus milagres.
Primeiro meu amor minhas pernas recuperaram a energia perdida. Os implantes biônicos em meus músculos e ossos deram fim aos anos de artrose, osteoporose e miopatias, de repente eu, uma velha decrépita e dependente, conseguia mais uma vez ser dona de meus próprios passos. Mas ainda me cansava muito, tinha pneus novos, mas o motor era fraco.
E, quando mais uma vez achava que não teria mais nada para me tirar de uma deterioração lenta e implacável, eis que surgem essas tais pequenas máquinas, tão pequenas que lhes dão o nome de nanos. Elas são injetadas em nossos corpos, percorrem nossa corrente sanguínea e atingem cada tecido e órgão de nosso corpo, reconstruindo estruturas, destruindo tumores e microorganismos invasores. Assim, tive meus rins, pulmões e corações remodelados.
Minha face, naquela época a típica face de uma senhora de 160 anos, enrugada com o peso do tempo, também teve seu momento de glória, finalmente a ciência entendeu a estrutura por trás da formação e aparência de nosso tecido cutâneo e todos agora tinham a pele tão macia e sedosa como a de um bebê. Na verdade, trocamos agora de pele como trocamos de roupa, podendo escolher até sua tonalidade, eu mesma já fui branca, morena, negra e já experimentei o azul e o verde.
Mas agora mantenho a mesma cor, aquela cor original com a qual você me conheceu.
Pois meu sonho ainda está vivo, ainda penso em reencontra-lo neste novo mundo.
E como ainda lembro-me de você? Como um cérebro, a mais complexa das estruturas, mesmo sendo velho, ainda se lembra? Não foi fácil, mas a dinâmica do pensamento e da consciência finalmente foi entendida, de simples implantes que nos davam apenas mais memória contamos agora com matrizes neuronais completas, cada sinapse perdida é logo substituída, nossos cérebros nunca morrem, nunca esquecem e ainda assim desfrutam de todos os sentimentos e emoções que nos fazem humanos.
Hoje já não tenho medo da morte. Sei que não sou imortal, por mais que meu corpo possa se regenerar sei que um acidente muito grave como uma explosão nuclear, por exemplo, pode dar cabo de mim e de boa parcela da humanidade.
É irônico não? Se você tivesse vivido só mais 15 ou 20 anos talvez desfrutasse de todos os benefícios que desfrutamos hoje. Ah meu amor! Se você tivesse ficado entre nós talvez tivesse de volta sua juventude e, não nego, tivesse como eu desfrutado de novo dos amores e sexo juvenis.
Sim amor, nesse tempo todo não pude ficar só. Gozei novamente dos prazeres carnais. Conheci outros homens (e também mulheres, pois a época dos preconceitos e restrições se foi a há muito tempo), mas nenhum deles me satisfez. Eu sempre quis mesmo é ter você de volta.
E juro que tentei.
Primeiro foram os clones, diziam que era uma maneira de trazer seus entes queridos novamente a vida. Infelizmente eles, por mais idênticos que fossem, eram outras pessoas e mereciam outras vidas. Vivi alguns anos na companhia de um clone seu, mas o libertei, aquele não era você.
Depois os androides, réplicas fisicamente perfeitas dos que se foram nos anos em que a vida era frágil. Também tive um, e ele reproduzia não só a aparência, mas tudo em você, pois minha memória foi escaneada e as lembranças de tudo que passamos juntos foram reunidas e uma personalidade artificial foi formulada para lhe mimetizar em tudo. E por muito tempo este androide me serviu bem, além de um companheiro sexual incansável ele também era um espelho seu. Mas não era você, era antes disso o que eu pensava ser você, não havia identidade própria, não era humano.
E agora amor, depois de exatos 120 anos de sua partida eles dizem realmente ter o poder de trazer você de volta.
É algo novo, física das partículas, curvatura do espaço-tempo, vão redimensionar a realidade, criar um buraco no tempo até o momento exato de sua morte. Com isso toda sua memória, personalidade e consciência serão transferidas em alguns milésimos de segundo antes de seu cérebro se apagar. Seu corpo, como sabemos, já morreu, mas sua alma será extirpada, viajará do passado para o presente e será baixada em outro tipo de clone, outro sem nenhuma lembrança, só esperando tudo o que você foi, um corpo todo novo e resistente a falhas. Para você será apenas como se estivesse acordado de um sono profundo.
Mas para mim será como viver um sonho.
Então amor, estaremos juntos novamente. Só eu e você. E nada mais poderá nos separar.
Espero você. Beijos, seu grande amor.