Dois bicudos
DOIS BICUDOS
Miguel Carqueija
O Capitão Aderaldo Barbosa apresentou sua passagem ao robô-controlador, que a habilitou, e dirigiu-se pela pista rolante para a Belerofonte, grande astronave de passageiros que aguardava na pista 5 do Astroporto de Jacarepaguá.
Uma vez que a Antaprise encontrava-se em manutenção no estaleiro e toda a equipagem em férias coletivas, Barbosa resolvera passear um pouco pela Lua, onde raramente ia. Afinal, as missões da Antaprise geralmente se dirigiam para além da órbita marciana.
Ao entrar no grande salão de passageiros Barbosa verificou mais uma vez seu bilhete, que indicava a poltrona 33. Iria, portanto, junto à janela. Chegou ao local e verificou que a poltrona 34 estava ainda vaga. Colocou sua mala no bagageiro e acomodou-se. Então lembrou da morena de longos e sedosos cabelos que vira dirigindo-se para a nave. Relaxou, fechou os olhos, imaginando se não seria ela, afinal, quem sentaria ao seu lado. E na sua imaginação isso começou a lhe parecer uma realidade maravilhosa. Barbosa pegou seu pente da jaqueta e começou a arrumar melhor os seus cabelos. Depois, motivado a dar boa impressão à sua linda vizinha, pegou um livro de Astronomia, abriu-o em qualquer página e fingiu que estava lendo.
Sentiu que alguém sentava ao seu lado mas, antes mesmo que se voltasse, uma voz grossa e tonitruante se fez ouvir:
— Perdão, mas você consegue ler um livro de cabeça para baixo? Que aptidão rara!
Barbosa gelou. Ainda bem que aquela voz não podia ser da garota. Fechou rapidamente o livro e se voltou, pensando no que iria dizer... mas acabou ficando parado, com a boca entreaberta, mais gelado que antes.
— Perdão, mas já não nos vimos antes?
— Eu... eu... eu...
— Não diga mais nada! Essa cara apalermada, essa voz de idiota, só pode ser o meu velho amigo, o Capitão Barbosa! Há quanto tempo! Venha de lá um abraço!
E passando da palavra à ação, deu logo um abraço de urso no atarantado capitão. A este pareceu mesmo que estava sendo abraçado por um urso bem peludo, tendo em vista a cara hirsuta do outro.
— Doutor Mexilhão, eu presumo — parafrasear a frase de Stanley foi tudo o que Barbosa conseguiu pensar.
— Não o vejo desde aquele pequeno favor que eu lhe fiz na revistaria — prosseguiu o psiquiatra. — Como vai a Antaprise?
— Está em manutenção — e mentalmente Barbosa rezou pedindo que o outro não tentasse lhe fazer mais nenhum favor, pequeno ou grande.
— Isso não é surpresa, tendo um capitão como você.
— Escute aqui, você realmente é psiquiatra?
— Ué, qual é a dúvida? Você acha que eu não entendo de loucos?
— Deve entender, por experiência própria.
— Ah, o amigo é um piadista! Isso é bom! Ah! Ah! Ah!
E assim dizendo ele deu um tapa de tirar a respiração nas costas do outro.
Até o Capitão Barbosa é capaz de sentir embaraçado e resolveu chamar a astromoça, apertando o botão.
— Está precisando de alguma coisa, Capitão Barbosa?
— Acho que vou precisar de um trago — balbuciou o pobre capitão.
— Eu até o acompanharia, mas acho isso impossível.
Barbosa esquecera disso, mas a astromoça lembrou-o de que não podiam ser servidas bebidas antes da decolagem, pois poderiam ocorrer efeitos colaterais desagradáveis. Ela se afastou bastante intrigada com tal pedido da parte de um comandante astronáutico.
O Capitão Barbosa sentiu-se bastante irritado. Não devia deixar que um maluco qualquer o perturbasse ao ponto de fazer besteiras.
Felizmente era hora de se concentrarem nos cintos e na mudança de posição das poltronas, para que seus corpos aguentassem bem a aceleração de 9G, que seria melhor distribuída se estivessem mais para deitados que sentados. Realmente, durante a decolagem, Mexilhão parou um pouco de falar. Mas quando já se encontravam em queda livre e retornaram à posição normal, ele não deu sinal de vida. Permaneceu com os olhos fechados e seu grande braço esquerdo caiu sobre Barbosa.
— Mas o que...
Um baita ronco respondeu à pergunta mal formulada.
Barbosa ficou perplexo. Decididamente ele nunca vira alguém capaz de dormir durante a aceleração de uma espaçonave.
Enquanto o psiquiatra permanecia em sono profundo e roncante, o capitão começou a luta para se libertar.
— Mas que droga... esse braço parece que pesa uma tonelada...
Afinal Barbosa conseguiu afastar o bração do médico mas aí teve início outro problema: deu vontade de ir no banheiro, como costumava acontecer quando o capitão ficava nervoso. Mas como passar pelas pernas estendidas e abertas mal-educadamente, que bloqueavam a passagem, e cujo dono estava dormindo como uma pedra?
Barbosa se levantou, inspirou fundo e pulou por sobre as pernas do outro. Treino de astronauta tem que valer alguma coisa, afinal.
Procurou ignorar os olhares curiosos dos demais passageiros e se dirigiu rapidamente ao reservado. Mas quando já estava lá dentro um terrível pensamento lhe ocorreu: e como iria voltar ao seu lugar? Não dava para fazer a mesma coisa: se pulasse iria acabar se esborrachando na parede. O jeito seria acordar o bruto e exigir que afastasse aquelas pernas imensas.
Ora bolas, pensou. Tem lugares vazios.
Descobriu duas poltronas vazias e sentou junto à janela, no lado oposto. Achou melhor tirar uma soneca, afinal seus livros e mangás haviam ficado no bagageiro acima do assento que deixara. Tentou relaxar e dormir, mas o ronco de Mexilhão chegava facilmente aos seus ouvidos.
“Ora bolas”, pensou afinal. Eu sou um capitão, vou lá na cabina de pilotagem. Posso participar do lanche deles...”
Então ele se levantou e, passando pela astromoça, falou de passagem:
— Vou lá na cabina de controle, falar com a turma.
Ela acenou que sim, afinal Barbosa tinha esse direito. Aliás, estava até intrigada por não o haverem convidado.
Instantes depois o Capitão Barbosa Júnior chegou na porta da pilotagem, abriu-a de supetão e adentrou espalhafatosamente, gritando:
— Alô, cambada! Como é que está a zona por aqui? Vim me juntar a vocês! Podem bater palmas!
Fez-se um silêncio sepulcral entre os presentes. Homens, mulheres e robôs olharam na direção de Barbosa, todo mundo com cara de réu, e de início o capitão não entendeu a razão de tamanha frieza.
— O que foi, gente? Não estão me reconhecendo? Sou eu mesmo, o Barbosa, prontinho para umas partidas de gamão e tomar umas e outras com vocês...
— O que é que você está mesmo propondo, FILHO?
Barbosa empalideceu e dirigiu o olhar para o canto de onde viera aquela voz grave.
— Papai! O que é que o senhor está fazendo aqui?
— Engraçado. Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. E também, desde quando se joga e se bebe na cabina de pilotagem de uma nave espacial. Quanto ao mais, eu vim como piloto reserva dessa vez, e sei que você está aqui como passageiro. O que você quer aqui na cabina de controle?
Barbosa agarrou-se a esse detalhe para que o pai esquecesse aquela história de baralho e bebida, evidentemente o velho e severo Barbosa Senior não devia estar a par do hábito de muitos astronautas levarem bebidas e baralhos ocultamente para se distraírem nas (muitas) horas de folga com a nave no piloto automático.
— Bem, pai... a falar a verdade, eu estou fugindo do meu companheiro de banco, é um sujeitinho insuportável...
O Capitão Barbosa, pai, quase perguntou se era mais insuportável que o seu filho, mas conteve-se para salvar as aparências. Limitou-se a indagar quem era o tal sujeitinho insuportável.
— É um tal de Doutor Mexilhão, psiquiatra...
— O QUEEE??? O Mexilhão está a bordo?
— Sei quem é — disse o piloto, Capitão Clóvis. — Um sujeito hirsuto, com uma grande barba preta, não é?
— Sim, esse mesmo... mas papai, o que é que o senhor tem?
Barbosa Senior buscara uma poltrona e sentara, com o rosto nas mãos.
— Desconfio — murmurou desalentado — que esta vai ser uma LONGA viagem...
ATENÇÃO: QUEM DISSE QUE ACABOU? INFELIZMENTE A COISA VAI CONTINUAR! NÃO PERCAM A CONTINUAÇÃO! O QUE VAI ACONTECER ENTRE O CAPITÃO BARBOSA, O CAPITÃO BARBOSA SENIOR E O DOUTOR MEXILHÃO?
Rio de Janeiro, 21 de março a 30 de abril de 2022
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